Por Bertrand Valiorgue
Tradução: Lucas Faial Soneghet (IFCS-UFRJ)
O texto original pode ser encontrado nesse link.
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Qual será a agricultura de amanhã? Ainda haverá espaço para a agricultura? É certo que chegou a hora de uma reformulação completa de um modelo agora obsoleto. Este ensaio considera alguns cenários possíveis.
A agricultura é o mais antigo dos problemas que as sociedades humanas enfrentaram. Ao longo de sua história, as sociedades ocidentais e as instituições que as governaram lutaram contra a fome, as crises alimentares e a escassez de alimentos que dizimaram as populações e comprometeram todas as formas de progresso social, cultural e econômico. Essa dura realidade ainda é a de muitos países. A mudança para a era geológica do Antropoceno traz de volta essas questões e requer uma revisão completa de nosso modelo agrícola.
Agricultura, a primeira vítima do Antropoceno
Os sistemas alimentares que o Ocidente conseguiu implantar após a Segunda Guerra Mundial provaram ser inquestionavelmente bem-sucedidos em termos de quantidade e qualidade dos alimentos postos à disposição do maior número a um custo que não parou de diminuir. Desde o início dos anos 1950, a parcela dos gastos dos ocidentais com alimentos foi dividida por cinco. Os orçamentos familiares para alimentação agora representam uma fração modesta das despesas correntes, que na França estão em torno de 14%.
Essa garantia das necessidades alimentares não veio do céu. É o resultado de um gigantesco trabalho de transformação da agricultura que tem levado países ocidentais a desenvolverem políticas públicas para transformar as práticas agrícolas visando, ao mesmo tempo, aumentar os volumes de produção, gerar variedade de alimentos e reduzir a parcela do gasto dedicado à comida. As políticas agrícolas da Europa e dos Estados Unidos não têm paralelos na história da humanidade e apenas a vontade política constante foi capaz de conduzir à soberania alimentar como a conhecemos agora no Ocidente (Pisani, 1994).
Hoje em dia tudo é pensado no Ocidente como se a questão agrícola e alimentar estivesse definitivamente ultrapassada. No entanto, uma simples olhada em nossos sistemas alimentares revela as imensas fraquezas que, se não forem controladas, podem desfazer décadas de progresso e esforço. Essa grande fragilidade vem de uma transformação profunda e irreversível do sistema Terra que se reflete em uma mudança para uma nova época geológica: o Antropoceno.
Sem dúvida, a parte mais visível e discutida dessa mudança na era geológica do Antropoceno é o aumento das temperaturas e as mudanças climáticas. Esse aumento gradual nas temperaturas em um ritmo e níveis difíceis de estabilizar, entretanto, é apenas uma fração das mudanças que estão ocorrendo hoje. Uma série de mudanças estão em andamento. Mudanças que provocarão o surgimento de um planeta com características e métodos de operação completamente novos (Bonneuil & Fressoz, 2016). A atividade agrícola é diretamente afetada por essas mudanças.
As plantas e animais que os humanos levaram milhares de anos para domesticar estão cada vez menos adaptados às características do sistema Terra emergente. Isso significa duas coisas. Por um lado, o conhecimento adquirido para controlar os ciclos biológicos das atuais espécies vegetais e animais está se tornando cada vez mais obsoleto, pois esse conhecimento só é válido em condições pedoclimáticas[1] conhecidas e estáveis. Um novo clima significa um novo comportamento de plantas e animais, novas patologias e, portanto, novas práticas agrícolas que devem ser inventadas, testadas e aprendidas. Por outro lado, este novo sistema Terra implica logicamente o interesse por novas variedades de plantas ou animais mais adaptadas ao novo clima e que não foram ou foram muito pouco mobilizadas no quadro da atividade agrícola. É necessário, portanto, embarcar na exploração de ciclos biológicos (animais ou plantas) cujas características são mal conhecidas ou desconhecidas pelos agricultores.
O sistema Terra está mudando diante de nossos olhos e nunca encontrará o equilíbrio e a grande estabilidade que conhecemos. A agricultura e nossos sistemas alimentares estão fortemente envolvidos, pois as mudanças no sistema Terra alteram o comportamento de plantas e animais, que não reagem mais da mesma maneira. Há menos água, mais luz, mais CO2 na atmosfera, mais eventos extremos, menos biodiversidade. Estamos entrando em um mundo em que a agricultura se tornará cada vez mais complicada, incerta e cara, senão simplesmente impossível em algumas regiões.
