teoria social em pílulas

A pressa é amiga da acumulação: capitalismo e outros motores da aceleração social na modernidade tardia, por Gabriel Peters

Desde que o capitalismo transformou tempo em dinheiro na era industrial, estava lançada a engrenagem que desembocaria na sua versão atual "24 por 7"

Por Gabriel Peters

 

A marcha imparável: aceleração social como tendência-mestra da(s) modernidade(s) segundo Hartmut Rosa

Como já mostrou esse blog aqui e acolá, o teórico alemão Hartmut Rosa toma a aceleração social como tendência-chave da modernidade, em um diagnóstico que inclui a explicação da transição histórica de sua etapa clássica à sua etapa tardia. As diferenças entre um e outro estágio da modernidade derivam, diz Rosa, do fato de que características institucionais que favoreceram a aceleração social na modernidade clássica, ao se transformarem em obstáculos àquela aceleração, precipitaram o advento da modernidade tardia a partir das décadas finais do século XX. Dos regimes de trabalho ao funcionamento do estado, passando pelas narrativas de si e pelos relacionamentos erótico-afetivos, as mudanças que anunciam o mundo moderno-tardio em domínios diversos da vida social respondem ao imperativo da escalada aceleratória.

Eis por que Rosa define a aceleração como a tendência decisiva da modernidade em suas diferentes fases: a partir do momento em que atributos institucionais que antes promoviam a aceleração se tornam entraves a ela, aqueles atributos não são capazes de interromper a aceleração; ao contrário, é a aceleração que se impõe, com sua maior força histórica, sobre aqueles atributos, transformando-os mais ou menos radicalmente de modo a torná-los funcionais à sua marcha.  Tais alterações estruturais respondem, assim, pelo feitio contrastante da modernidade tardia frente à modernidade clássica: trabalho flexível em vez de trabalho regulado; organizações flexíveis em vez de organizações burocratizadas; estado como força de neoliberalização em vez de estado “interventor”; identidade radicalmente situacional e presentista em vez de identidade pessoal como projeto de longo prazo; política “reativa” em vez de política diretiva; e assim por diante.  

Como também vimos em post anterior, Rosa nota que a aceleração social, nas suas distintas dimensões (i.e., aceleração técnica, aceleração da mudança social e aceleração do ritmo da vida), assume um caráter autopropelido que ajuda a explicar tanto sua vigência na modernidade clássica quanto sua radicalização na modernidade tardia. Além dessa autopropulsão, entretanto, Rosa também mapeia três motores exteriores que convergem na promoção da aceleração social desde a fase clássica da modernidade: o motor econômico envolvido na transformação de tempo em dinheiro; o motor cultural representado por ideias e valores quanto às promessas existenciais da aceleração; o motor socioestrutural resultante das exigências aceleratórias que sistemas e subsistemas autonomizados fazem uns aos outros em uma sociedade diferenciada, motor que Rosa resume, na linguagem de Niklas Luhmann, como “temporalização da complexidade” (2010: 373). Sugiro que nos demoremos mais no primeiro fator: o motor econômico. Antes disso, no entanto, duas palavrinhas recapituladoras sobre o motor cultural e o motor socioestrutural.

10000 coisas para experimentar e realizar antes de morrer: o motor cultural

No plano teórico mais geral, Rosa trabalha sensatamente com uma perspectiva multidimensional que toma as diferentes esferas da vida social como relativamente autônomas e, ao mesmo tempo, interinfluentes. (Para quem curte teoria da teoria da teoria, faço uma defesa abstrata dessa “ontologia estratificada” do mundo social aqui). Embora atento ao peso decisivo dos motores econômicos sobre a aceleração moderna, o autor alemão é crítico de abordagens neomarxistas que reduzem os aspectos culturais desse processo, tais quais o incentivo ideológico à aceleração do consumo ou as celebrações artísticas da velocidade, a meros epifenômenos superestruturais da economia capitalista.

