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O sentido do apocalipse: notas de uma aula sobre aceleração e política segundo Hartmut Rosa, por Gabriel Peters

O sentido da fascinação pelo apocalipse é uma fascinação pelo apocalipse como sentido, isto é, como sentido - possível ou fantasioso – de uma história que o perdeu. Hein? A explicação vai abaixo.

Arte por Mariana Cavalcanti

Texto por Gabriel Peters

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Da modernidade clássica à modernidade tardia; ou da aceleração compassada à aceleração descompassada

Como vimos em post anterior, Hartmut Rosa oferece um diagnóstico original da modernidade ao tomar como sua tendência-chave a aceleração em múltiplas esferas da vida social, as quais vão da inovação tecnológica até a experiência íntima que os indivíduos têm do tempo e do espaço. Mas Rosa também revisita, à luz de sua visão “aceleracionista” do moderno, algumas das tendências de desenvolvimento já mapeadas pelos retratos sociológicos clássicos da modernidade. Estas incluem a diferenciação funcional (Durkheim), a racionalização instrumental (Weber), a individualização (Simmel) e a “domesticação” tecnológica da natureza (Marx). Como acontece costumeiramente nessas “reconstruções histórico-intelectuais com intento sistemático”, típicas da teoria crítica de estilo germânico (p.ex., Habermas, Honneth, Joas), a leitura que Rosa faz das visões clássicas da modernidade também serve, assim, para arregimentar aquelas visões à sua própria causa intelectual.

Ao mostrar que Marx, Durkheim, Simmel e Weber capturaram, cada um à sua maneira, tendências centrais da aceleração social moderna, Rosa sustenta, ao mesmo tempo, que tais tendências aceleracionistas não seriam meramente acessórias àqueles processos de modernização; elas seriam constitutivas dos mesmos. O aumento da velocidade de processos sistêmicos diversos, por exemplo, foi um dos impulsos fundamentais à diferenciação organizacional pensada por Durkheim, à racionalização das combinações de meios e fins teorizada por Weber e, ainda, ao controle tecnológico da natureza tematizado por Marx. O caráter entremeado desses processos é evidente em um sem-número de ilustrações. O incremento da rapidez nos serviços modernos de correios, para dar só um exemplo, se associa simultaneamente à divisão do trabalho (diferenciação), à padronização formal dos procedimentos de entrega (racionalização) e ao desenvolvimento tecnológico de meios de transporte (domesticação da natureza).

Seria a aceleração social dependente dessas tendências históricas, isto é, propensa a crescer ou decrescer, intensificar-se ou desintensificar-se juntamente com elas? Não na perspectiva de Rosa. Para o autor, a tendência aceleratória não só tem força suficiente para autonomizar-se frente àqueles processos como também para interrompê-los ou revertê-los caso eles passem a prejudicar, em vez de alimentar, sua marcha histórica.

A aceleração social constitui, portanto, uma tendência de desenvolvimento histórico mais fundamental do que “as outras categorias”, “já que os processos de diferenciação, racionalização ou individualização sucumbem ou se revertem quase em seu contrário ao se tornarem disfuncionais para mais aceleração” (2019: 123). Segundo Rosa, exatamente isto teria acontecido com a passagem da modernidade clássica para a modernidade tardia nas últimas décadas do século XX. Trata-se, para o autor, de uma fase histórica na qual instituições outrora favoráveis à aceleração social não mais conseguem acompanhar o ritmo dessa última, tornando-se, por conseguinte, entraves à dinâmica aceleratória. O descompasso é evidente, segundo Rosa, em uma multiplicidade de esferas societárias que, antes funcionais à aceleração, passaram a se mostrar fontes de “lentidão”, como os aparatos burocráticos dos estados nacionais, a separação entre tempos/espaços de trabalho e tempos/espaços de lazer ou, ainda, as instituições da democracia representativa. No presente ensaio, me concentrarei sobre as últimas.

