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Relações de dependência: Vulnerabilidade corporal e normas de pessoidade em Hobbes e Kittay

Por Shiloh Y. Whitney
Tradução: Lucas Faial Soneghet

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Introdução: afirmando a pessoidade

O que valorizamos quando valorizamos a pessoidade[1]? Normas de pessoidade foram cruciais, especialmente para teorias políticas e éticas que surgiram desde as teorias do contrato social do proto-Iluminismo. Essas teorias marcam uma separação da noção de que a ordem social e política justa é dada pela natureza ou por uma divindade, ou mesmo derivada de uma natureza humana ideal. Em vez de afirmar a autoridade de um termo transcendente – natureza, deidade ou um ideal – teorias políticas liberais marcam o advento de um solo mais imanente para a ordenação das relações humanas: o sujeito político ela mesma. Se a ordem política deve ser de tal modo que pessoas enquanto pessoas consentem a ela, então a tarefa da teoria política é determinar como melhor afirmar a pessoidade. Então, nessa tradição, a afirmação da “pessoa” é a primeira norma política. As teorias nessa tradição se apoiaram na independência como norma de pessoidade: devemos afirmar a autonomia, pois ela define a pessoidade normativa, enquanto a heteronomia a ameaça.

Mas noções de pessoidade enfrentaram bastante revisão filosófica crítica desde o século XVII. A teoria política feminista contribuiu significativamente para uma crítica que desafiou a noção de pessoas como sendo normativamente independentes. Em seu livro Love’s Labor (1999), Eva Feder Kittay empreende essa “crítica da dependência” (p. 13), desenvolvendo as novas normas de pessoidade que ela sugere. Kittay explora a prevalência e o valor das relações humanas obscurecidas pela afirmação da independência; ela expõe a injustiça trazida pelos ideais políticos de igualdade onde estes assumem um sujeito independente; e assim defende o valor da dependência, afirmando a pessoidade heterônoma.[2]

Exploro o papel da vulnerabilidade corporal na versão de pessoidade proposta por Kittay, desenvolvendo uma comparação ao papel dessa vulnerabilidade no Leviatã de Thomas Hobbes. A contribuição crucial de Kittay em seu livro Love’s Labor é que, uma vez reconhecidos os fatos da vulnerabilidade corporal, devemos não somente reconhecer, mas também afirmar a dependência em uma afirmação genuinamente inclusiva da pessoidade. Enquanto apoio a “crítica da dependência” de Kittay e seus efeitos transformativos nos modelos tradicionais liberais de pessoidade, descubro dificuldades que cercam o desenvolvimento de novas normas de pessoidade em Kittay. Retraço estas dificuldades a uma exclusão constitutiva dos jeitos que o argumento de Kittay depende de uma premissa crucial do modelo liberal que ela mesma resiste. Argumento que, para afirmar a dependência de uma maneira que se afaste mais completamente do modelo liberal de pessoidade, devemos deixar de posiciona-la em uma dicotomia entre poder e vulnerabilidade. Sugiro que dar atenção a corporeidade da vulnerabilidade pode nos ajudar a desenvolver os termos de um discurso que afirme uma pessoidade relacional que enfraquece tal dicotomia.

O repúdio constitutivo da vulnerabilidade corporal em Hobbes

Como muitos teóricos liberais tardios, Hobbes visa derivar a ordem política correta de uma fonte imanente: nós mesmos. Então, ele exige, “Leia a si mesmo”, pois “qualquer um que olhe em si mesmo… lerá e saberá, quais são os pensamentos, e Paixões de todos os outros homens, em ocasiões semelhantes” (Hobbes, 1985, p. 82). Descobre-se assim o que Hobbes fixa como “desejo, medo, esperança” (p. 83), todos de interesse próprio: desejo de poder pessoal, privilégio, “Facilidade, e Deleite sensual” (p. 161); medo da determinação e dominação por outros através da “opressão” (p. 163), “Morte e Feridas” (p. 162); e esperança de alcançar nossos desejos apesar de nossos medos.[3] Poderíamos pensar que esse procedimento já assume que o sujeito político é independente. Quando queremos saber os motivos, desejos e valores do sujeito político, devemos apelar para a introspecção, isto é, se referir ao self enquanto self. Assumindo que o self independente é a autoridade a ser consultada sobre os interesses das pessoas enquanto tais, essa abordagem assume que os interesses das pessoas podem ser determinados aparte de outras pessoas. Quando assume que as características encontradas pela introspecção podem ser generalizadas, a abordagem assume que o self independente pode ser atribuído a todas as pessoas relevantes. Mas o que Hobbes descobre nesse “self” complica tal leitura do argumento.

O papel do “medo” (Hobbes, 1985, p. 83) no resultado tripartite da introspecção mostra que o sujeito político de Hobbes oferece uma identificação normativa de si mesmo, e, portanto, não oferece uma descrição desinteressada. A afirmação do self de seu interesse próprio está em contenda com a ameaça sempre presente de dependência ou determinação pelos outros. De fato, a independência é atribuída a nós na forma de um desejo, e o “self” a quem Hobbes assume que devemos endereçar nossa investigação sobre o sujeito político é o sujeito desse desejo. Sua independência não está dada nem garantida ontologicamente, mas está acometida por uma suscetibilidade a impedimentos ou influência.[4] Hobbes identifica na vulnerabilidade corporal essa ameaça: “Medo da Morte, e dos Ferimentos” (p. 162). Em nossa especificidade corporal, encontramos um perigo inexaurível para a independência que desejamos. Para Hobbes, até o desejo e o prazer sensual podem comprometer nossa habilidade de nos protegermos (p. 160). Toda afetividade é, então, uma oportunidade para ferir: vulnerabilidade. Longe de negar a vulnerabilidade corporal, a teoria de Hobbes coloca-a como definitiva para a pessoidade. Mas ela carrega a valência negativa da oportunidade de ferir. É a ameaça contra a qual o sujeito político está constitutivamente em batalha. E como tal, ocupa posição central na derivação da política hobbesiana.

Hobbes afirma que somos todos igualmente vulneráveis corporalmente, não porque não existem diferenças de força e fraqueza entre nós, mas porque “o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte” (1985, p. 183). Nossa vulnerabilidade conta como igual porque é, em cada caso, uma violação daquele traço valorizado de nossa pessoidade, a independência. Somos igualmente vulneráveis corporalmente porque cada um de nós pode perder a mesma coisa. Nossa vulnerabilidade é em cada caso uma ameaça para o que valorizamos quando valorizamos nossa pessoidade: nossa independência enquanto indivíduos.

Essa igualdade da vulnerabilidade implica numa “igualdade de habilidade” correspondente (somos igualmente suscetíveis a sermos feridos e igualmente capazes de ferir), o que engendra uma “igualdade de esperança na busca por nossos fins”, e uma crença igual que o self está em melhor posição para determinas seus próprios fins (Hobbes, 1985, p. 184). Assim, as pessoas naturalmente se “desassociam” umas das outras e estão “aptas a invadir e destruir uma a outra” (p. 186), formando somente associações do tipo voluntário e contratual para fins explicitamente concordados que são mutuamente benéficos para nossos propósitos racionalmente voltados ao interesse próprio e independentes. Um desses propósitos é assegurar a vida e a liberdade. Estamos igualmente desejosos de superar nossa vulnerabilidade corporal, logo, igualmente motivados a cooperar. A afirmação de nossa independência ganha força como imperativo político na rejeição da vulnerabilidade corporal que é seu corolário constante. Assim, essa afirmação mobiliza o projeto da comunidade política.