Ao lançar essa crítica, não creio que Rosa seja justo, a bem da verdade, para com autores marxistas como David Harvey (1989) e Fredric Jameson (1991), cujas análises nuançadas das conexões históricas entre o capitalismo “pós-fordista” ou “tardio”, de um lado, e o “pós-modernismo” como “estilo” ou “lógica” cultural, de outro, estão a léguas de uma visão simplista da cultura como simples reflexo material da economia. Seja como for, certo Rosa está, pelo menos, em denunciar a preguiça explanatória de quaisquer raciocínios – marxistas ou não – que pressuponham que os correlatos culturais da aceleração ocorrem simplesmente “porque os imperativos sistêmicos econômicos assim o exigem” (Ibid.: 353). Sem negar a força extraordinária dos propulsores capitalistas à aceleração, uma investigação multidimensional tem de elucidar como imperativos econômicos se traduzem concretamente em tais ou quais tendências culturais. No mais, seguindo a trilha da crítica weberiana a unilateralismos explicativos de cunho materialista ou idealista no exame do mundo moderno, Rosa também procura identificar como circunstâncias culturais influenciaram, por seu turno, a própria dinâmica aceleratória da economia capitalista na modernidade. 

Na argumentação rosiana sobre a cultura moderna, uma importância capital é conferida à secularização e seus efeitos sobre a relação existencial dos indivíduos com sua própria mortalidade. Em cenário pré-moderno, quando a certeza de uma vida após a morte engendrava dúvidas angustiosas sobre a salvação ou danação da alma, indivíduos eram pressionados a se preocupar um tanto mais com a justeza de suas condutas nesse mundo do que com a extensão de sua vida terrena, a qual aparecia como um sopro efêmero frente à eternidade aguardada. Em contraste, com a corrosão ou, pelo menos, o enfraquecimento dessa crença em uma eternidade pós-terrena, os modernos passam a enfrentar uma pressão mundana para que o seu tempo de vida seja utilizado “o mais intensiva e extensivamente possível” (Ibid.: 365) – aliás, não surpreende que Rosa tenha estabelecido, nesse ponto, um diálogo com a filosofia da vida intensa” de Tristan Garcia, como ilustra essa entrevista que eu, Diogo Corrêa e João Lucas Tziminadis fizemos com o autor.

Em diferentes estágios da modernidade, uma concepção de autorrealização individual baseada em um “hedonismo intensivista”, dirigido a uma vida repleta de vivências intensas e diversificadas (p.ex., viagens e amizades), coexiste tensamente com uma concepção perfectiva da boa vida orientada principalmente para o automelhoramento e a realização das próprias capacidades (p. ex., no sucesso profissional ou na construção de alguma espécie de legado). Os possíveis choques entre essas duas concepções de “felicidade” engendradas pela sociedade moderna, choques experimentados por qualquer pessoa que já se sentiu dividida entre estudar sozinho e tomar cerveja com amigues, não são meu tema aqui. Por ora, o interessante a notar é que tanto o indivíduo que deseja mais vivências quanto aquele que deseja mais realizações, assim como aliás o sujeito que busca um equilíbrio ótimo entre os dois modelos de felicidade, encontram na aceleração do ritmo de vida sua principal estratégia para lidar com os limites a eles impostos pela finitude da existência humana.

De posse do mesmo montante finito de tempo, uma pessoa que procure multiplicar suas experiências de lazer terá de acelerá-las para que elas “caibam” naquele montante – por exemplo, em vez de dez horas passadas com um amigo, cinco encontros de duas horas com cinco amigos diferentes ou, ainda, em vez de ter de escolher entre uma hora na exposição de arte ou uma hora lendo um livro, meia hora para cada atividade. A tese de Rosa não supõe, obviamente, que as pessoas calculem a distribuição temporal de suas vivências explicitamente nesses termos, mas, sim, que elas são objetivamente forçadas a essas trocas (trade-offs) intertemporais quando se engajam com o mundo segundo o ideal da boa vida como pluralidade e intensidade vivencial. A mesma compulsão à aceleração se impõe, por sua vez, no caso de indivíduos voltados a multiplicar o número e/ou aumentar o impacto de suas realizações e conquistas. A acadêmica que escreve artigos, prepara e ministra aulas, preenche relatórios, dá pareceres e orienta teses dificilmente escapará da pressão a acelerar todas ou, pelo menos, algumas dessas tarefas caso queira dar conta do conjunto inteiro. E olha que nem mencionamos a coexistência desses encargos profissionais com demandas oriundas de outras esferas de vida, como as responsabilidades familiares.

