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Resenha: Politiques de la vulnerabilité de Marie Garrau, por Cécile Lavergne

Por Cécile Lavergne
Tradução: Diogo Corrêa

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O texto original pode ser encontrado nesse link.

 

Podemos pensar na transformação social a partir da vulnerabilidade? Sim, explica Garrau, “mas para isso, precisamos definir o conceito de forma diferente e descrever todas as formas de desigualdade que, em nossas sociedades, nos despontencializam e nos sujeitam a muitas formas de violência”.

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A vulnerabilidade, como uma categoria de análise sociológica e um conceito filosófico, tem sido objeto de intenso interesse editorial[1]. Dentro da constelação agora fervilhante deste trabalho, Marie Garrau constrói um paradigma denso e original das políticas da vulnerabilidade e se propõe tanto a repensar o conceito de autonomia quanto a esboçar uma teoria da justiça social. O gesto teórico da autora de defender uma centralidade da vulnerabilidade propõe pistas decisivas para a renovação da filosofia política contemporânea.

Devemos ter medo da vulnerabilidade?

Se devemos nos livrar de nossos medos da vulnerabilidade, é antes de tudo porque vivemos em um mundo estruturado em torno do “mito da autonomia”[2], uma autonomia pensada como prerrogativa de um sujeito racional, dono de sua vida e destino, e detentor de uma liberdade que não deve de nenhuma forma ser impedida. Porque este mito fundador atravessa a história do liberalismo político, Marie Garrau se posiciona desde o início como um contraponto à teoria Rawlsian, e se volta para filósofos atentos a uma antropologia da vulnerabilidade (Martha Nussbaum, Joan Tronto, Axel Honneth, principalmente[3]).

Entretanto, a tarefa está longe de ser fácil, pois a vulnerabilidade sofre de uma forma de proliferação generalizada, no campo das políticas públicas, por um lado, e no campo acadêmico, por outro. Esta viralização lança dúvidas sobre su alcance descritivo e analítico em função da possível objeção acerca de sua indefinição terminológica. Além desta crítica epistemológica, o conceito também recebe objeções concernentes à esfera mais propriamente política: ele é criticado por produzir efeitos estigmatizantes sobre os grupos sociais que ele designa, pelo fato de justificar políticas paternalistas e até mesmo miserabilistas, e por constituir uma nova economia de poder[4]. Apesar destas armadilhas, Garrau defende sua centralidade teórica, por meio de um trabalho de clarificação, a fim de promover “para todos, condições de autonomia concebidas como relacionais e expressivas” (p. 251).

Vulnerabilidade fundamental e vulnerabilidade problemática

A ideia central do livro é que, para “diminuir o estigma ligado àqueles que não exibem a independência, garantia ou determinação comumente associada à autonomia” (p. 339), é necessário repensar a política a partir de uma vulnerabilidade comumente compartilhada.

Para estabelecer esta tese, Marie Garriau estabelece a distinção entre vulnerabilidade fundamental e vulnerabilidades problemáticas: “Levar a vulnerabilidade a sério implica (…) considerar a vulnerabilidade sob dois aspectos: a) como uma estrutura de existência comum – nos referimos a ela aqui como ‘vulnerabilidade fundamental’; b) cuja intensidade pode aumentar desigualmente em certos contextos sob efeito de processos sociais específicos, nos referiremos a ela aqui como vulnerabilidade problemática” (p. 339). “(p. 19-20) O primeiro significado refere-se assim à nossa condição comum encarnada, que impõe uma abertura à possibilidade de ferir-se, lesionar-se, de enlutar-se, de adoescer; mas também à dependência essencial das relações que sustentam nossa existência (relações de reconhecimento, de cuidado). O segundo sentido traz à tona a intensificação socialmente produzida da vulnerabilidade fundamental sob o efeito da lógica da desafiliação, da estigmatização, da desqualificação social, ou mesmo de dominações cruzadas.