Visando “proteção e defesa” (Hobbes, 1985, p. 81), consentimos ao contrato social, cedendo alguma capacidade de autodeterminação a um “Poder comum” (p. 161), um corpo político intangível. A unidade do “homem artificial” (p. 81) criado pelo contrato e a “intercambialidade corporal” (Gatens, 1996, p. 26) de seus “membros” o exime da vulnerabilidade que acompanha cada corpo específico. Fortaleço meu corpo frágil físico com a membresia em um corpo racionalmente planejado, um corpo político fortificado contra a vulnerabilidade.[5] Então, a comunidade política é circunscrita pela organização de nossa vulnerabilidade corporal em um “Corpo Político” (Hobbes, 1985, p. 82).[6] A vulnerabilidade corporal é a ameaça em torno da qual o corpo político é incorporado e a produção do “Corpo Político” é a transmogrificação daquela vulnerabilidade corporalmente específica em um “Poder comum” (p. 161).

Hobbes oferece um ponto de comparação interessante com Kittay, precisamente porque sua teoria inclui um reconhecimento substancial da vulnerabilidade e da dependência humana. A vulnerabilidade corporal não é acidental para Hobbes. É uma violação contra a qual a pessoidade é definitivamente suscetível. Porque a pessoidade é normativamente independente, qualquer dependência é sempre dominação (Hobbes, 1985, p. 201), e a vulnerabilidade corporal sempre significa uma oportunidade de ferir. Na lógica normativa de Hobbes, buscamos superar a especificidade corporal e sua vulnerabilidade concomitante para que possamos maximizar a coincidência com a independência que desejamos e com a qual nos identificamos.[7] O que é crucial para minha comparação entre Hobbes e Kittay não é que ele postule sujeitos independentes e ela sujeitos dependentes. Na verdade, os dois pensadores reconhecem a vulnerabilidade como um traço profundamente significativo, até mesmo definitivo, da situação corporal do sujeito político. Onde encontro um contraste entre Hobbes e Kittay é na disposição do sujeito político para com sua vulnerabilidade: Hobbes espera que a repudiemos, enquanto Kittay afirma que, de fato, nós afirmamos e devemos afirma-la.

A crítica da dependência de Kittay

Kittay argumenta que a vulnerabilidade corporal não é compartilhada por todos igualmente. Algumas pessoas são especialmente vulneráveis. Estes são os dependentes, e eles exigem cuidado para sobreviver. A pessoa que dá cuidado para alguém especialmente vulnerável é denominado trabalhador da dependência, e a pessoa que recebe tal cuidado é seu custodiado (Kittay, 1999, p. 30). Ambos são desproporcionalmente vulneráveis em termos corpóreos. Kittay sustenta que a noção de pessoa que valoriza liberdade (definida como independência de influência) e igualdade (quando o sujeito da igualdade é independente) “não é somente desmentida pela realidade empírica, mas também não é conceitualmente espaçosa o suficiente para envolver a todos” (p. 4).  Ver a sociedade como uma associação de independentes igualmente situados “mascara dependências não equitativas, como as da infância, da idade avançada, da doença e da deficiência” (p. xi). Kittay nos lembra que todos experimentamos dependência total em algum momento de nossas vidas. Aqueles com deficiências físicas ou mentais, ou doenças crônicas debilitantes, experimentam dependência por muito mais tempo do que outros, talvez por toda a vida.[8] Todos experimentamos infância. Sobrevivemos e prosperemos nessas situações de vulnerabilidade corporal desproporcional através de “relações de dependência” (p. 30). Muitas vezes, estas relações não podem ser descritas em termos de vantagem recíproca, pois as partes estão raramente situadas igualmente para cuidar. No “caso paradigmático” de dependência extrema concebido por Kittay, nós não podemos reciprocar (pp. 31-32; ver também pp. 29-30, xii-xiii).

Notar os dependentes e as relações dependência nos levará a considerar a interdependência que é endêmica a pessoidade humana (Kittay, 1999, p. 25). A crítica da dependência de Kittay é enquadrada como uma crítica da igualdade como ideal político no qual o sujeito da igualdade é independente. Sua crítica funciona não somente como uma crítica de um ideal político particular, mas também como crítica da pessoidade normativamente independente. Kittay observa que o ideal de igualdade é concebido para se encaixar num sujeito político independente para quem a independência é um interesse preeminente e a dependência é sempre “não-normal” (p. xii) e negativamente valorizada. Em uma peça poderosa de filosofia política, Kittay nega que pessoas de fato se comportam de maneira correspondente a esses valores ao longo de suas vidas e também na vida coletiva (pp. 13-17). A dependência não pode ser excluída de uma política que afirma a pessoidade.

O primeiro passo da crítica da dependência afirma que a concepção da vida coletiva composta de pessoas normativamente independentes e suas associações é desmentida se olharmos para como muitas relações humanas valorizadas são de fato: nomeadamente, involuntárias e assimétricas (Kittay, 1999, p. 14). As associações relevantes são involuntárias no sentido que são abertas: não podemos escolher o que a relação exige de nós. Por exemplo, a maioria das famílias humanas, mesmo em sociedades liberais, não abandona os membros que não podem oferecer vantagens recíprocas. Muitas relações humanas valorizadas são também assimétricas: organizadas em torno da satisfação das necessidades maiores de uma pessoa, por exemplo, as necessidades na infância, na doença e na idade avançada. Nessas relações de dependência, interesses são determinados em uma situação que os coloca em interferência constante uns com os outros, e então, não podem ser satisfeitos ou descritos sem referência mútua. Não podemos descrever o que está acontecendo nesses casos se assumirmos que o comportamento dessas pessoas é organizado em torno de uma valorização da independência. A dependência em questão não pode ser descrita como tendo uma valência negativa, uma vulnerabilidade a ser superada. Nem podemos afirmar que essas relações são uma aberração: elas envolvem todos nós em algum momento e alguns de nós o tempo todo.

A comparação com Hobbes coloca em primeiro plano a revalorização da vulnerabilidade da dependência que está em questão na crítica da dependência de Kittay. Onde Kittay nos chama a reconhecer as relações de dependência e sua vulnerabilidade concomitante, o sujeito hobbesiano pode prontamente concordar. Porém, a crítica da dependência nos chama não somente a reconhecer, mas também a “abraçar” a dependência (Kittay, 1999, p. xii): reintegra-la naquilo que nossa teoria política afirma sobre a pessoidade, de uma maneira que reflita sua integração nas vidas que de fato vivemos juntos enquanto pessoas. Então, a crítica da dependência de Kittay desafia o sujeito hobbesiano na medida em que Hobbes assume que seus sujeitos sempre considerarão a vulnerabilidade de relações de dependência como um perigo – um perigo reconhecido sim, mas sempre perigoso, sempre ameaçador. Se considerada em contraposição com Hobbes, o desafio da crítica da dependência consiste em repensar a pessoidade de uma forma que não só reconheça a vulnerabilidade corporal, mas também afirma seu papel em nossas vidas como oportunidade para aprofundar nossas relações, em vez de entende-la somente como oportunidade para experimentar ferimentos e morte.

O segundo passo da crítica da dependência enfatiza a vulnerabilidade do trabalhador da dependência, que é efetivamente exagerado e discursivamente ocultado sob a pressuposição de uma sociedade composta de pessoas igualmente situadas que valorizam a independência. Embora sejam capazes de reivindicar independência, trabalhadores da dependência realizam o trabalho socialmente necessário de cuidar dos dependência e, então, não estão simetricamente situados em relação aqueles que não tomam essas responsabilidades: eles se tornam unicamente vulneráveis (Kittay, 1999, p. 16, pp. 43-44).

