Por Bruna Della Torre de Carvalho Lima
O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou.
O que significa elaborar o passado, Theodor W. Adorno
Quem já visitou o memorial de algum campo de concentração nazista certamente reparou no caráter surpreendente de sua visibilidade. Para quem conhece o Holocausto a partir dos livros didáticos escolares ou de documentários de grande circulação, o genocídio dá a impressão de ter ocorrido a portas fechadas, longe dos olhos e dos narizes dos alemães “de bem”, que seguiram com suas vidas durante o regime nazifascista. A dimensão do quanto esses campos eram escancarados é assombrosa. Meia hora num trem, saído de Berlin Hauptbahnhof, a estação central de Berlim, é suficiente para chegar ao campo de Sachsenhausen, que começou a funcionar em 1936, destinado a prisioneiros políticos, mas que se expandiu ao longo da guerra num sistema de trabalhos forçados dividido em 60 subcampos. O campo ocupa quarteirões e quarteirões. Auschwitz, o complexo de prisão e extermínio, era uma rede de campos de concentração, uma máquina de terror muito maior do que Sachsenhausen. Linhas de trem inteiras foram construídas para levar judeus, comunistas, ciganos, homossexuais ao seu destino final. Só em Auschwitz morreram cerca de três milhões de pessoas. O cheiro dos corpos queimados ia muito além das cercas dos campos. Como explicar a alegação generalizada no pós-guerra de que não se sabia o que estava acontecendo dentro desses campos? Como não se perguntar por que os aliados não bombardearam os campos ou as linhas de trem que levavam a eles[1]?
O caráter farsesco do tribunal de Nuremberg, a perpetuação de milhares de ex-membros do NSDAP ou da própria SS no governo após o fim da guerra, a declaração das leis de emergência na década de 1960 (que foi uma das razões das revoltas de 1968 na Alemanha), ou seja, a recusa da culpa mantém aberta a ferida de Auschwitz.
Mas o que a sociologia tem a dizer sobre isso?
Uma das mais ricas e críticas tradições do pensamento social a se debruçar sobre o tema foi a Escola de Frankfurt, que fez do nazismo um de seus principais temas. A investigação das mudanças de um capitalismo liberal para o capitalismo monopolista na passagem do século XIX para o século XX, as mutações do Estado etc. foram objetos de escrutínio do Instituto de Pesquisa Social.
Além das investigações socioeconômicas a respeito do nazismo, pouco discutidas por sua fortuna crítica[2], também os estudos sobre A Personalidade Autoritária (1950) e a Dialética do Esclarecimento (1947) se debruçam sobre essas questões. Outros textos como “Educação após Auschwitz” (1965/1967), “O que significa elaborar o passado” (1963) e “Aspectos do novo radicalismo de direita” (1967/2019) são também fundamentais e valem ser mencionados numa homenagem à libertação de Auschwitz. Sem pretensão de esgotar o assunto ou resumir um “diagnóstico”, levanto a seguir algumas questões presentes nesses textos para sublinhar a atualidade dos problemas com os quais os teóricos críticos de Frankfurt, em especial T. W. Adorno, buscavam lidar.
A psicanálise ensinou que a melhor maneira de perpetuar um trauma é não falar sobre ele. Adorno costumava insistir que o perigo de Auschwitz ocorrer novamente consiste na recusa sistemática em discuti-lo. Aliás, cada vez mais a sua própria existência é posta em xeque[3]. Primo Levi, quando voltou do campo de concentração, relatou como seu depoimento era doloroso para os seus parentes e amigos[4]. As pessoas saíam da sala quando ele falava. Ninguém queria saber qual é a verdadeira natureza do terror. Essa foi a narrativa de muitos outros prisioneiros e prisioneiras. Essa recusa é compreensível no âmbito individual e familiar, a desumanização dói também naqueles que não puderam evitá-la, mas é inaceitável no âmbito político e social. O que não é discutido permanece inescrutável e vira e mexe volta na forma de uma fantasmagoria. No Brasil, o episódio recente do ex-ministro da cultura Roberto Alvim, que fez um vídeo pastiche de Goebbels, é só um exemplo dos muitos que temos visto por aí. Demonstrações como essa, porém, dificilmente são enquadradas como crime de ódio que são.