Um protesto e uma conscientização
A mudança para a era geológica do Antropoceno não é apenas uma crise ambiental. É de fato uma transformação importante e irreversível do sistema Terra que enfraquece consideravelmente não somente os fundamentos da atividade agrícola, mas também sua legitimidade. Nessas condições, se a atividade agrícola não conseguir se reinventar, os riscos de desaparecimento total não podem ser desconsiderados.
De fato, estamos testemunhando o surgimento e a estruturação de poderosos movimentos sociais que atacam a agricultura de frente e denunciam sua contribuição para a desestruturação do sistema Terra. Peter Singer, um dos principais teóricos do anti-especismo, argumenta, por exemplo, que a melhor maneira de combater o aquecimento global é simplesmente acabar com a criação industrial de animais cuja pegada ecológica é particularmente significativa (Singer, 1995). Em um ensaio altamente polêmico publicado em 1987, Jared Diamond argumentou que a agricultura é “o maior erro da história da raça humana”. Para esse intelectual de renome internacional, a agricultura reduziu consideravelmente a diversidade alimentar por meio da seleção de algumas espécies que colocam as sociedades em risco de fome. A agricultura também é acusada de institucionalizar diferenças de classe e hierarquias sociais das quais nossas sociedades contemporâneas são herdeiras diretas. Mais fundamentalmente, a perspectiva de Diamond é construída em torno de uma visão malthusiana. A agricultura mantém a possibilidade ilusória de um aumento ilimitado da população humana que deve ser nutrida por uma agricultura cada vez mais produtiva (Diamond, 1987, 2005).
Esses desenvolvimentos intelectuais e filosóficos são amplamente adotados e desenvolvidos por movimentos sociais e ONGs que levam a opinião pública ocidental a testemunhar a fim de iniciar mudanças mais ou menos radicais na agricultura. Eddy Fougier, um dos poucos especialistas em movimentos sociais que critica a agricultura, identifica cinco grandes categorias de ativistas. Esses ativistas não têm a mesma identidade ou os mesmos métodos de operação, mas suas ações visam politizar as questões em torno de certas práticas agrícolas a fim de obter reformas regulatórias e legislativas (Fougier, 2016, 2018):
ONGs especializadas: Esses atores têm um bom conhecimento de agricultura e práticas agrícolas. Eles visam, preferencialmente, certas fazendas ou agentes da agroindústria para denunciar práticas que consideram inadequadas. Encontramos aqui organizações como L214, Combat Monsanto, OGM Dangers ou mesmo as gerações futuras. Como aponta Fougier, esses ativistas especializados profissionalizaram suas técnicas de comunicação. Eles têm alta visibilidade e meios de comunicação poderosos que defendem suas causas. Eles têm impactos fortes e estruturantes na opinião pública.
ONGs generalistas: Essas organizações não são especializadas em agricultura, mas suas lutas e projetos de reforma tocam em questões agrícolas ocasionalmente. Encontramos aqui uma categoria de ONGs consolidadas que têm acesso privilegiado aos tomadores de decisão e à esfera política (WWF, FNH, FNE, Greenpeace, Fundação Brigitte Bardot, Oxfam, Attac…). Essas estruturas têm capacidades de influência significativas e alguns de seus líderes praticam o que os anglo-saxões chamam de “porta giratória”. Tal prática consiste em passar da esfera política para a esfera ativista várias vezes durante a carreira profissional. Yannick Jadot, Nicolas Hulot, Cécile Duflot são as personalidades mais conhecidas que praticam este tipo de viagens de ida e volta.
Formadores de opinião e influenciadores: são indivíduos comprometidos que, por causa de suas produções científicas ou literárias, possuem uma aura e um público. Eles transmitem ideias e influenciam representações. As autoridades públicas às vezes pedem relatórios e missões para eles, o que dá visibilidade ao seu pensamento. Também são encontrados em think tanks e fundações que apoiam e divulgam suas produções intelectuais.
Associações de vítimas: Fougier nota que as associações de vítimas e a defesa dos direitos também são atores que influenciam fortemente as representações e o entendimento da opinião pública. As batalhas que travam e que divulgam têm forte ressonância. Os múltiplos julgamentos do agricultor Paul François contra a Monsanto são um exemplo emblemático dessas vítimas e associações de vítimas cujas batalhas amplamente divulgadas estão se espalhando por toda a sociedade civil.