O terceiro passo nos mostra que a descrição da pessoidade normativamente independente não pode acomodar um discurso político sobre a redistribuição do trabalho de dependência e (eu infiro) sobre seu valor público. O segundo e o terceiro passo, em conjunto, constroem um caso forte sobre a injustiça contra trabalhadores da dependência, trazida pela pressuposição de uma sociedade composta de pessoas igualmente situadas que valorizam a independência.[9] Em uma sociedade que, por um lado, demanda que a distribuição do trabalho de dependência seja decidido privadamente e não oferece discurso para discutir seu valor público enquanto, por outro lado, carrega pressuposições profundamente enraizadas e de longa data de que um grupo particular de pessoas (mulheres) são mais aptas para esse trabalho do que outro (homens), trabalhadores de dependência estão unicamente “vulneráveis a dominação” (Kittay, 1999, p. 16, pp. 43-44). A pressuposição do interesse próprio torna invisíveis as preocupações adicionais, “direcionadas para outros” (p. 39) do trabalhador da dependência, ao mesmo tempo que as coloca como uma desvantagem.

Portanto, a “crítica da dependência” motiva um deslocamento em nossa noção de pessoidade ao revelar que afirmar a independência como norma de pessoidade “fomenta uma ficção de que… incapacidade… é uma exceção na vida humana, em vez de uma variação normal; que a dependência é normalmente muito breve e episódica para importar na vida política” (Kittay, 1999, p. 92). A descrição liberal da pessoidade é muito restrita; “nossa dependência mútua não pode ser suspensa sem excluir tanto partes significantes da nossa vida quanto grandes partes da população do domínio da igualdade” (pp. xii-xiii). Por reconhecer a ubiquidade e a significância política da vulnerabilidade, a teoria de Hobbes não é atingida por esse aspecto da crítica de Kittay. Mas o argumento de Kittay não é somente que a dependência é inevitável em cada vida humana e que relações de dependência devem ser formadas se formos sobreviver e prosperar (p. 29). É também um argumento sobre aquilo com o que nos importamos: o que desejamos, esperamos e valorizamos, não em qualquer momento específico, mas ao longo de uma vida vivida entre outras pessoas. E é nesse registro que podemos distinguir a posição de Hobbes e a posição de Kittay. Se seguirmos Kittay na nossa investigação sobre o que valorizamos na pessoidade, não em rumo ao “self” abstrato disponível para introspecção, mas rumo a vida toda de um corpo aninhado em conexões viscerais com os outros através do nascimento, desenvolvimento, envelhecimento, adoecimento e morte, então descobrimos que Hobbes estava errado sobre nossos desejos, medos e esperanças. Ao longo de uma vida e da vida coletiva, relações de dependência não são evitadas, afastadas ou superadas, mas, em vez disso, embarcamos nelas como partes integrantes da experiência e desenvolvimento valorizados da pessoidade (p. 25). Para todos nós por algum tempo e para alguns de nós o tempo todo, a segurança que o “self” de Hobbes busca contra a temida vulnerabilidade corporal não é possível nem desejável. Embora muitos de nós não gostemos de admitir, valorizar a independência a ponto de excluir relações de dependência e desejar poder a ponto de excluir a vulnerabilidade, é desconsiderar partes inexpugnáveis e tacitamente valorizadas de nossas vidas em comunidades e como pessoas encarnadas.

Uma vez que admitimos a possibilidade de dependências valiosas e habilitadoras, nossa norma de pessoidade já não pode mais ser definida contra a vulnerabilidade e a dependência. Já que o que valorizamos quando valorizamos a pessoidade não é mais a independência em prol da exclusão da vulnerabilidade e das relações de dependência, então a dependência não é necessariamente dominação, nem a vulnerabilidade corporal necessariamente significa uma oportunidade de ferir. A crítica da dependência nos chama a reconhecer que uma das coisas que afirmamos sobre pessoidade é a oportunidade de cuidar e receber cuidado. Kittay sugere que em uma política consistente com tal afirmação, a vulnerabilidade corporal perde a valência negativa de uma ameaça ou perigo, algo a ser evitado e se possível superada, e adquire a valência positiva de uma necessidade de cuidado, um chamado que pode ser respondido e sobre o qual podemos aprofundar nossas relações: uma oportunidade de cuidar e uma reivindicação do cuidado que preciso (Kittay, 1999, p. 55).[10] A vulnerabilidade corporal não mais aparece como a rejeição constitutiva na pessoidade normativa, a abjeção que motiva a demanda por associação política e define suas fronteiras.[11] Em vez disso, a vulnerabilidade corporal pode motivar e ser incorporada na visão da vida coletiva e nas suas demandas.

Pessoidade dependente: o caso paradigmático

As afirmações de Kittay sobre a pessoidade humana foram, até então, apresentadas como críticas de pressuposições liberais amplamente partilhadas. Ela considera a visão liberal da pessoa demasiado restrita, inadequada de uma maneira que sugere a negação dessa inadequação como uma solução. A crítica da dependência, como a apresentei até aqui, não está orientada para descreditar a noção liberal de pessoa. Em vez disso, ela desloca efetivamente o modelo de independência normativa enquanto pede por uma noção mais ampla, inclusiva e complexa de pessoa do que esse modelo é capaz de acomodar.

Mas Kittay não está satisfeita com um deslocamento da estreiteza da noção liberal em direção a uma de relacionalidade e interdependência. Ela deseja combater a noção liberal de pessoidade, “expô-la” e excluí-la (Kittay, 1999, p. 5). Então, ela busca “uma faca afiada o suficiente para cortar pela ficção da nossa independência” (p. xiii). Kittay encontra essa “faca” no caso da “dependência extrema” (p. xii), “o caso de um dependente que é incapaz de reciprocar” (p. xiii). Depois de criticar efetivamente a tradição que começa assumindo independência e segue ajustando em face da ocasional “condição de dependência não-normal” (p. xiii), Kittay propõe o inverso: assumir a dependência radical como normal, descrevendo o que é demandado de nós em uma política que afirma a pessoidade radicalmente dependente e ajustando essas demandas para os casos daqueles que são capazes de reciprocar. Após expandir a noção de pessoas pela crítica, Kittay decide não buscar uma visão das demandas da vida coletiva que viria de uma afirmação amplificada de pessoas como seres interdependentes. Em vez disso, a pensadora busca desenvolver o que seguiria uma afirmação diferentemente restritiva de pessiodade: o “caso paradigmático” da dependência extrema (pp. 31-32), no qual o dependente é totalmente vulnerável e todo (ou quase todo) poder de cuidar (ou não cuidar) está em um lado da relação. Esse movimento não é evocado pela análise até então; ela o faz para excluir a independência de uma afirmação de pessoidade. Ela assegura seus leitores que não está “negando nossa interdependência” (p. xiii), mas que a “interdependência começa com a dependência” (p. xii), logo, toma a segunda como paradigmática. Ao separar dependência de interdependência, e ao definir a dependência afirmada de modo a excluir a independência, Kittay gera dificuldades para sua descrição das normas e demandas da pessoidade dependente.

Uma dessas dificuldades é a inteligibilidade do caso paradigmático.[12] Como ela definiu, “quem recebe o cuidado, pelo menos no caso limite, não pode reciprocar o cuidado ou a preocupação que o trabalhador da dependência devota a ela” (Kittay, 1999, p. 54). Isso distingue a dependência da interdependência e necessariamente exclui a independência, garantindo que qualquer explicação em termos de reciprocidade e interesse próprio seja positivamente excluída. Entretanto, Kittay também nos assegura que “mesmo a pessoa mais dependente” pode “reciprocar de alguma maneira – através de amor ou afeição, talvez.” Ela insiste somente que “a obrigação de compensar o ‘custo’ dos deveres do trabalho de dependência para o trabalhador deve recair sobre aqueles do lado de fora da relação ela mesma” (p. 54). Não se pode esperar que dependentes extremos “devam” qualquer coisa aos seus cuidadores em troca do cuidado.