O que nos traz à diferenciação sistêmica como “motor socioestrutural” da aceleração, inclusive do ritmo da vida individual.  

O tempo que você gasta com outros sistemas não me interessa: o motor socioestrutural

Seguindo a trilha da teoria sistêmica de Niklas Luhmann, Rosa considera os processos de diferenciação característicos das sociedades modernas como relativamente autônomos em relação aos mecanismos da acumulação capitalista: por um lado, “…é possível imaginar…sociedades funcionalmente diferenciadas cujos (sub)sistemas econômicos não se orientam pela máxima da valorização do capital”; por outro, “uma sociedade poderia produzir segundo o princípio de valorização do capital sem ser, primariamente, funcionalmente diferenciada” (Ibid.: 374). Nesse sentido, a diferenciação sistêmica configura, juntamente com o motor cultural, um motor de aceleração socioestrutural irredutível ao “motor econômico” representado pelo capitalismo.

Sendo uma resposta funcional a necessidades de aceleração e ao problema da escassez de tempo, a diferenciação gera imperativos de sincronização que os sistemas impõem uns aos outros e aos atores individuais. Frente à “perspectiva interna” e à “coerência autopoiética” de cada sistema (p.ex., o sistema em que está localizada a universidade onde um professor dá aula), os demais sistemas no qual um indivíduo circula (p.ex., a família ou a militância política) aparecem somente como “ambientes perturbadores” nos quais o mesmo indivíduo “desperdiça” tempo. Para todos os efeitos práticos, por exemplo, o tempo que uma acadêmica passa cuidando de seu filho tende a ser considerado, do ponto de vista autorreferencial do subsistema que avalia sua produtividade científica, como tempo “desperdiçado”. Sanduichado por demandas de diferentes sistemas autorreferentes, resta ao próprio indivíduo distribuir e empregar, com os malabarismos possíveis, o tempo disponível para suas atividades em contextos sistêmicos diversos, cada um dos quais considera tempo dedicado a outro sistema (p.ex., ao lazer familiar ou a iniciativas cívicas em vez da pesquisa universitária) como, na prática, tempo perdido.

Aliás, na medida em que tal tempo tende a ser recobrado pelo sistema temporariamente abandonado assim que o mesmo indivíduo retorna a ele, melhor seria defini-lo não como tempo perdido, mas como tempo “adiado” que terá de ser cumprido no futuro. Mesmo o profissional que pode se dar ao luxo de passar duas semanas sem responder e-mails, por exemplo, terá de pagar o preço depois, seja na forma do trabalho extra para responder à montanha de mensagens acumuladas, seja na forma de custos profissionais resultantes de e-mails não respondidos, como clientes desapontados com a ausência de resposta ou convites valiosos cujo prazo expirou. A última ilustração indica, com efeito, que a pressão temporal sobre os indivíduos é tanto maior na medida em que os “adiamentos” a eles concedidos, quando passam de um sistema para outro, não se estendem indefinidamente. Ao contrário, diversos dos prazos que eles têm de obedecer representam, caso não obedecidos, oportunidades perdidas e frequentemente lamentadas.