Grupos radicais: Esta categoria de ativista não se contenta com discursos e slogans que circulam nas redes sociais e meios de comunicação tradicionais. Eles agem e frequentemente com violência. Aqui encontramos os Reapers Voluntários, a Abolição Boucherie e a Frente de Libertação Animal. Esses ativistas invadem fazendas ou determinados estabelecimentos e os destroem deliberadamente. Essas ações violentas geralmente têm fortes ecos na imprensa e na mídia. Eles modificam as crenças e representações da sociedade civil.
Esses movimentos sociais estão se multiplicando na França e na maioria dos países ocidentais. Agora, estão tendo efeitos significativos na opinião pública e na esfera política. Também possuem uma tradução econômica direta que resulta no surgimento de empresários e investidores cuja razão de ser é oferecer alternativas à agricultura para atender às necessidades de proteína animal e vegetal do ser humano. De fato, estamos observando o aumento dos investimentos para a realização de pesquisas e projetos industriais em torno do que se inadequadamente de agricultura celular. A agricultura como a conhecemos hoje consiste em controlar todo o ciclo biológico desde o nascimento/plantio até a colheita/abate, incluindo a fase de crescimento/criação de uma planta ou de um animal. Esses ciclos variam de um ano a vários anos. A chamada agricultura celular desconsidera completamente esses ciclos biológicos e baseia sua produção de alimentos na multiplicação de células animais ou vegetais em laboratórios utilizando os conhecimentos e recursos oferecidos pelas biotecnologias.
A ideia muito simples do cultivo de células é começar com células-tronco retiradas de um animal vivo e depois multiplicá-las. Por meio da injeção de fluido nutritivo contendo proteínas e hormônios de crescimento, essas células-tronco acabam se tornando verdadeiros pedaços de carne que são comidos pelos humanos. O primeiro hambúrguer desenvolvido a partir de um pedaço de carne celular foi produzido em 2013 pela empresa Mosa Meat, localizada na Holanda. Desde esta primeira operação da Mosa Meat, os custos de produção de carne celular caíram consideravelmente. Alguns analistas agora estão apostando em um declínio de 50% na pecuária industrial até 2030, como resultado do uso generalizado de técnicas de produção de carne celular.
Seguindo essas tecnologias, não há mais necessidade de alimentar, cuidar e abater os animais. Essas atividades agrícolas são, de fato, muito poluentes e desgastantes em termos de recursos naturais. A carne é então “cultivada” em biorreatores, e é possível eliminar a pecuária e todas as operações agrícolas de uma ponta a outra. Isso também elimina todas as formas de sofrimento animal. Hoje em dia, somas consideráveis estão sendo injetadas nessa tecnologia, e algumas start-ups agro-tecnológicas já se enxergam como futuros gigantes agroalimentares no lugar das corporações que dependem da pecuária.
A mesma técnica pode ser desenvolvida para proteínas vegetais. Hoje é possível começar com células vegetais para fazer o que também é indevidamente chamado de “bifes de vegetais”, que contêm os nutrientes e proteínas necessários para a dieta humana. O operador industrial mais avançado hoje é Beyond Meat. Esta empresa produziu o seu primeiro bife vegetal em 2015 e agora é capaz de produzir bifes vegetais com textura e sabor semelhantes aos de frango, bovino ou porco.
Grandes capitães da indústria como Richard Branson e Bill Gates estão muito entusiasmados com a capacidade dessas tecnologias, que qualificam como tecnologias disruptivas (Gates, 2019). Os investimentos e a arrecadação de fundos são substanciais, graças à atenção que essas tecnologias de substituição agrícola têm atraído de ricos empresários e fundos de investimento. A americana Memphis Meats já foi financiada com mais de $ 180 milhões desde sua fundação em 2015. A empresa tem uma liderança significativa em carne celular e seus novos investidores desejam posicionar o desenvolvimento da empresa na escala do globo. A americana Perfect Day, especializada na produção de proteínas à base de leite, arrecadou mais de US $ 160 milhões em 2019. A Meatable, empresa holandesa, se beneficiou de várias dezenas de milhões de dólares ainda em 2019. Mas o recorde de arrecadação de fundos para 2019 vai para a empresa americana Beyond Meat, que arrecadou mais de US $ 240 milhões de investidores para continuar sua pesquisa e desenvolvimento comercial.