Mas se mesmo a pessoa mais dependente pode reciprocar de alguma forma, como podemos excluir a possibilidade de reciprocidade? Semelhantemente, como poderíamos medir gradações dessa exclusão? Se as ações de alguém contam para compensar algum custo, isso é usualmente determinado pelo valor atribuído a essas atenções e não a propriedades cujo valor pode ser determinado absolutamente ou de antemão. Então o que são os casos paradigmáticos? Kittay os identifica por um apelo a propriedade da “dependência inerente” (Kittay, 1999, p. 37): a dependência ela mesma, isolada da interdependência, ou a vulnerabilidade ela mesma, isolada de poderes potenciais. Porém, essa propriedade não é estritamente inteligível: não é claro o que contaria como instância de um caso limitador. Certamente, uma descrição de várias relações de dependência em termos de independentes engajados em troca equivalente não seria apropriada. Mesmo assim, não há evidência tão incontestável da ausência de toda possibilidade de reciprocidade (ou de gradações de sua ausência) que torne a descrição liberal impossível a princípio.[13] Não há tal “faca” (p. xiii), como Kittay procura. Na sua insistência em precludir a possibilidade de explicar relações de dependência em termos de independentes engajados em troca equivalente, Kittay estabelece uma falsa oposição que não serve bem ao seu argumento.

A oposição de Kittay entre dependência e interdependência na identificação do seu caso paradigmático paralela a sua distinção entre o “senso estendido” e “senso estrito” (p. 38) do trabalho de dependência. Aqui, também, tal distinção prova-se problemática. O senso estrito, que Kittay coloca como paradigmática, inclui uma pessoa “inerentemente dependente” (p. 37), nenhuma reciprocidade possível e toda capacidade de cuidado em um lado. Kittay define o senso estendido como qualquer coisa que façamos para outras pessoas e que elas poderiam (pelo menos em princípio) fazer por conta própria. Isso oclui a interdependência e a relacionalidade que Kittay afirma estar argumentando a favor (p. xii), e que era o resultado inicial da crítica da dependência. Consideremos aqueles tipos de cuidado que, por definição, indicam coisas que não podemos fazer por nós mesmos: amor, afeição, apoio, um abraço, companhia e amizade. Agora, estas não se encaixam no senso estrito (porque na maioria dos casos, os recipientes serão capazes de reciprocar) nem no sento estendido (porque as pessoas não podem fazer isso por si mesmas) do trabalho de dependência.[14] Focando-se na dependência extrema em uma tentativa de excluir a independência, Kittay exclui formas importantes de interdependência da sua descrição.

Adicionalmente, em sua tentativa de manter a especificidade do caso limite, Kittay dá muito crédito para a possibilidade de uma descrição de relações interdependentes em termos de troca equivalente. Ela afirma que “quanto mais capaz for o dependente, mais a relação se aproxima de uma relação entre iguais” (Kittay, 1999, p. xiii). Mas este não é necessariamente o caso. Em outro lugar, Kittay distingue relações de dependência de relações de troca qualitativamente em vez de quantitativamente: relações de dependência são caracterizadas por qualidades como “cuidado, preocupação e conexão” (p. 31). Não é necessário afirmar que a reciprocidade é impossível na relação para mostrar que a imagem de uma relação de troca equivalente mutuamente desinteressada é insuficiente. Para isso, Kittay precisa enfatizar a afetividade e a não fungibilidade característica de relações de dependência. Se a relação de dependência é um compromisso aberto com uma pessoa particular, um compromisso de cuidar e se preocupar com seu bem-estar, suas necessidades e seus desejos, então a questão da possibilidade de reciprocidade por parte do dependente não é decisiva, pois a relação de dependência não é predicada em, iniciada por, ou direcionada para uma troca equivalente. Não é uma relação na qual as contas devem ser acertadas, porque o acerto de contas não está no caráter da relação.

Pessoidade dependente: normas e demandas

Quais demandas vêm da afirmação da pessoidade dependente? Enquanto “propedêutica” para “uma nova teoria de igualdade que abraça a dependência” (Kittay, 1999, p. xii), Kittay embarca no projeto de repensar as demandas morais da vida coletiva, a partir da afirmação da pessoidade dependente.[15] Ela pega o “Modelo de Vulnerabilidade” de Goodin, no qual as necessidades dos outros “evocam a obrigação moral para nós quando estamos em posição privilegiada de atender tais necessidades vis-à-vis o outro” (p. 55). A vulnerabilidade significa uma necessidade de cuidado em vez de uma oportunidade de ferir e constitui uma reivindicação moral do cuidado que se precisa de alguém situado para atender à necessidade. Então, “a reivindicação moral vem não em virtude das propriedades de um indivíduo… mas de uma relação entre alguém em necessidade e alguém situado para atender tal necessidade.” (p. 55) A vulnerabilidade se manifesta como necessidade de cuidado porque se afirma a partir de dentro de laços humanos de dependência, ou “das demandas da conexão” (p. 18). Essas demandas constituem uma reivindicação moral sobre o trabalhador de dependência de modo que ela deva “ser responsável e respeitosa da vulnerabilidade do recipiente de cuidado” (p. 35). O modelo de Kittay do tipo de pessoidade que realiza esse ideal é um “self relacional”, e mais especificamente, um “self transparente” (p. 51). Já que “as demandas do trabalho de dependência favorecem um self que defere ou suspende suas próprias necessidades para atender as necessidades de outro”, o self transparente é “um self através do qual as necessidades do outros são discernidas, um self que, ao tentar medir suas próprias necessidades, vê primeiro as necessidades do outro” (p. 51).

Acredito que a descrição do self transparente de Kittay não chega a ser um self relacional, mas permanece posicionada dentro de uma dicotomia self-outro que é característica da noção liberal de pessoa que ela resiste.[16] O trabalhador da dependência de Kittay deve tornar seus interesses “subservientes” aos de seu dependente (Kittay, 1999, p. 97), “deferindo ou suspendendo” suas próprias necessidades para que ela “veja primeira as necessidades do outro” (p. 51). Subserviência implica separação navegada por meio de uma hierarquia. O conceito é relacional somente num sentido trivial, totalmente compatível com a pessoidade independente, e que compartilha com a dificuldade desse modelo em explicar a afetividade e o cuidado.[17]

Kittay enfatiza a “auto-anulação” do trabalho “direcionado ao outro” (Kittay, 1999, p. 39), como se precisássemos anular um interesse próprio original para sintonizarmo-nos com as necessidades do outro. Mas ela continua: “é claro, nenhum self é verdadeiramente transparente nesse sentido… trata-se de um ideal regulatório para o trabalho de dependência” (p. 52). Logo, Kittay não somente introduz uma tensão na sua própria crítica da independência normativa ao falar sobre relacionalidade como se ela fosse um projeto de auto-aniquilação, mas ela também afirma que esse projeto é, em última instância, impossível. Ao afirmar a pessoidade dependente e excluir a independência, incorremos na demanda de superar a nós mesmos e nos tornarmos conduítes “transparentes” dos desejos e necessidades de outros. Assim como a lógica normativa de Hobbes exige que superemos nossa vulnerabilidade, visto que ela ameaça nossa independência enquanto pessoas, a lógica de Kittay nos coloca na posição de superar nossa independência enquanto pessoas, visto que ela ameaça nossa capacidade para vulnerabilidade e dependência.

A alternativa de Kittay para o interesse próprio é sua inversão: aniquilação do self no interesse do outro, sustentando uma dicotomia self-outro. Isso somente inverte a imagem liberal, oferecendo-os uma noção de uma pessoa centrada no outro. Kittay compara seu self transparente com o self liberal, dizendo que o “self da tradição liberal é uma agência racionalmente interessada em si mesma, em vez de uma agência a serviço dos interesses de outro” (Kittay, 1999, p. 52). Esse não é um conceito fundamentalmente diferente e relacional de pessoidade. É uma pessoa que gira em torno de um centro assim como a pessoa liberal, só que é uma exigência do self transparente de Kittay importar o conteúdo de seu centro – interesses, necessidades, projetos, desejos – de outra pessoa. Kittay não substituiu os pressupostos liberais da pessoa independentemente interessada. Em vez disso, ela inverteu o que é afirmado e o que é repudiado sobre a pessoidade, resultando na valorização da aniquilação do interesse independente.