Modernidade clássica; ou a política compassada           

Quando se pensa na dimensão política da modernidade, a democracia representativa assume centralidade tanto como projeto normativo quanto como efetividade institucional – por exemplo, com a última representando uma concretização histórica, ainda que bastante imperfeita e insuficiente, do primeiro. Como projeto e efetividade, a democracia representativa se assenta em concepções particulares do tempo histórico. A primeira dessas concepções, já em ruptura com as estruturas temporais de sociedades pré-modernas, reza que “a sociedade seria um projeto a ser construído politicamente no tempo” (Rosa, 2019: 505). Recuperando as famosas reflexões de Koselleck sobre a ideia moderna de “progresso” como “horizonte de expectativa”[i], Rosa sublinha que ela é filha de uma “temporalização das utopias” (Ibid.: 518). Graças a tal temporalização, ideais de uma sociedade melhor passaram a não ser mais projetados no plano imaginário de um “não lugar” (u-topos), mas no horizonte concreto do futuro histórico. Vinculadas a uma tarefa de direcionamento histórico progressivo, as instituições políticas modernas, de modo correlato, não mais se tomam como fixadas de uma vez por todas. Ao contrário, elas passam a ser pensadas e sustentadas como produtos contínuos das atividades de atores humanos dispostos a regulá-las, retificá-las e aprimorá-las no decurso da história.

Quando embebido em uma moldura democrático-representativa, esse direcionamento do desenvolvimento social ancora sua legitimidade no fato de representar um “consenso político contínuo – ainda que aberto a revisões” (Ibid.: 506-507). Nesse sentido, uma segunda premissa temporal inerente ao arranjo político da democracia moderna refere-se à compatibilidade de ritmos temporais entre a formação e a implementação daquela vontade política coletiva, de um lado, e o desenvolvimento histórico da sociedade como um todo, de outro. A superioridade funcional das democracias liberal-representativas na fase clássica da modernidade derivou, segundo Rosa, de sua capacidade de instituir uma esfera política apta a responder de modo suficientemente ágil, flexível e sensível às tendências sociais mais amplas que a cercavam (como, digamos, a industrialização no domínio técnico, a mercadorização no âmbito econômico e a secularização na esfera cultural).

A democracia representativa moderna também contrabalançava essa adaptação dinâmica ao desenvolvimento social in toto com uma dose de estabilidade, capaz de “garantir a segurança de expectativa… imprescindível…para o desenvolvimento das esferas funcionais (como a economia, a ciência, a educação e o direito)” (2019: 508). O contrabalanço entre adaptabilidade e estabilidade era importante na medida em que, juntamente com a responsividade rápida às demais esferas da vida social, um grau relativo de lentidão processual foi apreciado pelo pensamento democrático-liberal (de Locke a Dewey) como uma virtude política, não como entrave (Hassan, 2009: 151-186). Assim, por exemplo, as operações temporalmente custosas de deliberação próprias ao âmbito legislativo favoreceriam, segundo aquele raciocínio, a qualidade das decisões que emanam desse poder, justificando sua menor velocidade frente às decisões do executivo. 

Modernidade tardia; ou a política descompassada

 A sincronização entre as estruturas políticas e as demais esferas sociais foi quebrada, diz Rosa, com o surto de aceleração característico da modernidade tardia desde as últimas décadas do século XX. As temporalidades próprias a algumas dessas esferas passaram a ultrapassar a velocidade com que são conduzidos os processos democráticos de decisão e implementação de direcionamentos políticos: agregação e articulação de interesses coletivos, tradução de tais interesses em programas ideológicos, influência desses programas em decisões e legislações encampadas por partidos representativos, implementação destas decisões e legislações pelo executivo etc. Tal modelo de processo democrático vai se revelando cada vez mais custoso e ineficaz segundo a lógica temporal de esferas que passaram por um salto de aceleração, como a circulação transnacional de capital nos mercados financeiros ou de informações em plataformas digitais.