Agricultura tradicional contra a parede
Os movimentos sociais e os empresários de alimentos celulares são as duas faces de um vasto e profundo movimento que visa legitimar e trazer tecnologias alternativas para a agricultura tradicional na era do Antropoceno. Esses movimentos sociais e empresariais necessariamente exigem uma resposta da profissão agrícola. É impossível manter o status quo do ponto de vista político e climático.
Assim como outros setores, a atividade agrícola foi indiscutivelmente responsável pelo surgimento do Antropoceno. Esta responsabilidade não pode ser negada e a crescente sensibilidade da opinião pública para com as alterações climáticas contribuirá para colocar cada vez mais luz e pressão sobre este setor. Os vários militantes que estão a ataca-lo estão de certo lucrando com a situação, porque é certo que nos próximos anos irão beneficiar de cada vez mais apoios políticos e financeiros. Eles vão intensificar o protesto contra a agricultura. A profissão agrícola não poderá ficar indiferente a essas pressões e demandas. Deverá fornecer respostas claras e definir uma nova trajetória em linha com as expectativas da sociedade.
A profissão agrícola também não pode se permitir a opção da inércia do ponto de vista dos fundamentos de sua atividade. Vimos que o Antropoceno muda o comportamento de plantas e animais. Os agricultores terão necessariamente que encontrar e responder a essas mudanças ou ver o colapso da produção. A atividade agrícola está se tornando fundamentalmente incerta e a profissão deve embarcar no desenvolvimento de conhecimentos e instituições capazes de garantir rendimentos e receitas. Sem essa nova dinâmica de progresso agronômico, o custo dos alimentos aumentará consideravelmente, levando a um grande enfraquecimento de nossos sistemas econômicos e a grandes desafios políticos tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento.
Três grandes cenários emergem dessas transformações fundamentais que afetam o setor agrícola.
O colapso: Neste cenário, a entrada na era do Antropoceno está na origem de rupturas muito significativas que levam a aumentos consideráveis do custo dos alimentos em um contexto de urbanização e aumento da população mundial. A agricultura não pode mais alimentar a humanidade. Segue-se uma considerável perturbação política e econômica que leva ao colapso das sociedades como as conhecemos hoje. Nosso sistema econômico é dominado por essas contradições e sua relação estruturalmente deficiente com a natureza. O “despertar de Gaia” gerado pela atividade humana torna impossível alimentar os humanos (Latour, 2017). Estamos entrando em uma crise estrutural que exige a superação do sistema. Esse é o cenário dos colapsólogos, amplamente presentes nas livrarias e discutidos na sociedade civil. Seguindo esse cenário de colapso, que dependendo do grau de pessimismo dos autores varia da escala da década à do século, é difícil ver qual agricultura surgirá. Trata-se de voltar à agricultura de subsistência, capaz de fornecer meios e recursos para que os cidadãos ganhem autonomia alimentar, ou de fazer dos centros urbanos locais de produção de alimentos? Autores que apostam no cenário de colapso parecem mais preocupados em descrever o inevitável do que em antever e encontrar soluções. Essa atitude profundamente pessimista e paralisante é denunciada por Catherine e Raphaël Larrère que mostram que, embora o Antropoceno seja de fato uma certeza, o cenário de desastre não é inevitável (Larrère & Larrère, 2020).
A Grande Substituição: Nesse cenário, a agricultura torna-se uma tecnologia obsoleta. A mudança climática está reduzindo a produtividade e aumentando o custo dos alimentos. A biotecnologia e a alimentação celular estão se desenvolvendo após grandes investimentos. Tensões políticas e preocupações com as mudanças climáticas estão levando os consumidores a aceitar esmagadoramente os alimentos celulares. Essas tecnologias alternativas também têm o mérito de baratear os custos dos alimentos e relançar uma dinâmica de consumo que promova o desenvolvimento econômico. A parcela de alimentos e proteínas da agricultura tradicional está claramente em minoria. A humanidade está reconfigurando sua dieta e está mudando sua própria natureza. Essa grande substituição deve estar ligada aos movimentos filosóficos e científicos do transumanismo que visam fazer surgir um novo homem que se emancipa de sua condição natural e redefine, entre outras coisas, a forma como se alimentará. Enquanto ativistas[2] e empreendedores da nutrição celular veem apenas méritos nessa tecnologia para a produção de proteínas, alguns pesquisadores mostram que essa tecnologia tem efeitos colaterais muito importantes no meio ambiente (Lynch & Pierrehumbert, 2019). Requer muita energia para atingir o crescimento celular, e seus rendimentos não mostraram ser maiores do que certas práticas tradicionais de criação, que estão mais preocupadas com sua pegada ambiental.