Isso não é apenas um problema para a teoria de Kittay porque deixa de ser um afastamento da noção liberal de pessoidade. Também não é estritamente inteligível dada sua descrição da relação de dependência como caracterizada por cuidado e envolvimento afetivo (Kittay, 1999, p. 31). No seu paradigma, “o trabalhador da dependência restringe seu poder e o exercita somente de acordo com os interesses de seu dependente” (p. 35). Mas em tal relação íntima, o que interessa são somente os interesses do custodiado? Kittay descreve o trabalhador de dependência como “orientado para o outro” (p. 39) de maneira que isso opõe-se a preocupação, ou mesmo percepção, com as próprias necessidades e desejos. Porém, na medida em que a relação de dependência é uma de cuidado, preocupação e conexão afetiva, as necessidades e desejos que são articuladas dentro dela pertencem a um “nós”, uma relação: nem self, nem outro, mas uma terceira coisa na qual os dois estão conectados.

Por que Kittay descreve o trabalhador da dependência ideal dessa maneira? Uma motivação possível é que isso permite-a caracterizar o trabalhador da dependência em termos do caso paradigmático da dependência extrema, a partir do qual emergem demandas mais fortes. Aniquilar as próprias necessidades “a serviço dos interesses do outro” (Kittay, 1999, p. 52) é estar profundamente vulnerável a esse outro. A pessoidade do trabalhador da dependência paradigmático de Kittay, assim como a de seu dependente, é caracterizada por uma vulnerabilidade extrema. Essa impotência ou ausência de “resistência” (p. 52) às demandas feitas pelo seu custodiado tornam o trabalhador da dependência altamente vulnerável e, então, “as obrigações dos outros para com trabalhadores da dependência não são menos pesadas do que a obrigação do trabalhador de dependência para com seus dependentes.”[18]

Pessoidade dependente: problemas de coerção e dominação

Em um argumento normativo como o de Hobbes, a dominação é facilmente identificada e facilmente rebaixada como transgressão pela independência normativa da pessoidade: toda dependência e heteronomia é dominação, perigosa para nossa autonomia. Um resultado importante da crítica da dependência é que a dependência não é necessariamente dominação (Kittay, 1999, p. 34); a heteronomia pode ser valiosa. As dependências podem ser habilitadoras, nutridoras e afetuosas. Mas, certamente, a dependência não é sem seus perigos: respostas dominadoras e exploradoras a vulnerabilidade ainda são possíveis. Kittay reconhece explicitamente que há respostas dominadoras para a dependência: “A dominação… é inerentemente injusta” (p. 34). Kittay prontamente dá conta de seu ataque à dominação referindo-se ao modelo da vulnerabilidade: se vulnerabilidade significa uma necessidade de cuidado, então respostas que ferem são inadequadas. Mas como identificar respostas dominadoras? Uma vez que a crítica da dependência afirma a heteronomia, mostrando que dependência não é suficiente para estabelecer dominação, a teoria de Kittay deve apelar a algum outro critério para distingui-las. Kittay discute isso extensamente quando trata do “problema da coerção” (Kittay, 1999, pp. 62-64, pp. 71-73).

O problema da dominação se refere a trabalhadores da dependência abusando da vulnerabilidade desproporcional de seus dependentes; o problema da coerção se refere a possiblidade de abusar da responsividade do trabalhador. Kittay coloca o problema em termos da dificuldade de determinar quem pode legitimamente obrigar quem por sua vulnerabilidade (p. 55). Ela quer estabelecer que, quando demandas de vulnerabilidade surgem em situações coagidas, estas não têm qualquer reivindicação legítima sobre o trabalhador da dependência.

Dentro da lógica normativa voluntarista de teóricos liberais como Hobbes, esse problema é facilmente resolvido, porque “é contra essa coerção que a obrigação moral é definida” (Kittay, 1999, p. 72): nenhuma reivindicação é legítima se não puder ser retraçada para o consenso do indivíduo sobre quem a reivindicação é feita. Todavia, como mostra a crítica da dependência, esse modelo não contempla as reivindicações morais que não são nem voluntariamente consentidas nem violadoras, reivindicações advindas de relações afetivas que compõem grande parte de nossas vidas, relações caracterizadas por compromissos abertos com os outros. Nossas responsabilidades com as necessidades do dependente não podem ser voluntariamente consentidas porque não é possível antecipar todas essas necessidades. Porém, quando as necessidades surgem, a relação de dependência nos obriga a cuidar, quer tenhamos consentido antes ou não. Quando Kittay afirma que essas obrigações tem peso moral, ela se depara com um dilema: “Se a obrigação moral surge quando o bem-estar de um das partes é vulnerável às ações de outro, então uma relação resultando de uma situação coagida não parece mais capaz de gerar obrigações moralmente vinculantes” (p. 72). O projeto de repensar as demandas da vida coletiva do ponto de partida da pessoidade dependente tomou a vulnerabilidade como base das reivindicações morais. Agora que a legitimidade dessas reivindicações pode depender de algo diferente da vulnerabilidade das quais elas emergem, o modelo de vulnerabilidade está seriamente exposto.

Kittay sugere invocar uma noção de igualdade baseada em conexão (Kittay, 1999, p. 66), que “assume uma necessidade fundamental de relacionamento” em virtude de nossa conexão e “interdependência” (p. 50), e reivindica “direitos, primeiro a uma relação na qual alguém pode ser cuidado se e quando for apropriado, e, segundo, a uma situação socialmente garantida na qual alguém pode dar cuidado sem que isso se torne nocivo para seu bem-estar” (p. 66). O modelo de vulnerabilidade nos deu a obrigação do trabalhador da dependência para com seu dependente em relações específicas de dependência. A igualdade baseada em conexão estende o modelo de vulnerabilidade amplamente, com base em uma conexão e interdependência geral. Se uma trabalhadora da dependência está sobrecarregada, ela tem um direito geral a reivindicar cuidado para que continue a cuidar, em virtude dessa igualdade de conexão. Kittay apela para a igualdade baseada em conexões para negar a obrigação moral de dar cuidado em situações trazidas pela coerção, enquanto se abstém de restringir reivindicações legítimas a situações voluntárias. Há dois problemas com essa solução.

Primeiro, não é claro o que constitui coerção, já que a igualdade baseada em conexão não estabelece um meio pelo qual uma pessoa pode ser violada, só um meio pelo qual podemos ter reivindicações de cuidado mais gerais e em maior quantidade. Ela reconhece que a quantidade ou o tipo de cuidado exigido de nós pode se tornar “um perigo para o próprio bem-estar” (Kittay 1999, 66), e sustenta que, neste caso, podemos reivindicar mais cuidado para nós mesmos, ou então que nossa própria reivindicação de cuidado cancela a obrigação de responder o outro. Mas não abre espaço para um discurso sobre o que constitui um perigo para o bem-estar da pessoa heterônima. Citando Marilyn Frye, Kittay menciona a vulnerabilidade especial da trabalhadora da dependência, pois ela “se torna vulnerável ao abuso de ter sua substância transplantada em outra pessoa” (p. 35). Ela quer reconhecer isso como vulnerabilidade a violação e ao abuso, vulnerabilidade demasiada, vulnerabilidade significando ferimento, vulnerabilidade que deve ser superada. Mas, conceitualmente, não há espaço na teoria para a vulnerabilidade ganhar esse significado. O apelo à igualdade baseada em conexão só pode estabelecer que, às vezes, uma reivindicação particular contra um trabalhador da dependência pode ser anulada pela vulnerabilidade do próprio trabalhador e sua reivindicação corolária por cuidado.