Uma das principais contribuições deste livro consiste em repensar o conceito de autonomia. A vulnerabilidade fundamental não é a negação ou o reverso de uma autonomia supostamente primária; pelo contrário, ela é aquilo a partir do que a própria autonomia deve ser constituída coletivamente e até mesmo performada: dependente da relação com o outro, com o mundo, com a comunidade, com as instituições, com a “natureza”, essa autonomia está permanentemente posta em questão.  Marie Garrau considera que é preciso concebê-la como expressiva e relacional. Expressiva, antes de tudo, no que se refere ao poder que ela possui de expressar o que valorizamos. Ela baseia-se em disposições subjetivas de autoconfiança, no exercício e no emprego da razão, mas também da imaginação como capacidade de projetar e reinventar novas possibilidades de existência. Em segundo lugar, a autonomia é relacional: ela só pode ser realizada com a condição de que o sujeito esteja permanentemente inscrito nas relações de cuidado, respeito e reconhecimento mútuo – como mostra o trabalho de Martha Nussbaum, Joan Tronto e Axel Honneth[5].

Desta forma, Marie Garrau traz à tona as implicações éticas da vulnerabilidade. Embora a autonomia dependa de um conjunto de relações interpessoais, ela nos impõe uma série de obrigações mútuas. Entretanto, manter uma postura ética simples implicaria uma forma de renúncia: as denegações de reconhecimento, experiências de injustiça seriam então consideradas apenas como falhas morais individuais, enquanto que elas têm condições sociais e institucionais. O diagnóstico dos mecanismos sociais que intensificam a vulnerabilidade fundamental parece então ser uma condição necessária da análise: precariedade material, isolamento afetivo, desemprego, estigmatização, violência simbólica e social são obstáculos, para certos indivíduos e grupos sociais, à construção da autonomia. Sua descrição, cujas fontes são extraídas da sociologia de Robert Castel e Serge Paugam em particular[6], não pode ser limitada a uma escala interpessoal ou interacional, mas deve ser articulada com uma análise das instituições, normas e estruturas sociais que condicionam os contextos sociais nos quais são produzidas as recusas de cuidado e e negações reconhecimento: isso é evidenciado, por exemplo, pela tendência geral de fragmentação e individualização das proteções sociais, que impedem o acesso de um grande número de indivíduos ao emprego estável e à cidadania social, e produz efeitos conjugados de desqualificação social e degradação estatutária (p. 188, p. 200).

Enfim, uma ética de vulnerabilidade, se ela quer ter um horizonte político, deve também abordar todas as representações socialmente aceitas que apoiam, justificam e contribuem para reproduzir os compartilhamentos desiguais das vulnerabilidades problemáticas. A teoria da dominação, inspirada em particular pelo feminismo materialista[7], deve contribuir para subverter a lógica da indiferença à vulnerabilidade de outrem, assim como os efeitos estruturais que podem dificultar a resistência e a transformação social. Os estereótipos que disciplinam os corpos e práticas são, com efeito, em grande medida partícipes de uma economia de poder suscetível de tornar caducas as perspectivas de refundação da justiça social.

Que políticas de vulnerabilidade?

Se se trata de repensar a justiça social a partir da centralidade da vulnerabilidade, a própria justiça social não pode ser limitada a uma redistribuição de “direitos de base iguais e de bens primários” (p. 317), sem reproduzir os efeitos do estigma sobre os grupos vulneráveis. Evitar esta armadilha tornar necessário levar em conta os conteúdos emancipatórios que se expressam nas experiências de desprezo, mas também de protesto e revolta. É por isso que, no terreno de uma teoria institucional, a política da vulnerabilidade deve pensar conjuntamente sobre as condições de uma democracia inclusiva e de uma democracia de contestação. A tradição do republicanismo[8], que deriva sua força “do ideal político que ela defende como forma de justificar a luta contra os processos sociais de vulnerabilidade e a promoção de condições relacionais e sociais da autonomia” (p. 231), oferece precisamente um quadro teórico consequente para formalizar as políticas da vulnerabilidade em três níveis: o da concepção da democracia, o das políticas sociais e, finalmente, o das virtudes republicanas; em outras palavras, as condições interpessoais que permitem estabelecer uma ética de reconhecimento.