Nesse sentido, o alimento celular pode contribuir diretamente para o aquecimento global e a desorganização do sistema Terra. Além disso, os nutrientes e líquidos que são usados hoje para gerar o crescimento celular requerem a produção em massa e o abate de animais vivos dos quais esses nutrientes são retirados. A alimentação celular, portanto, não elimina o sofrimento dos animais e a necessidade de criação intensiva. Outros trabalhos mais orientados para as ciências sociais e políticas também destacam os riscos de uma dieta de duas camadas. Os segmentos mais ricos da população continuarão a comer com base em alimentos tradicionais de qualidade, enquanto a massa da população irá ingerir alimentos celulares destinados a cobrir suas necessidades fisiológicas de proteína. Por trás da retórica progressista e do slogan “alimente sem destruir o planeta”, que é o mantra da nutrição celular, encontram-se muitas contradições e poderosos interesses científicos e econômicos que estão em processo de fusão (ver Luneau, 2020 para uma descrição). Essa substituição da agricultura tradicional por alimentos celulares apresenta importantes questões políticas e éticas cuja resolução é difícil de se ver (Sexton, 2018).
O novo contrato social: neste terceiro cenário, as biotecnologias e os alimentos celulares não cumprem todas as suas promessas e são recusados pelas populações. A agricultura é mantida, mas deve passar por uma grande mudança para manter o custo dos alimentos em contextos pedoclimáticos em constante mudança. Deve também mostrar que é capaz de reparar o sistema Terra por meio da adoção de práticas que vão muito além da neutralização de impactos. Com a adoção de novas práticas, a agricultura passa a ser uma atividade com pegada ecológica positiva. É capaz de reparar e compensar os impactos negativos de outros setores de atividade. Com base nesta agricultura regenerativa, os atores do setor firmam um novo contrato social cujos termos são bastante simples: alimentar o mundo reparando o planeta.
Os quatro pilares da agricultura regenerativa
De qualquer forma, é inevitável que a agricultura mude. Terá que fazer isso por razões geológicas, econômicas e políticas. A escala e a brutalidade das mudanças não são as mesmas dependendo dos cenários que surgem. No entanto, a mudança do Antropoceno irá, em todos os casos, resultar no desenvolvimento mais ou menos obrigatório e rápido da agricultura regenerativa construída em torno de quatro objetivos:
Limitando a pegada ambiental: A pegada ambiental da atividade agrícola é considerável. Agora sabemos a extensão disso. Para limitar ou interromper essa pegada ambiental, a agricultura regenerativa deve ir além de certas tecnologias e inventar novas práticas agronômicas ou zootécnicas. O objetivo é realizar o que Michel Griffon chama de “uma revolução duplamente verde e uma agricultura ecologicamente intensiva” (Griffon, 2011; Griffon & Weber, 1996). Hoje, existem muitos gargalos industriais e científicos que bloqueiam o progresso agronômico. Em vez de estarem sujeitos a tecnologias e de ter padrões agrícolas obsoletos impostos a eles, os agricultores devem exigir novas soluções de todos os operadores públicos e privados. Os agricultores devem posicionar-se como ativistas do progresso agronômico e zootécnico, em vez de apoiar a situação econômica de certos industriais da agroindústria. Um exemplo é suficiente para esclarecer nosso ponto. As leguminosas são plantas ricas em proteínas e também têm a notável propriedade de fixar nitrogênio. Eles alimentam humanos e podem fixar nitrogênio no solo. O nitrogênio é então usado por outras culturas mais gananciosas, como os cereais, sem a necessidade de fazer insumos artificiais por meio de fertilizantes. No entanto, o peso das leguminosas em comparação com os cereais é menor. Este é o resultado de escolhas políticas e econômicas que levaram ao favorecimento dos cereais. Se as empresas e organizações de pesquisa tivessem se esforçado para promover as leguminosas, poderíamos ter limitado muito os efeitos que vemos hoje. Nesse estado de espírito, um conjunto de tecnologias e know-how estão surgindo em torno da agricultura de conservação do solo, que depende de uma diversidade de espécies de plantas e rotações inteligentes que levar à regeneração do solo. Dinâmicas semelhantes são possíveis na pecuária, a fim de reduzir e/ou usar de forma inteligente os efluentes e reduzir a mobilização maciça de antibióticos. A agricultura regenerativa limita sua pegada ambiental e abre caminho para um novo progresso agronômico e zootécnico do qual os agricultores são os primeiros promotores.