Kittay se esforça para descrever a coerção usando o aparato normativo que derivou do seu paradigma da pessoidade dependente. Ela define a coerção referindo-se a suas afirmações anteriores sobre dominação: “coerção, como a dominação, é uma demanda exercitada em benefício de outra pessoa que não aquela a quem é imposta” (Kittay, 1999, p. 73). Mas como podemos distinguir isso da situação normal do trabalhador da dependência paradigmático de Kittay? Enquanto self transparente, ela é direcionada ao outro às custas da preocupação consigo mesma. Ela “vê” as necessidades e desejos que são específicas a ela perifericamente (p. 51), exercitando seu poder “somente em prol dos interesses do dependente” (p. 35). Estas sempre são demandas impostas a outra pessoa que não ela, que será beneficiada. Embora Kittay esteja certa ao afirmar que a “proscrição contra a coerção e a dominação é inerente na visão moral que começa com relações, assim como na que começa com indivíduos”, para mostrar que isso é verdade, ela deve complicar o aparato normativo de sua descrição.

Isso nos leva ao segundo problema: a igualdade baseada em conexão é uma norma que vem da noção de pessoas como interdependentes (p. 50). Certamente, Kittay está certa ao afirmar que recusar cuidado onde ele é devido constitui uma violação da “conexão humana per se” (p. 69). Entretanto, é do paradigma da dependência extrema que Kittay partiu para desenvolver uma descrição das normas e demandas da pessoidade que afirma relações de dependência. Ela tomou precauções para distinguir dependência de interdependência, fazendo a dependência anterior no desenvolvimento de seu raciocínio normativo. A primazia da dependência sobre a interdependência é inconsistente com a afirmação que uma violação da interdependência pode bloquear as reivindicações morais de vulnerabilidade dentro de relações de dependência específicas.

Os avisos de Kittay sobre a dominação e a coerção não são justificáveis ou estritamente inteligíveis dentro de um esquema normativo derivado de uma noção de dependência enquanto atributo afirmado da pessoidade, onde a dependência é definida pela exclusão da independência e, assim, presa em uma dicotomia entre independência e dependência. A inversão de Kittay das normas liberais de pessoidade compartilha uma pressuposição com o modelo que visa excluir: que a contribuição definitiva da especificidade do corpo para o que valorizamos (ou não valorizamos) sobre a pessoidade é uma vulnerabilidade definida em oposição ao poder. Para Kittay, a vulnerabilidade é valorizada positivamente (afirmada como base de reivindicações morais) em vez de negativamente (a ser superada). Tal esquema normativo não pode acomodar um discurso figurando uma vulnerabilidade que precisa ser superada, assim como o esquema normativo de Hobbes não pode acomodar um discurso figurando uma vulnerabilidade que precisa ser afirmada como base de uma reivindicação por cuidado. O que é preciso é um discurso que afirma a pessoidade heterônima e que possa acomodar os dois.[19]

Fundacionalismo reacionário, corporeidade e poder

O aparato normativo de Kittay contém vários traços salientes do que Wendy Brown chamou de “fundacionalismo reacionário” (Brown, 1995, p. 33). Para preservar a “base de reivindicações morais específicas contra a dominação” (p. 45), o fundacionalista reacionário rejeita uma fundação normativa restrita em favor de outra, igualmente restrita (e igualmente contestável), formada de acordo com o elemento que baseia a rejeição da primeira. Na crítica da dependência, Kittay oferece uma crítica importante e poderosa da noção liberal de pessoidade. Ela poderia ter perseguido o potencial transformativo de sua crítica, explorando em mais detalhes os defeitos na noção liberal de pessoa, e respondendo a esses defeitos de uma forma que os deslocasse sem aceitar pressuposições adicionais. Se a crítica da dependência tem base (e eu acredito que tenha), qualquer confiança que tenhamos na versão liberal deveria ser transferida, com juros. Em vez disso, Kittay ataca o modelo liberal de independência com a “faca” da dependência extrema para assegurar um solo firme a fim de descreditar o modelo dos oponentes, definindo-o como uma “ficção” opressiva (1999, p. xiii), e corrigir o fato que eles “foram capazes de criar a mentira de que somos independentes” (p. xii). Talvez o modelo liberal seja uma ficção opressiva, uma mentira; mas o objetivo da teoria de Kittay é desacreditar outra teoria e extingui-la, ou seu objetivo é sugerir uma alternativa e demonstrar suas vantagens? “Poderíamos aprender”, Brown pergunta, “a contestar a dominação com a força de uma visão alternativa da vida coletiva, em vez de recorrer a reprovação moral?” (p. 47). Certamente, deveríamos tomar nota das consequências opressivas de uma teoria, mas Brown está certa ao nos avisar que a preocupação com essas consequências pode ter um papel demasiado grande na determinação da estrutura de nossas próprias teorias.

Minha preocupação é que a noção de independência tem um papel demasiado grande na determinação da estrutura da pessoidade dependente que Kittay desenvolve. Na busca para excluir a independência totalmente, sua noção de dependência gera o que Brown chama de um “apego ferido” ao ideal que protesta (Brown, 1995, p. 38, pp. 52-55). O discurso liberal da independência normativa depende em uma afirmação muito restrita da pessoidade que exclui o valor da heteronomia. Tal discurso é suscetível a crítica: como Kittay mostra, ele é demonstravelmente inconsistente com as coisas que as pessoas de fato valorizam sobre a pessoidade ao longo de suas vidas e na vida coletiva. No entanto, enquanto busca descreditar a independência como fictícia e reprovável, a teoria de Kittay parece produzir outra negação, outra afirmação demasiado restrita de pessoidade.

Ofereci uma crítica cuidadosa e sustentada dos detalhes da versão de pessoidade de Kittay porque concordamos nesse ponto fundamental: o valor das relações de dependência deve ser recuperado se quisermos lidar com as injustiças fundamentais de nossa sociedade. A contribuição vital de Love’s Labor é a conclusão programática da crítica de dependência que é o imperativo para pesquisar e desenvolver um modelo de pessoidade que afirma relações de dependência.[20] O que podemos fazer para aprofundar e dar continuidade a esse projeto?

O foco na vulnerabilidade corporal é um aspecto crucial do sucesso da crítica da dependência. A pessoa é considerada um “organismo vivente” (Kittay, 1999, p. 29) e não mais o sujeito abstrato de um conjunto de interesses. Colocando a “independência” no contexto da vida corporificada (incluindo nascimento, desenvolvimento, doença, envelhecimento e morte), Kittay é capaz de mostrar não somente que a “dependência não é uma circunstância excepcional” (p. 20), mas também que ela nem sempre está posicionada como algo a ser superado na constelação de coisas que valorizamos sobre a pessoidade. Lida dessa forma, a crítica da dependência mostra que não podemos consistentemente afirmar a independência e repudiar a dependência.[21]

Retornar a esse momento que a independência e a dependência deixam de ser termos abstratos e passam a ser situações encarnadas, e assim mostram suas raízes profundamente compartilhadas, é uma estratégia promissora para desenvolver os termos de um discurso que oferece uma afirmação verdadeiramente inclusiva de pessoidade. O movimento para o corpo vivido como sujeito político pode deslocar os ideais abstratos (e talvez inatamente metafísicos) da igualdade e da independência qua soberania ou autonomia, trazendo o foco, em vez disso, para a consideração de poderes e vulnerabilidades diversos e corporalmente específicos. Então, esse movimento pode revelar a necessidade de um discurso de pessoidade e uma visão da vida coletiva que pode afirmar tais poderes e vulnerabilidades distintos, e ajudar-nos a desenvolver os conceitos que esse discurso e visão exigem.