Disciplina temporal e trabalho industrial: o motor econômico

Quando trata do motor econômico da aceleração social moderna, Rosa se mostra bastante influenciado pelo retrato que Marx pintou dos imperativos aceleratórios inerentes ao capitalismo. Várias das características assumidas pelo tempo no sistema capitalista, como a abstração de seus caracteres “qualitativos” (p.ex., sua conexão com dia ou noite ou com diferentes estações do ano), se entrelaçam à sua mercadorização. Interpretada à luz das teorias marxianas do valor-trabalho e da mais-valia, a economia capitalista consiste fundamentalmente em um sistema de “aquisição e exploração de vantagens temporais” (Ibid.: 323). A irradiação da dinâmica aceleratória a partir da esfera econômica também ganha muito do seu impulso do fato de que a aceleração da produção depende de acelerações correlatas nos processos de transporte, circulação, distribuição, venda e consumo de mercadorias. Sem transformar a economia na variável independente que explica todo o restante da sociedade, Rosa destaca as poderosas reverberações que a mercadorização do tempo produz na cultura e na experiência cotidiana, reverberações imiscuídas na própria linguagem monetária que utilizamos para tratar de nossas vivências temporais: assim como o dinheiro, nosso tempo pode ser, por exemplo, gasto ou investido, perdido ou ganho, desperdiçado ou guardado etc.  

Como já discutimos em diálogos com Alain EhrenbergJonathan Crary e outros, o capitalismo tardio depende, em seu próprio funcionamento sistêmico, de “estruturas de personalidade” (diria Elias), disposições mentais e corpóreas (diria Bourdieu) ou formas de subjetividade (diria Foucault) que esse próprio sistema procura engendrar mediante uma série de mecanismos socializadores. Poder-se-ia tomar essa tese como mais uma ilustração da dialética entre estrutura e agência na vida social, claro, mas é interessante atinar que autores na tradição marxista, tais como o Gramsci das considerações sobre “americanismo e fordismo” (2008) ou o Edward Thompson de ensaio clássico sobre a disciplina capitalista do tempo de trabalho (1991), mostraram que a própria fase anterior do capitalismo industrial só pôde funcionar mediante um processo prolongado, bem como eivado de resistências, de moldagem sócio-histórica de subjetividades individuais temporalmente adaptadas ao industrialismo capitalista. Informado pela historiografia thompsoniana, Rosa assinala que essa moldagem dependeu de uma tripla ruptura entre a nova organização do tempo de trabalho na fábrica, de um lado, e a vivência pré-capitalista do tempo, de outro.

A primeira ruptura foi instaurada pela organização do trabalho industrial segundo o relógio mecânico, corporificação tecnológica de um tempo abstraído de suas conexões qualitativas com o “tempo da natureza”. Seja dia ou noite, inverno ou verão, clima de sol ou chuva, as unidades quantitativas de tempo são tomadas, na economia capitalista, como idênticas para os cálculos de ganhos e perdas: “uma hora na qual as máquinas cessam e não se trabalha, ou então não se transporta ou vende, é uma hora economicamente perdida” (Ibid.: 331). Nesse sentido, o regime temporal ininterrupto no qual desemboca o capitalismo tardio ou “24 por 7”, nos termos de Jonathan Crary, é um potencial ao qual o sistema capitalista tende desde sempre, como Marx já percebera em pleno século XIX: “Apropriar-se de trabalho 24 horas por dia é…o impulso imanente da produção capitalista” (Marx, 2013: 419).   

A segunda ruptura que o capitalismo industrial efetuou com a experiência temporal “pré-moderna” envolveu uma separação estrita entre tempo de trabalho e tempo livre, calcada também na divisão espacial entre os locais de trabalho e de moradia. Tais circunscrições  espaço-temporais, impactando profundamente os modos pelos quais os indivíduos experienciavam e planejavam sua vida como um todo, foram suportes indispensáveis à própria delimitação das esferas pública e privada na modernidade.

A terceira ruptura implicou, finalmente, a determinação do tempo de trabalho por durações abstratas estabelecidas pelo relógio e pelo calendário, portanto desligadas de tarefas particulares (p.ex., conclusão de um produto encomendado) ou eventos específicos (p.ex., o anoitecer).