Reparando a Atmosfera: Um dos elementos essenciais que explica a mudança na era geológica do Antropoceno é o aquecimento global. Esse aquecimento é gerado em grande parte por um aumento no conteúdo de CO2 na atmosfera. Algumas práticas agrícolas levam a uma pegada de carbono negativa, enquanto outras podem levar a uma pegada marcadamente positiva. Esta é a magia dos seres vivos, que dependendo dos comportamentos que induzimos, podem se comportar de maneiras fundamentalmente diferentes. A forma como o solo é cultivado na atividade agrícola é decisiva em sua capacidade de armazenar ou liberar carbono. Arar e revolver o solo, por exemplo, é uma prática que resulta na liberação maciça de carbono na atmosfera. O carbono armazenado no solo pela atividade das plantas e de suas raízes é liberado na atmosfera em proporções consideráveis. Uma tonelada de carbono armazenada no solo equivale a 3,6 toneladas de CO2 armazenadas na atmosfera. A agricultura pode ser uma atividade que desempenha um papel importante na remoção de CO2 da atmosfera e no armazenamento do mesmo como carbono no solo, se adotar certas práticas como a ausência de lavoura, cobertura vegetal permanente e misturas de espécies vegetais. Em uma área de um hectare, o aumento de 1% da matéria orgânica contida nos solos pode levar ao armazenamento de 21 toneladas de carbono.[3] Isso equivale a remover 75,6 toneladas de CO2 da atmosfera (Toensmeier, 2016). Ao adotar certas práticas, a agricultura regenerativa pode reverter fortemente a tendência e se tornar um setor que captura e armazena maciçamente o CO2 da atmosfera no solo.
Recuperando a biodiversidade: Recuperar a biodiversidade como parte da agricultura regenerativa é essencial. 75% da produção mundial de alimentos é hoje gerada por 12 espécies de plantas e 5 espécies de animais. O trabalho de botânicos revelou a existência de várias centenas de milhares de espécies de plantas (entre 300.000 e 500.000). Cerca de 30.000 deles são comestíveis. Hoje, 90% da ingestão de proteína vegetal é feita de trigo, milho e arroz. E se considerarmos o trigo, apenas quatro variedades sozinhas respondem por 70% da produção na França. Se ao longo de sua história a agricultura mobilizou milhares de plantas e espécies, o funcionamento atual da agricultura leva a uma redução considerável do campo de possibilidades, quando precisamos contar com novas espécies e variedades, seguindo as mudanças nas condições pedoclimáticas. A mesma dinâmica pode ser observada em animais. Dependemos de algumas espécies animais e os avanços da biotecnologia significam que, dentro da mesma espécie, dependeremos de uma linhagem e logo de indivíduos clonados indefinidamente por causa de seus rendimentos excepcionais. A concentração de fontes de proteína em algumas variedades animais e vegetais é racional em um ambiente natural onde as condições pedoclimáticas são conhecidas, estudadas e controladas. No momento em que esse ambiente natural muda, confiar nesse punhado de espécies representa um grande risco. A reintrodução da velha diversidade ou de novas espécies é um imperativo da agricultura regenerativa. Essa reintrodução não deve ocorrer em biobancos ou museus, mas em campos e fazendas.