O foco nas vulnerabilidades no contexto da vida toda do corpo pode mostrar as raízes profundamente entrelaçadas dos poderes e das vulnerabilidades. Assim como no caso do comediante com esclerose múltipla, mencionado por Kittay, cuja história indica que incorporar essa vulnerabilidade na sua vida significou não somente perder capacidades, mas também ganhar outras,[22] esse olhar nos mostra a necessidade de entender tanto poderes e vulnerabilidades em termos de sua transmogrificação um no outro ao longo do curso da vida, bem como nas vidas coletivamente organizadas. Isso envolve a necessidade de abrir espaço na nossa visão da vida coletiva, não somente para vulnerabilidades diversas e corporalmente específicas, mas também para poderes diversos e corporalmente específicos. De interesse particular são aqueles poderes que são inseparáveis das vulnerabilidades, poderes que falhamos em afirmar, e que em vez disso obscurecemos e sancionamos, interpelando-os como uma vulnerabilidade pura dentro de um discurso de independência normativa.

O foco de Kittay na dependência que exclui a independência como caso paradigmático significa que ela considera somente as relações de dependência nas quais o objetivo do cuidado é definido pelas vulnerabilidades do corpo e não pelo desenvolvimento de seus poderes. Nussbaum faz observação semelhante na sua crítica do foco no caso limite (p. 197). Me preocupo, porém, que Nussbaum vai muito rápido para o poder tradicional liberal de fazer “o plano da própria vida” (p. 197): isso invoca o discurso da autonomia, o poder soberano do auto-governo, um poder usualmente definido em oposição a vulnerabilidade. É útil pensar em termos do corpo vivido para imaginar e conceitualizar outros poderes que podem popular nossas pesquisas. A motilidade e a sensação, por exemplo, não podem ser bem entendidas se definidas como poderes que um corpo pode ter por si mesmo, poderes soberanos e autônomos opostos a vulnerabilidade. Eles são, em vez disso, poderes relacionais, adaptativos, dependente de uma multidão de influências, equilibrados em múltiplos pontos de referência e resistência. Crucialmente, isso significa que eles são poderes que são consistentes com a vulnerabilidade, até mesmo cúmplices da vulnerabilidade: poderes cujo desenvolvimento é inseparável da adaptação e cultivo de vulnerabilidades específicas. A definição de “integridade corporal” de Gail Weiss é um exemplo instrutivo desse tipo de pesquisa (Weiss, 1999, p. 53, ver também pp. 39-63). Em vez de ser definida em oposição, a noção de integridade corporal de Weiss é informada por e cultivada em experiências de fluidez, permeabilidade, incorporação e transmogrificação durante a gravidez e outras experiências de mudança corporal extensa.

A ambição de Kittay de abraçar as relações de dependência enquanto exclui independência, leva-a a reavaliar a vulnerabilidade em sua forma dicotômica. Essa noção de vulnerabilidade está em tensão com sua corporeidade.[23] Uma análise das relações de dependência que aborda cuidadosamente a vulnerabilidade endêmica como situação corporal não encontrará a vulnerabilidade definida em oposição ao poder, e sua afirmação não será uma negação do poder. Portanto, a virada para consideração da pessoa como vida corporifica, implícita na crítica da dependência, permite uma valorização mais profunda da vulnerabilidade do que o desenvolvimento do “caso paradigmático” de Kittay permitiria, porque essa virada nos permite minar a dicotomia entre vulnerabilidade e poder. Assim, tal virada também pode nos ajudar a cultivar um discurso de pessoidade e uma visão da vida coletiva que pode acomodar uma afirmação mais inclusiva de pessoidade: uma que não escolhe entre independência e dependência, mas as reconsidera a luz das particularidades viscerais da relacionalidade humana.

 

Para citar este texto:

WHITNEY, Shiloh Y. Relações de dependência: Vulnerabilidade corporal e normas de pessoidade em Hobbes e Kittay. (Tradução de Lucas Faial Soneghet). Blog do Labemus, 2020. [publicado em 29 de outubro de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/10/29/relacoes-de-dependencia-vulnerabilidade-corporal-e-normas-de-pessoidade-em-hobbes-e-kittay

Referência da tradução: WHITNEY, Shiloh Y. Dependency relations: Corporeal vulnerability and norms of personhood in Hobbes and Kittay. Hypatia, v. 26, n. 3, p. 554-574, 2011. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1527-2001.2011.01188.x

 

Notas:

[1] Nota do tradutor: O termo no original é “personhood”. Esse conceito já foi traduzido como “pessoalidade”, “personalidade” ou “pessoidade”. Acredito que a tradução por “pessoalidade” não é tão precisa, visto que usamos esse termo para indicar não somente a qualidade algo ser pessoa, mas a qualidade de ser pessoal, como oposto de impessoal. Trata-se, portanto, de um termo que pode qualificar uma relação como próxima ou íntima, de caráter pessoal. O termo “personalidade” se distancia mais ainda, pois carrega a conotação de um conjunto de traços idiossincráticos que caracterizam um indivíduo. Escolho “pessoidade”, um neologismo, para indicar o sentido de “personhood” como a qualidade ou condição de ser uma pessoa individual. É um sentido estrito e genérico, relacionado especificamente a uma qualidade ou condição de qualquer ente que pode ser qualificado como “pessoa individual”. Assim, “pessoidade” é análoga a “humanidade”, pois é também uma categoria geral que confere uma qualidade ou condição específica aos entes nela inclusos, dotando-os de alguns traços específicos enquanto engloba-os em um grupo genérico dentro do qual há variações.

[2] A insatisfação feminista como o ideal de igualdade orienta o projeto de Love’s Labor (Kittay, 1999, pp. ix-xiii, pp. 1-5). Kittay coloca o livro como “uma propedêutica para uma futura teoria da igualdade que abraça a dependência em vez de definir a si mesma contra a dependência.” A “crítica da dependência” é introduzida como primeira colocada numa descrição comparativa de diferentes críticas feministas da igualdade (pp. 8-17): ela expõe e descredita a pressuposição de independência normativa implícita em ideais de igualdade (p. 17). Eu foco exclusivamente na Parte Um do livro, na qual Kittay oferece uma análise das dimensões morais das relações de dependência, dada a pressuposição que, em vez de sempre constituir dano, elas possam ser valorizadas e afirmadas.

[3] O argumento hipotético tardio de John Rawls (a “posição original”) é similarmente um exercício introspectivo (Rawls 1971). Seus resultados incluem um medo, desejo e esperança semelhantes: cada um de nós descobre que não deseja se encontrar em uma ordem sociopolítica que nos posiciona de acordo com nossa especificidade. Nosso medo de dominação supera nosso desejo de privilégio, motivando, assim, a cooperação.

[4] Estou aqui me distanciando da leitura icônica do indivíduo Hobbesiano, que é independente tout court. Veja Frost 2008 para um contra-argumento atrativo da leitura liberal mais tradicional. Frost coloca em primeiro plano a metafísica materialista de Hobbes e sua atenção à afetividade da encarnação, a fim de oferecer uma leitura de Hobbes como um pensador da subjetividade política interdependente, argumentando que as leituras tradicionais importaram uma influência cartesiana mal adaptada (Frost 2008, 2). De acordo com Frost, as ações do sujeito Hobbesiano estão envoltas em uma ampla constelação de paixões, tais que ele sempre “age[s] sob condições de heteronomia”, e é na verdade “interdependente”. (135). No entanto, não preciso tomar uma posição definitiva sobre esta questão. O que é crucial para minha leitura é que independência e vulnerabilidade são termos normativos para Hobbes, no sentido de que ele espera que as pessoas valorizem sua independência e se identifiquem com ela, e que valorizem negativamente sua vulnerabilidade como uma ameaça.