A adaptação subjetiva e prática dos indivíduos a tais ritmos temporais do trabalho na sociedade industrial não foi imediata, mas, ao contrário, marcada por toda espécie de recalcitrâncias involuntárias e resistências voluntárias. Juntando Thompson ao Foucault de Vigiar e Punir, Rosa observa que todo um conjunto de instituições modernas, para além das fábricas, se voltou para inculcar diretrizes temporais similares nas subjetividades individuais, através da doutrinação explícita e, principalmente, da habituação através de reiteração prática: jardins de infância, hospitais, prisões, quartéis e, sobretudo, escolas. “Em todas as instituições mencionadas”, diz Rosa,

“…a obediência a uma rígida disciplina temporal desempenha um papel expressivo”, “cujo modelo de atividade é definido…por um esquema temporal rígido e abstrato (imagine-se, por exemplo, o ritmo de horários de aula…(…) A disciplina temporal a ser inscrita no corpo consiste, antes de tudo, na capacidade de orientar as próprias ações segundo um esquema temporal abstrato, isto é, em ser pontual e preterir eventuais necessidades (como sono, fome ou vontade de ir ao banheiro) em favor das diretrizes do esquema temporal estipulado, de modo a postergar-se a satisfação de necessidades, reprimir-se impulsos e condicionar, em relação a pontos temporais abstratos, períodos de alto desempenho e descanso” (Ibid.: 333-334).

Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo tardio

Rosa considera a passagem da modernidade clássica para a modernidade tardia como caracterizada, já vimos, pela radicalização da aceleração. Seu desafio se torna, então, exibir a compatibilidade dessa radicalização com certas tendências inerentes à modernidade tardia que, rompendo com atributos centrais do regime laboral da modernidade clássica, poderiam parecer retrocessos a um “pré-capitalismo”. A desregulação dos tempos e espaços de trabalho e a flexibilização da produção, traços definidores de um capitalismo tardio globalizado, atacam respectivamente a segunda e a terceira características do capitalismo industrial referidas acima.

Como realçaram observadores tão variados quanto Mark Fisher e Byung-Chul Han, separações estritas entre trabalho e mundo da vida dão lugar, no capitalismo tardio, a uma interpenetração frequente na qual “o trabalho é levado para a casa ou mesmo lá realizado” (p.ex., respostas a mensagens profissionais de Whatsapp durante o jantar com filhos), enquanto “preferências e anseios oriundos do mundo da vida são novamente infiltrados na esfera do trabalho” (p.ex., a mesma página do Instagram que conecta um tatuador com seus amigos pessoais também serve de instrumento de divulgação do seu trabalho) (Rosa, 2010: 338). A flexibilização das condições de trabalho no novo capitalismo, por sua vez, crescentemente substitui contratos rotinizados de longo prazo por trabalhos definidos e remunerados não em função de sua duração abstrata, mas do cumprimento de tarefas e projetos em prazos específicos (p.ex., uma tradução freelancer ou uma entrega de comida por aplicativo). 

Como é sabido, Marx edificou sua teoria materialista da história a partir da complexa dinâmica entre forças produtivas e relações sociais de produção – uma explicação detalhada aqui. Nessa dinâmica, um certo arranjo de relações sociais de produção que favorecem o desenvolvimento das forças produtivas é capaz de fazê-lo apenas até um limiar histórico. A partir desse limiar, aquele arranjo se torna antes um empecilho do que um propulsor do desenvolvimento das forças produtivas. Sob a pressão histórica dessas últimas, então, emerge e eventualmente se impõe uma forma nova de organização social da produção, funcionalmente mais adequada a dar continuidade àquele desenvolvimento.

Ainda que rejeite o teorema da determinação da superestrutura pela base, conforme visto, Rosa se vale de um raciocínio analógico para explicar como as mesmas compulsões por crescimento e aceleração que se encontram na raiz do sistema capitalista geram transformações históricas nos seus modos de operação:

“a dinâmica econômico-temporal da aceleração capitalista, de acordo com os requerimentos para seu subsequente desenvolvimento, é capaz de criar instituições e modos de ação (além de…formas de subjetividade) e, junto disso, as orientações temporais de que precisa, e também é capaz de aniquilá-los” (Ibid.: 350; grifos meus).