Conforme a política vai sendo “deixada para trás” pelas dinâmicas mais aceleradas de outras esferas funcionais, a atuação do estado vai perdendo suas pretensões de direcionamento consciente e democrático do desenvolvimento social. Ela assume, em vez disso, um caráter inerentemente reativo que a força a um modo de existência presentista e situacional: se “o futuro previsível recua continuamente para mais perto do presente”, “a política tem que se manter num modo improvisado, regido pela urgência dos prazos, pelas soluções temporárias e provisórias no lugar dos grandes projetos estruturais” (Ibid.: 531). É como consciência histórica desse novo estado de coisas que devem ser interpretados, segundo Rosa, discursos sobre a “pós-história” influentes na filosofia alemã contemporânea. O que emerge não é o fim da história como tal, mas o fim daquela “história temporalizada” que caracterizara a modernidade clássica como realidade institucional e projeto político. As ondas mais recentes de aceleração social levam a “uma crise temporal da política” cuja manifestação mais ostensiva é a…

dessincronização…entre o ‘tempo interno’ da política e as estruturas temporais de outras esferas sociais, especialmente da economia e do desenvolvimento técnico, porém cada vez mais também entre as medidas políticas e o desenvolvimento sociocultural” (Ibid.: 521).

 A tese de que processos deliberativos e regulações democráticas seriam obstáculos indesejados à velocidade de inovações técnicas ou crescimentos econômicos (p.ex., os trâmites burocráticos que regulamentam a venda de novos produtos ou a criação de pequenas empresas) certamente alimentou diversas iniciativas de neoliberalização desde as últimas décadas do século XX. Como nas políticas estatais de enxugamento neoliberal do estado, a ideia de que “menos política no sentido de regulamentação democrática significaria velocidades mais altas e, com isso, a eliminação da dessincronização social” (Ibid.: 523) tornou-se, ela própria, politicamente popular.

Longe de acometer somente a relação da esfera política com as demais esferas societais, trata-se de uma instância, diz Rosa em tom pessimista, da dessincronização generalizada entre os sistemas e subsistemas sociais: entre as exigências do mundo do trabalho e a psique dos trabalhadores; entre o desenvolvimento tecnoindustrial e os ciclos necessários à regeneração de ecossistemas naturais; entre a circulação de informação digital e a regulamentação jurídica dessa circulação; dentre tantos outros exemplos possíveis. Pensada em termos contrafactuais, a política “situacional” não constitui a única resposta possível ao seu descompasso aceleratório frente a esferas funcionais mais velozes, como a tecnologia e a economia. Uma “cronopolítica” voltada para a desaceleração social relativa, mediante intervenções “lentificadoras” nesses outros âmbitos funcionais, despontaria, em princípio, como alternativa. Entretanto, tal alternativa tem se afigurado demasiado custosa em múltiplas dimensões, custo ao qual se junta um temor acerca de “quem poderia ser o encarregado de uma tal política de desaceleração” (Ibid.: 530).

Dos memes ao STF: formas de aceleração da política

Nos primeiros anos de difusão da Internet, como é sabido, diversas perspectivas na teoria social depositaram um bocado de  esperança no potencial democrático de espaços virtuais de articulações coletivas e de debates políticos, espaços dos quais poderiam emergir direcionamentos históricos fundados em “uma opinião genuinamente pública” (Ibid.: 537). Rosa se revela cético em relação a tal literatura, mesmo escrevendo em 2005 – portanto, antes que a negligência dessas perspectivas quanto às potencialidades autoritárias da Internet fosse revelada, por assim dizer, pela própria realidade sociopolítica, com fenômenos como a “pós-verdade”, as “fake news”, a proliferação de estilos paranoides e conspiratoriais de interpretação do mundo e, devendo muito a tais fatores, a expansão e o fortalecimento de movimentos e regimes de extrema direita em diversas sociedades – do Brasil à Turquia, da Hungria aos Estados Unidos. De modo ainda tímido, mas ainda assim ligeiramente profético, Rosa afirma que…