O silêncio é um dos maiores trunfos do fascismo. Em “Educação após Auschwitz”, Adorno relembra o descaso com o genocídio armênio promovido entre 1915 e 1917 pela República da Turquia. A consciência reificada, o que significa dizer, a consciência que se recusa a questionar o seu vir a ser, congelada e enrijecida, está na base da repetição da barbárie. Um dos pilares da investigação das condições objetivas que levaram a Auschwitz remete a um dos temas básicos da sociologia de Marx e de Simmel: a investigação da frieza da sociedade burguesa e da reificação de sua consciência. Não se trata de conferir um caráter moralizante ou individualizante a essa análise, pois a frieza é um fenômeno socialmente produzido. Segundo Simmel, é a própria condição de sobrevivência nas grandes cidades e na vida moderna, com todas as contradições e sofrimentos que traz com ela[5]. Marx descreve um mundo no qual os indivíduos se tornam coisas e as coisas ganham vida[6]. A sociedade capitalista produz em seus processos de subjetivação uma indiferença objetiva em relação à dor – seja ela sentida, seja ela testemunhada. Hábitos como o “trote” universitário (ou o que hoje chamamos de bullying), destaca Adorno, são precursores imediatos da violência nazista e devem ser fortemente combatidos. Num excerto de Minima Moralia, intitulado “O colega malvado”, Adorno relata como seus colegas, que não conseguiam construir uma frase do começo ao fim sem erros, ridicularizavam suas frases longas, adiantando o anti-intelectualismo característico do fascismo. Ele confessa, a partir das suas experiências de infância, que “a eclosão do Terceiro Reich pode ter surpreendido meu julgamento político, mas não minha prontidão inconsciente para o medo”[7]. O pensamento positivista, que nega uma abordagem sociológica orientada pela sensibilidade e que se recusa a reconhecer esse tipo de questão até mesmo como problema sociológico, só faz perpetuar esse estado de coisas.
A investigação da frieza esteve ligada a um outro projeto muito importante: os estudos sobre a Personalidade Autoritária, patrocinados e realizados em conjunto com o American Jewish Committee. Adorno e os membros da Escola de Frankfurt propuseram uma visada muito original nos estudos sobre o fascismo. Tratou-se de “buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos”[8]. Da mesma maneira como o movimento feminista tem combatido o feminicídio, expondo e problematizando o machismo, a Escola de Frankfurt buscou promover uma autorreflexão crítica a respeito das condições que levaram ao Holocausto. Os estudos sobre a personalidade autoritária são uma ampla investigação a respeito do antissemitismo e dos antissemitas. Uma de suas grandes contribuições, talvez a maior delas, tenha sido a de mostrar que o comportamento autoritário, que está na base do genocídio, não tem substância. O ódio contra os judeus, no limite, é vazio e não se assenta em nenhuma característica do judeu em si, mas só pode ser explicado pela formação subjetiva daqueles que odeiam. Ao estudar indivíduos inclinados ao autoritarismo, os pesquisadores descobriram que o preconceito muda facilmente de objeto: judeus, mulheres, negros, imigrantes etc. A consequência política desse estudo é que, para vencer o fascismo, não basta apenas combater o antissemitismo, mas o preconceito contra a população negra, contra as mulheres, os imigrantes, os comunistas etc. A lição da Escola de Frankfurt é que a solidariedade entre e para com os perseguidos deve estar na base da luta contra o fascismo.
Entre os achados do estudo, está a descoberta de que a personalidade autoritária apresenta, entre outras características, adesão rígida aos valores convencionais de classe média, tendência punitivista em relação àqueles que escapam aos valores convencionais, anti-intelectualismo em múltiplas modalidades, crença em determinantes místicas do futuro individual, disposição para pensar por meio de categorias rígidas, hostilidade generalizada, preocupação exagerada com sexo e convencionalismo sexual[9]. Esses traços têm feito parte de nossa vida cotidiana no Brasil e no mundo nos últimos anos. Mas esse comportamento não é meramente psicológico, ele é fundamentalmente um fenômeno político e social e suas bases devem ser investigadas. Este é, ainda, um programa de pesquisas aberto[10].