A ideia de democracia de contestação emprestada de Philip Pettit defende de fato a ideia de que o povo pode trazer correções às leis e, portanto, que as reivindicações de cuidado, respeito e estima, trazidas pelos conflitos sociais, devem ser capazes de influenciar sua definição e a determinação de políticas públicas. Isto requer a articulação entre protesto e participação, como argumenta Isolde Honohan[9], para que cada minoria tenha uma voz audível na arena pública democrática e possa participar das deliberações coletivas.

Essa definição de democracia inclusiva, entretanto, é apenas a condição necessária, mas não suficiente, para uma verdadeira política de vulnerabilidade. Em um segundo sentido, ela deve abordar as desigualdades materiais e simbólicas. Marie Garrau recorre então ao trabalho de Stuart White[10] com o intuito de pensar uma forma de estado social capaz de “neutralizar, corrigir ou compensar todas as desigualdades arbitrárias do ponto de vista moral” (p. 319). A este respeito, ela discute propostas concretas, como o estabelecimento de um mínimo cívico, um capital inicial ou a tributação de heranças e doações interpessoais. Enfim, é porque as leis e as políticas públicas devem ser transmitidas pelo comportamento individual – em outras palavras, é porque existe uma complementaridade íntima entre a ética e a política de vulnerabilidade –, que o Garrau argumenta in fine pela teoria das virtudes republicanas[11]: “os fins comuns não podem ser alcançados e as instituições não podem perdurar se os cidadãos não implementarem disposições e virtudes específicas” (p. 329). Segundo a autora, é com esta condição que os cidadãos podem se tornar sensíveis à interdependência e à vulnerabilidade comum.

Tornar-se coletivamente sensível à vulnerabilidade fundamental e às vulnerabilidades problemáticas. Esta palavra de ordem tácita do livro esbarra, contudo, nas resistências sociais, políticas e imaginárias, que impedem a desconstrução do mito da autonomia, e que está no cerne de nossos jogos de linguagem, desconstrução sem a qual a política da vulnerabilidade corre o risco de ficar confinada a um conjunto de arranjos institucionais ineficazes e estigmatizantes. Como Wendy Brown observa quando questiona a “fábrica do desejo político contemporâneo”[12], toda a dificuldade de um tal programa reside nas dinâmicas afetivas do “ressentimento, da vingança e da vontade de potência contrariada” (ibid.), que reforçam a impotência política ao difratar falsamente as causas sobre os mais vulneráveis. Como evitar que as políticas da vulnerabilidade sejam recuperadas por um “liberalismo autoritário” e integrada em seu repertório prático para conter os conflitos sociais, a “sociedade dos ingovernáveis”[13] (ibid.)? Mesmo que isto vá além do projeto do livro, saber como armar as políticas da vulnerabilidade contra as crises que hoje fissuram os horizontes da emancipação – a crise do capitalismo, a crise ecológica –, permitiria ampliar a análise na direção de uma crítica das violências contemporâneas, sem deixar de levar em conta as relações de cuidado e reconhecimento que também se tramam com os seres, humanos e não humanos, ambientes e contextos com os quais somos interdependentes.

Apesar destas zonas de opacidade, a proposta defendida neste livro, longe de cair nas “infelizes formulações de uma identidade enraizada na lesão” (ibid.), implica em restaurar um sentido forte e denso da política como uma construção do comum e como emancipação.

Livro resenhado: Marie Garrau, Politique de la vulnérabilité, CNRS Éditions, 2018, 369 p, 25 euros.