“A tradução de um acúmulo de ‘opiniões particulares’, inventariáveis por meio das novas mídias, em uma opinião genuinamente pública e política…pode ser, na verdade, dadas as condições de difusão da esfera pública política, até mesmo progressivamente custosa num plano temporal. Uma tal tradução provavelmente será cada vez menos tentada em função de sua enorme demanda temporal – no lugar de um debate com argumentos justificados e justificáveis entra…o embate político de imagens e símbolos, mais rapidamente comunicáveis que palavras. Na luta pelo recurso cada vez mais escasso da atenção, a política corre o risco de ser reduzida a uma questão da melhor estratégia de marketing” (Ibid.: 537; grifos do autor).

Se descontarmos complementos contextuais importantes, como o papel da lógica algorítmica de customização de clientes de plataformas digitais, os escrúpulos pessimistas de Rosa quanto à degradação estrutural da esfera pública se mostraram procedentes. Por exemplo, sua alusão a “estratégias de marketing” me parece ampla o suficiente para abarcar os outros tantos substitutos imagéticos e simbólicos do genuíno debate de ideias que passaram a dominar a esfera sociopolítica hoje, como memes, trollagens e lacrações.      

Na ausência de uma política temporal de desaceleração compulsória, portanto, a política na modernidade tardia busca sincronizar-se ao desenvolvimento hiperacelerado de outras esferas funcionais, como a técnica e a economia, através de uma série de expedientes que desfiguram a feição por ela adquirida na modernidade clássica. O núcleo de tais expedientes consiste no deslocamento de responsabilidades e processos decisórios da política democrática para âmbitos sociais mais velozes: a absorção crescente pelo poder executivo, devido à sua maior rapidez e flexibilidade, de tarefas políticas antes tomadas como próprias ao legislativo; a “responsabilização” crescente de indivíduos e famílias, como viram Melinda Cooper e Wendy Brown, por deveres outrora assumidos pelo estado de bem-estar social, como o cuidado de crianças, idosos e doentes; a transferência de questões controversas da arena política para tribunais constitucionais (“judicialização da política”); e a diminuição da intervenção estatal na economia, abandonada à sua capacidade de “autorregulação”.

Na última eleição para a presidência do Brasil, a “lentidão” legislativa frente a esferas societais mais velozes se mostrou, por exemplo, na dificuldade de regulação de “fake news” veiculadas em plataformas digitais sediadas fora do país. Quando ocorreram, tais iniciativas reguladoras tiveram de advir – sintomaticamente – de outra das alternativas mais rápidas ao legislativo, i.e., a política judicializada do Xandão (Avritzer, 2023: 36) 

Aceleradores de direita, desaceleradores de esquerda?

De todo modo, este é o ponto em que a análise de Rosa desliza para certo simplismo. O autor alemão propõe um contraste superficial – embora sugestivo – entre as cronopolíticas próprias às fases clássica e tardia da modernidade. Ele sublinha que o contraponto entre “progressistas” de esquerda e “conservadores” de direita, no que tange a atitudes quanto à aceleração social, teria se invertido. Pautas de esquerda como o controle estatal da economia, a ampliação de processos deliberativos ou a proteção de ecossistemas e comunidades tradicionais, por exemplo, convergem em seu caráter “desacelerador”. A “direita”, por seu turno, encamparia as acelerações promovidas pela introdução de novas tecnologias, pela dissolução de barreiras nacionais a transações econômicas e pela autorregulação mercadológica. A dicotomia simples apresentada por Rosa deixa de lado uma distinção importante, em termos analíticos e substantivos, entre uma direita neoliberal, de um lado, e uma direita nacional-populista, de outro – distinção que, a despeito de casamentos conjunturais e convergências doutrinárias parciais entre neoliberalismo e autoritarismo de direita, é fundamental para compreender desenvolvimentos sociopolíticos subsequentes à publicação de Aceleração em 2005.