É segundo esse ângulo que o autor de Aceleração interpreta, pois, as vicissitudes nos regimes temporais de trabalho sob o capitalismo. Nas primeiras eras do capitalismo industrial, a aceleração econômica dependeu centralmente da separação radical entre tempo de trabalho e tempo livre, assim como da instauração de períodos laborais definidos segundo os marcos abstratos do relógio mecânico e dissociados de seus vínculos quer com tarefas particulares, quer com eventos específicos. Nas décadas finais do século XX, conforme os potenciais aceleratórios dessas duas características do trabalho foram realizados até seu ponto máximo, elas passaram de impulsoras a freios do dinamismo da economia capitalista. De modo criativo, o capitalismo se redinamiza, então, pelo aproveitamento de motivações e habilidades do mundo da vida até então mantidas à parte pelo regime laboral clássico, promovendo uma crescente indiferenciação entre tempo livre e tempo de trabalho.

Os avatares dessa indiferenciação crescente não incluem somente o “transporte” de atividades entre os tempos/espaços de trabalho e os tempos/espaços de lazer. Eles também se manifestam na proliferação de atividades que não se deixam classificar inequivocamente em somente uma das categorias: informações importantes e úteis ao trabalho podem circular nas conversas descontraídas de um happy hour; parcerias acadêmicas podem ser firmadas, entre uma taça de vinho e outra, no cocktail de abertura de um congresso; a rotina doméstica de um influencer, quando filmada e compartilhada online, gera a ele uma série de dividendos; um guia de meditação pode ser avidamente consumido pelo indivíduo em seu tempo livre, consumo orientado por objetivos ao mesmo tempo pessoais (p.ex., adquirir um melhor manejo da ansiedade) e profissionais (p.ex., adquirir mais capacidade de resistir às distrações no trabalho); e assim por diante.

Em argumento um tanto similar àquele de Byung-Chul Han sobre a passagem do “paradigma da disciplina” ao do “desempenho”, Rosa se apressa em dizer que essa reorganização social de formas de vida só pôde se manter funcional à aceleração capitalista, no entanto, devido à sua ancoragem em disposições de conduta racionalizada que permanecem profundamente sedimentadas nas subjetividades modernas:

“o ethos da ética protestante e sua lógica racionalizada criaram raízes tão profundas no mundo da vida e na cultura do lazer que já não podem ser ameaçadas por essa des-diferenciação” (Ibid.: 346).

Eis por que os modelos de individualidade ou formas de subjetividade que brotam dessa configuração não são um retorno a um “pré-capitalismo”, muito menos uma transcendência na direção de um “pós-capitalismo”, mas a manifestação de uma espécie de supercapitalismo intensificado que, quando deixa de funcionalizar os indivíduos, pode muito bem levá-los ao colapso.   

Cenas do próximo capítulo: o estado-nação e a violência

No que respeita ao braço administrativo assim como ao braço militar do estado, Rosa diagnostica a mesma tendência contraditória que capturou em outros tantos domínios institucionais da sociedade moderna: características que antes propiciaram uma aceleração social decisiva na consolidação da modernidade clássica (p.ex., a burocratização crescente do aparato estatal), quando passam a operar como freios à aceleração, são reconfiguradas com o advento da modernidade tardia (p.ex., a relativa “flexibilização” e “desburocratização” do próprio estado, frequentemente um agente central no enxugamento neoliberal de si mesmo).

Falo sobre o tema em outro texto-aula.

Se tempo houver.  

Referências

ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London/New York: Verso, 1987.

GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.

HARVEY, David. The condition of postmodernity. Oxford: Blackwell, 1989.

JAMESON, Fredric. Postmodernism or, the cultural logic of late capitalism. London: Verso, 1991.

MARX, Karl. O capital. Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

THOMPSON, E.P. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”. In: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 

2 comentários em “A pressa é amiga da acumulação: capitalismo e outros motores da aceleração social na modernidade tardia, por Gabriel Peters

  1. Cassandra Véras

    uau.

  2. “Eis por que os modelos de individualidade ou formas de subjetividade que brotam dessa configuração não são um retorno a um “pré-capitalismo”, muito menos uma transcendência na direção de um “pós-capitalismo”, mas a manifestação de uma espécie de supercapitalismo intensificado que, quando deixa de funcionalizar os indivíduos, pode muito bem levá-los ao colapso”.

    PERFEITO!

    Ótimo artigo!

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