[5] Hobbes mantém que as ações do “Soberano… podem não ferir…. seus súditos”, já que o ato de ferir exige heteronomia, e a membresia do sujeito na Commonwealth autoriza as ações do soberano (Hobbes, 1985, p. 232).

[6] Ver “Corporeal Representation in/and the Body Politic” (Gatens, 1996, pp. 21-28) para uma descrição do papel da corporeidade no discurso que racionaliza a incorporação do corpo político.

[7] Implícito no reconhecimento de Hobbes da nossa vulnerabilidade inexaurível e ubíqua há um compromisso com a afirmação de que nenhuma relação é inocente em termos de dinâmicas de poder; notavelmente, ele abstém de naturalizar ou romantizar relações familiares (ver Leviatã, capítulo 20). Essa resistência a pressuposição de um domínio do pessoal separado do político fez de Hobbes um pensador intrigante para muitas pensadoras feministas (ver por exemplo Okin, 1982). Essa resistência é um desvio da teoria liberal tradicional que ele compartilha com Kittay.

[8] Críticos elogiaram Love’s Labor por “colocar problemas de deficiência na agenda da filosofia moral e política” (Nussbaum, 2002, p. 194). Ver também Gottlieb, 2002; Ruddick, 2002 e Tong, 2002.

[9] Esse argumento político foi recebido entusiasticamente por críticos (Nussbaum, 2002, pp. 194-196; Ruddick, 2002, pp. 216-217). Ver também Tong (2002) e Gottlieb (2002).

[10] Neste ponto pode ser útil notar os sentidos precisos dos termos “vulnerabilidade” e “dependência”, uma vez que Kittay os emprega. Dependência, no uso de Kittay, designa a situação social de uma dependente em relação a seu trabalhador de dependência (ela depende de outro para ajudá-la a atender suas necessidades básicas), enquanto que “vulnerabilidade” designa a dimensão afetiva desta situação, tanto para os dependentes quanto para aqueles que cuidam deles, de modo que cada um pode ser afetado ou influenciado pelo outro (ou seja, embora apenas um possa ser dependente do outro, cada um é vulnerável ao outro). É um termo central no relato de Kittay sobre as dimensões morais da pessoa dependente (Kittay, 1999, 25, 28, 30, 33-37, 43-44, 49-73). Por exemplo, ”Vou me concentrar nas questões de vulnerabilidade e responsabilidade moral pertinentes à vulnerabilidade da dependência” (p. 51).

[11] Embora, como eu afirmo na nota 6, as versões mais ingênuas da distinção não obtém para Hobbes, uma distinção público-privado nessas linhas poderia, potencialmente, ser localizada nos corpos políticos que populam a teoria de Hobbes: essa distinção derivaria das fronteiras abjetas do corpo político que está sujeito a independência normativa e distorce relações de dependência do corpo.

[12] O foco de Kittay no “caso limite” foi apontado por outros críticos (por exemplo, Nussbaum, 2002, p. 197; Ruddick, 2002, p. 221).

[13] Note que minhas críticas não são simplesmente de que não existe realmente nenhum caso paradigmático. Kittay reconhece isto mesmo na medida em que afirma que todos os dependentes podem “retribuir de alguma forma” (Kittay 1999, 54), fala do caso da total ausência de capacidade de retribuir como um “caso limite” (54), e às vezes se refere a uma escala na qual os casos podem mais ou menos se assemelhar ao caso paradigmático (xiii). Minha crítica é antes que a propriedade que ela seleciona como paradigmática (dependência isolada da interdependência) não é estritamente inteligível: não é claro o que contaria como instância do caso limite, ou como gradações da presença da propriedade que o caso limite deveria exemplificar.

[14] Ruddick oferece uma crítica relacionada (2002, pp. 221-222). Kittay reconhece a crítica, mas reitera a dependência extrema como ponto de partida (Kittay, 2002, pp. 241-242).

[15] “Quais são minhas reponsabilidades para com os outros com quem estou posicionado em relações específicas e quais são as responsabilidades dos outros para comigo, para que eu possa ser bem cuidado e ter minhas necessidades atendidas, enquanto cuido e respondo às necessidades daqueles que dependem de mim?” (p. 28)

[16] O modelo de Kittay para o trabalhador da dependência como “self transparente” atraiu outras críticas (ver Ruddick, 2002, p. 222)

[17] Na medida em que a noção de Kittay do self transparente afirma a dicotomia self-outro, característica do liberalismo, seu relato compartilha um de seus problemas. Ela observa que o altruísmo apresenta um “problema” para o liberalismo, que não pode explicar como as necessidades de outra pessoa conseguem nos mover (Kittay, 1999, p. 53). Dada a maneira como Kittay descreveu o self transparente, o problema para o liberalismo também é um problema para ela: se não podemos reconhecer os interesses e necessidades de outra pessoa a menos que apaguemos os nossos, como esse apagamento é motivado?

[18] Tong comenta favoravelmente sobre esse resultado da teoria de Kittay (Tong, 2002, p. 205). Eu concordo que o resultado de reivindicações iguais por cuidado para o trabalhado da dependência o dependente é desejável. Sugiro, entretanto, que a caracterização do trabalhador da dependência como completamente vulnerável para dar fundos a reivindicação igual é um traço indesejável.

[19] Aqui, não estou criticando Kittay por reavaliar a vulnerabilidade positivamente. Eu a apóio nesse projeto. Além disso, quando me oponho à “valência positiva” que a vulnerabilidade tem para ela à “valência negativa” que tem para Hobbes, não pretendo atribuir a ela a afirmação grosseira de que a vulnerabilidade é boa, tout court. Sua reavaliação é sutil. O que eu critico é a falha em desafiar a definição de vulnerabilidade de dentro de uma dicotomia de poder e vulnerabilidade – uma falha garantida pela escolha da dependência extrema com a exclusão da independência e até mesmo da interdependência como um caso paradigmático para desenvolver as normas da pessoidade dependente. Vulnerabilidade é crucial para Hobbes como oportunidade de ferir, e para Kittay como oportunidade de cuidar, mas nenhum questiona o movimento para definir vulnerabilidade em oposição ao poder. Este é um problema precisamente porque limita a capacidade de Kittay de atender às suas próprias ambições de reavaliar a dependência: as normas que ela elabora com base no paradigma da dependência isolada da interdependência não são conceitualmente cômodas o suficiente para acomodar toda a gama de relações de dependência. Não apenas isso, mas eles não conseguem se distanciar dos aspectos criticados da personalidade liberal. Nem deixam espaço para Kittay atribui uma valência negativa à vulnerabilidade onde ela acha que isso é de fato necessário: nos casos de dominação e coerção.

[20] Tomo isso como o ímpeto central do projeto de Kittay, uma leitura que ela compartilha (Kittay, 2002, p. 248).

[21] Observe que, nessa leitura, a suposição procedimental da crítica da dependência já esvazia a noção de independência que está disponível. Se uma pessoa é a vida inteira de um corpo em vez de um sujeito abstrato, então a independência não é uma propriedade abstrata que pode ser assumida de cada pessoa com antecedência, mas a situação incorporada de ser relativamente autossustentável dentro de seu ambiente. Uma noção corporal de independência, ao contrário de uma metafísica, resistiria a ser definida excluindo a dependência.

[22] Kittay relata Richard Pryor recontando isso em uma entrevista de 1995 (2002, 248). De acordo com Kittay, Pryor afirma que as novas capacidades estão entre suas “lições mais importantes”, incluindo aprender a confiar nos outros.

[23] Este é um exemplo interessante de fenômeno que Weiss lamenta (1999, 168): um louvável interesse na dependência que não consegue entendê-la em termos corporais.

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