De par com a relativa popularidade ideológica e eleitoral de discursos (anti)políticos que rejeitam a “lentidão” da política da modernidade clássica, Rosa também dá uma significação das maiores ao crescimento dos índices de abstenção eleitoral na maior parte das democracias desenvolvidas do Ocidente. Longe de ser redutível a um esvaziamento do senso de virtude cívica entre os membros dessas sociedades (em razão, por exemplo, de processos de individualização), os altos níveis de abstenção no voto sinalizariam também uma consciência racional, por parte de cidadãos ordinários, da “crescente perda de sentido da política para o curso da história” (Ibid.: 541). Um equivalente tupiniquim desse processo pode ser encontrado, creio eu, no caminho de votos antipolíticos que levaram, no espaço de alguns anos, do palhaço Tiririca até o funesto Bolsonaro. Sob esse aspecto, a trajetória da antipolítica no Brasil, diferentemente do que acontecia no teatro grego e na história segundo Heine e Marx, aconteceu primeiro como farsa, depois como tragédia. 

 A consciência daquela perda de sentido da política também se manifesta, de resto, nas próprias gramáticas ideológicas de justificação da legitimidade estatal, segundo as quais as decisões (p.ex., abertura de mercados, derrubada de barreiras “protecionistas” etc.) são legitimadas menos por uma ideia bem definida de “progresso” do que por retóricas da obrigação e da inevitabilidade (p.ex., necessidade de manutenção de competitividade da economia nacional em um mundo globalizado).

O sentido do fim

Como ocorre com a identidade pessoal, o sistema político na modernidade tardia é forçado, então, à “miopia” e à situacionalidade radical pela contração do presente oriunda da nova onda aceleratória. Essa dissolução de um horizonte de futuro pelo presenteísmo é o que explica, diz o autor, a famosa observação de Fredric Jameson, tão importante para Mark Fisher, segundo a qual os habitantes da modernidade tardia têm mais facilidade em imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo (Ibid.: 544). Ademais, se a conceituação de programas políticos distintos ainda se exprime na linguagem de “movimentos”, acrescenta Rosa, os “ismos” em confronto não mais apontam para diferentes “histórias futuras”, mas compõem “um espaço estático de formas políticas…experienciadas…concomitantemente como atemporais e simultâneas” (Ibid.).

Atemporais e simultâneas? Reencontramos aqui, afinal, o tema da “inércia” e da “paralisia” como complementos paradoxais da aceleração frenética. O ritmo acelerado de transformações que nos assaltam não pode ser, na modernidade tardia, subsumido em um sentido histórico definido que nos liga ao futuro. O resultado é nossa imobilização no presente – porém, paradoxalmente, em um presente ultradinâmico. Ao apresentar Jean Baudrillard como arguto observador dessa condição ambivalente de paralisia frenética, Rosa expõe valiosamente o que há de concreção sociológica por detrás das descrições alusivas e pirotécnicas do filósofo francês – por exemplo, a de um presente no qual a história, sem poder “suportar o centrifugar dos fatos em torno de si mesmos”, sucumbe ao peso de sua própria “massa”, “implodindo em atualidade” (Ibid.: 546).

Como sucede na relação dos episódios vividos com a identidade pessoal, os acontecimentos políticos, ao assumirem um caráter radicalmente situacional, não mais podem ser convertidos em “experiência” no sentido benjaminiano da palavra. Em vez de imbuídos de um sentido histórico definido que passaria a integrar um senso de autoidentidade coletiva, eventos sociopolíticos, mesmo quando extraordinariamente turbulentos, têm “sua significância subjetiva e coletiva” submetida a um “empalidecimento” (Ibid.: 548). Uma vez mais, Rosa lança, de passagem, uma solução analítica das mais ousadas para questões como nossa “dessensibilização” moral e emocional frente a acontecimentos de extraordinária magnitude, como catástrofes humanitárias e ameaças ecológicas. Tal dessensibilização, frequentemente explicada pela hiperexposição midiática (p.ex., a “fadiga da compaixão” resultante do contato diário com imagens do sofrimento distante), também derivaria do regime temporal radicalmente presentista e situacional engendrado pela aceleração moderno-tardia, i.e., de suas consequências nos planos pessoal e coletivo.