Por fim, vale acenar para uma outra questão. A ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo tem gerado debate acalorado a respeito do renascimento do fascismo. Em “O que significa elaborar o passado”, Adorno afirmava que “o nazismo sobrevive, e continuamos sem saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas condições que os cercam”[11]. Embora surjam, aqui e ali, movimentos abertamente neonazistas, o problema maior é a corrosão da democracia por dentro. A democracia, tardiamente implantada na Alemanha (tema que foi também de Marx) e em dissonância com o liberalismo econômico pleno, fez, segundo Adorno, com que ela tenha sido percebida como um sistema entre outros, o que tornou a sociedade permeável ao fascismo. O ceticismo em relação aos sistemas políticos, tão bem explorado no Brasil por Roberto Schwarz nas suas leituras de Machado de Assis[12], consiste numa das vias de penetração do fascismo e de falência da democracia[13]. Em sua palestra de 1967 sobre “Os aspectos do novo radicalismo de direita”, que foi publicada em livro em 2019 e ocupou, nos meses seguintes ao lançamento, as estantes de best-sellers de grandes livrarias alemãs, como a Dussmann, Adorno fala do fascismo como uma “cicatriz” da democracia. A extrema direita se alimenta, segundo ele, dessa descrença em relação ao caráter meramente formal da democracia na sociedade burguesa, somada ao ódio cada vez maior ao comunismo, não por ele existir e constituir uma ameaça, mas por ter falhado.
Mas, ao ser perguntado sobre o futuro da extrema direita, Adorno responde: essa é uma pergunta cheia de resignação, pois seu futuro cabe a nós decidir. Que Auschwitz nunca mais se repita, que o genocídio indígena e negro deixe de se repetir, que o genocídio armênio não se repita vai depender de nossa disposição em não nos resignarmos, nem politicamente e nem teoricamente, fazendo da sociologia o instrumento de combate que ela pode ser.
Notas:
[1] “Auschwitz celebra 75 anos de sua liberação com dúvidas a esclarecer: participação de empresas e atuação de governos e da Igreja Católica seguem sob escrutínio”. Rafael Balago, Folha de São Paulo, 27 de janeiro de 2020.
[2] Cf. REGATIERI, Ricardo Pagliuso. Capitalismo sem peias. São Paulo: Humanitas, 2019.
[3] Em sua palestra recém-publicada sobre a nova direita, Adorno comenta a tática desses movimentos de questionar os números de mortos pelo Holocausto, insistir que foram cinco e meio milhões de assassinados ao invés de 6 até colocar em dúvida o próprio fato de que o Holocausto ocorreu. ADORNO, Theodor W. Aspekte des neuen Rechtsradikalismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 45.
[4] LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
[5] SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana [online]. 2005, vol.11, n.2 [cited 2020-02-03], pp. 577-591.
[6] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo, 2013.
[7] ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 188.
[8] ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Roi de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 18.
[9] ADORNO, T. W.; FRENKEL-BRUNSWIK, E.; LEVINSON, D. J.; SANFORD, R. N. The authoritarian personality. New York, Harper and Brothers, 1950, p. 228.
[10] Pesquisadores tem buscado atualizar esse diagnóstico. Cf. BROWN, W.; GORDON, P.; PENSKY, M. Authoritarianism: three inquiries in critical theory. London/Chicago, The University of Chicago Press, 2018; GANDESHA, S. “Identifying with the aggressor”: From the authoritarian to neoliberal personality. Constellations, v. 25, 2018, pp.147–164.
[11] ADORNO, Theodor W. “O que significa elaborar o passado”. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/ano/mes/passado.htm.
[12] SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Companhia das letras, 1987.
[13] ADORNO, Theodor W. Aspekte des neuen Rechtsradikalismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 18.
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