Para citar este post: 

LAVERGNE, Cécile. Todos vulneráveis: a propósito de Marie Garrau, Politique de la vulnerabilité. (Tradução de Diogo Silva Corrêa). Blog do Labemus, 2020. [publicado em 09 de novembro de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/11/09/todos-vulneraveis-a-proposito-de-marie-garrau

Notas:

[1] Para citar apenas alguns trabalhos recentes, mencionaremos por exemplo Michel Naepels, Dans la détresse, une anthropologie de la vulnérabilité, Paris, Edições EHESS, 2019; Estelle Ferrarese, La fragilité du souci des autres, Lyon, Edições ENS, 2018; Judith Butler, Ce qui fait une vie. Essai sur la violence, la guerre et le deuil (2009), traduzido por. J. Marelli, Paris, Zone, 2010; Guillaume Le Blanc, Que faire de notre vulnérabilité, Montrouge, Bayard, 2011; V. Châtel e Sh Roy (dir.), Penser la vulnérabilité. Visages de la fragilisation du social, Québec, Presses universitaires du Québec, 2008.

[2] Joan Tronto, Un monde vulnérable. Pour une éthique du care (1993) trad. H. Maury, La découverte, 2008.

[3] Martha Nussbaum, La fragilité du bien. Fortune et Éthique dans la littérature et la philosophie grecques (1986), trad. G. Colonna d’Istria et R. Frapet, Éditions de l’Éclat, 2016 ; Joan Tronto, Un monde vulnérable. Pour une éthique du care (1993), trad. H. Maury, La découverte, 2008 ; Axel Honneth, La lutte pour la reconnaissance. La grammaire morale des conflits sociaux (1992), trad. P. Rusch, Cerf, 2002 ; Axel Honneth, « L’autonomie décentrée. Les conséquences de la critique moderne du sujet pour la philosophie morale (1993), trad. M.-N. Ryan, in M. Jouan (dir.), Psychologie morale. Autonomie, responsabilité et rationalité pratique, Vrin, 2008, p. 347-363.

[4] Hélène Thomas, Les vulnérables. La démocratie contre les pauvres, Éditions du Croquant, Broissieux, 2009.

[5] “Para que as pessoas fundamentalmente vulneráveis sejam capacitadas… é importante que elas sejam objeto de diferentes formas de reconhecimento, tais como cuidado, respeito e estima”. (p. 340)

[6] Robert Castel, Les métamorphoses de la question sociale. Une chronique du salariat, Paris, Gallimard, 1999 ; Serge Paugam, Le lien social, Puf, 2008.

[7] Colette Guillaumin, Sexe, race et pratique de pouvoir. L’idée de Nature, Paris, Côté Femmes, 1992.

[8] Philip Pettit, Républicanisme. Une théorie de la liberté et du gouvernement (1997), trad. P. Savidan et J.-F. Spitz, Gallimard, 2004 ; Cécile Laborde, Critical Republicanism. The Hijab Controversy and Political Philosophy, Oxford, Oxford University Press, 2008.

[9] Iseult Honohan, Civic Republicanism, Londres et New York, Routledge, 2002.

[10] Stuart White, The Civic Minimum. On the Rights and Obligation of Economic Citizenship, Oxford, Oxford University Press, 2003.

[11] A autora se baseia nas análises de Cécile Laborde (Critical Republicanism, op. cit.) que defendem a importância das virtudes republicanas à luz da vigilância cívida, da coragem de fazer escutar sua voz, da atenção ao outro e da humildade moral.

[12] Wendy Brown, Politiques du stigmate, pouvoir et liberté dans la modernité avancée, [1995], « Pratiques théoriques », trad. Céline Van Caillie, Puf, 2016, p. 5.

[13] Grégoire Chamayou, La société ingouvernable. Une généalogie du libéralisme autoritaire, La Fabrique, 2018.

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