Desenvolver um trabalho institucional contínuo: O Antropoceno vai gerar um novo comportamento de plantas e animais domésticos usados para consumo humano. Já dissemos que teremos de desenvolver novos conhecimentos para torná-los mais adaptáveis ou mesmo modificá-los para termos comportamentos e desempenhos nutricionais alinhados aos novos contextos pedoclimáticos que vão surgindo. Mudanças de comportamento também ocorrerão em plantas e animais silvestres, que terão novos comportamentos e reações. Crises de saúde causadas por contaminações entre espécies ou multiplicação de pragas como voos de gafanhotos são esperadas, antecipadas e gerenciadas. Em última análise, são todas as espécies domésticas e selvagens que se comportam de maneira diferente. Diante da incerteza biológica do Antropoceno, parece essencial desenvolver novos conhecimentos para se proteger contra riscos e danos potenciais, que podem ser muito significativos. O que alguns economistas e sociólogos chamam de trabalho institucional deve ser realizado. Este trabalho institucional consistirá em destruir certas instituições que não se adequam ao contexto do Antropoceno, em manter algumas que já se mostraram valiosas e em inventar outras novas. As instituições que serão objeto deste trabalho institucional são políticas (leis e regulamentos), agronômicas/zootécnicas (proteção dos ciclos biológicos) e, claro, econômicas (regulamentação e incentivos de mercado).
A questão agrícola e alimentar está diante de nós e, se nada for feito, nossas sociedades terão que enfrentar tensões significativas. O futuro do sistema Terra e o futuro de nossa alimentação estão agora nas mãos de uma profissão e de atores industriais que têm dificuldade em integrar os desafios do Antropoceno e se encaminhar para a agricultura regenerativa. Se quiserem controlar como comem, as sociedades ocidentais devem reivindicar politicamente essas questões. Devem considerar a agricultura não como uma simples atividade econômica que constitui o setor primário, mas como uma atividade essencial que molda nossa humanidade e nosso modo de ser no mundo.
Para citar este post:
VALIORGUE, Bertrand. O desafio agrícola do Antropoceno. (Tradução por Lucas Faial Soneghet). Blog do Labemus, 2020. [publicado em 12 de novembro de 2020]. Disponível: https://blogdolabemus.com/
Bibliografia:
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Diamond, J. (1987). The worst mistake in the history of the human race. Discover, May, 95-98.
Diamond, J. (2005). Collapse : How societies choose to fail or succeed. New York : Penguin.
Fougier, E. (2016). Animalistes, zadistes, néo-luddites : nouvelles menaces pour la sécurité des entreprises en France. Sécurité et stratégie, 24(4), 32-39.
Fougier, E. (2018). Le monde agricole face au défi de l’agribashing. Paris : FNSEA.
Gates, B. (2019). How we’ll invent the future, MIT Technology Review.
Griffon, M. (2011). Pour des agricultures écologiquement intensives. Paris: Éditions de l’Aube.
Griffon, M., & Weber, J. (1996). La révolution doublement verte : économie et institutions. Cahiers Agricultures, 5(4), 239-242.
Larrère, C., & Larrère, R. (2020). Le Pire n’est pas certain. Essai sur l’aveuglement catastrophiste. Paris : Premier Parallèle.
Latour, B. (2017). Facing Gaia : Eight lectures on the new climatic regime. New York : John Wiley & Sons.
Luneau, G. (2020). Steak barbare ; Hold-up vegan sur l’assiette. Paris : Éditions de l’Aube.
Lynch, J., & Pierrehumbert, R. (2019). Climate impacts of cultured meat and beef cattle. Frontiers in sustainable food systems, 3, 5.
Pisani, E. (1994). L’agriculture française et la politique agricole commune. Paris : Conseil économique et social.
Sexton, A. (2018). Eating for the post‐Anthropocene : Alternative proteins and the biopolitics of edibility. Transactions of the Institute of British Geographers, 43(4), 586-600.
Singer, P. (1995). Animal liberation. New-York : Random House.
Toensmeier, E. (2016). The carbon farming solution : a global toolkit of perennial crops and regenerative agriculture practices for climate change mitigation and food security. White River Junction : Chelsea Green Publishing.
Certains éléments de ce texte sont directement repris de l’ouvrage Refonder l’agriculture à l’heure de l’Anthropocène publié aux éditions le Bord de l’Eau (2020). L’auteur remercie chaleureusement l’éditeur d’avoir accepté de reproduire certains passages.
Notas:
[1] Condições que se referem a um clima interno de um determinado solo em função das condições sazonais de temperatura, umidade e composição da atmosfera.
[2] Veja o livro militante e ditirâmbico de Paul Shapiro, Clean meat: how growing meat without animals will revolutionize dinner and the world publicado em 2018 por Simon e Schuster.
[3] Especialistas em solo consideram a capacidade de armazenamento do solo de 30 a 50 toneladas por hectare.
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