Engajando-se menos com a tese de Fukuyama sobre o “fim da história” do que com a literatura germânica recente sobre a “pós-história”, Rosa sublinha que o que encontrou o seu término não foi o mundo como tal, mas qualquer sentido histórico que fornecesse o laço entre passado, presente e futuro. A esse respeito, os paralelos entre as esferas pessoal e política também podem ser lidos, diz Rosa sem surpreender, na chave de uma dessincronização entre as dimensões estrutural e cultural:

“o processar sistêmico nas estruturas da sociedade tardo-moderna se tornou rápido demais para a sua codeterminação pelos recursos de sentido culturais que fundamentam a base política unificadora e o entendimento histórico do projeto da modernidade” (Ibid.:  551).

Eis porque o “fim do mundo” se apresenta, em um sem-número de veículos expressivos e imaginativos (p.ex., a literatura de ficção científica ou o cinema-catástrofe), como única narrativa coerente capaz de escapar ao “tempo a-histórico sem fim” em que nos vemos implicados. O curioso fascínio psíquico e ideológico exercido pelas narrativas do apocalipse na cultura moderno-tardia se explica, conforme o autor, pelo fato de que elas representam uma “alternativa menos drástica” e até “uma esperança de redenção” frente àquela a-historicidade sem sentido. O sentido da fascinação pelo apocalipse é uma fascinação pelo apocalipse como sentido, isto é, como sentido – possível ou fantasioso – de uma história que o perdeu. 

Notas 

[i] “…um novo horizonte de expectativa…terminou ganhando a forma do conceito de progresso. Do ponto de vista da terminologia, o ‘profecias’ espiritual foi substituído por um ‘progressus’ mundano. O objetivo de uma perfeição possível, que antes só podia ser alcançado no além, foi posto a serviço de um melhoramento da existência terrena, que permitiu que a doutrina dos últimos fins fosse ultrapassada, assumindo-se o risco de um futuro aberto. Por último, o objetivo da perfeição foi temporalizado…e trazido para o nível do acontecer mundano…(…) A esta temporalização da doutrina da perfeição correspondeu, na França, a formação da palavra ‘perfectionnemeut’ [aperfeiçoamento], que havia sido subordinada — especialmente por Rousseau — à noção histórica fundamental de uma ‘perfectibilité’ [perfectibilidade] do homem. Desde então toda a história pôde ser concebida como um processo de contínuo e crescente aperfeiçoamento; apesar das recaídas e rodeios, ele teria que ser planejado e posto em prática pelos homens. (…) a partir de então o horizonte de expectativa passa a incluir um coeficiente de mudança que se desenvolve com o tempo” (Koselleck, 2006: 316-317).

Referências

AVRITZER, Leonardo. “Esfera pública sem mediação? Habermas, anti-iluminismo e democracia”. Lua Nova, 118, p.13-40, 2023.

HASSAN, Robert. Empires of Speed: Time and the Acceleration of Politics and Society. Leiden: Brill, 2009.

KOSELLECK, Reinhart. Passado futuro: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo: Unesp, 2019.

Para citar este texto: PETERS, Gabriel. O sentido do apocalipse: notas de uma aula sobre aceleração e política segundo Hartmut Rosa. Blog do Labemus, 2023. [Publicado em 3 de agosto de 2023]. Disponível em: blogdolabemus.com/2023/06/26/o-sentido-do-apocalipse/

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