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A “história onírica” da Alemanha: notinha sobre a influência de Heinrich Heine sobre o jovem Marx, por Gabriel Peters

A presença do ensaísta e poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856) entre as influências formativas do jovem Marx tem sido insuficientemente notada, especialmente quanto ao que Marx denominou a "história onírica" da Alemanha de seu tempo

Por Gabriel Peters

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Introdução

O rastreio das influências formativas do pensamento do jovem Karl Marx, sobretudo no período que vai de 1843 a 1848, já deu origem a uma biblioteca inteira de referências. No entanto, a presença decisiva do ensaísta e poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856) entre aquelas influências tem sido, penso eu(zinho) e alguns outros (p.ex., Reeves, 1972: 45; Leopold, 2007: 26), insuficientemente notada. Sem negar que os influxos heinianos sobre Marx foram criticamente filtrados, além de sintetizados com uma série de outras abordagens, creio ser importante preencher essa lacuna, especialmente quanto a um tema capital nos escritos marxianos da juventude: a tese de que os alemães teriam realizado, no domínio do pensamento filosófico “puro”, o equivalente às transformações econômicas, sociais e políticas que franceses e ingleses haviam avançado no plano efetivo da história.

Contemporaneidade histórica e contemporaneidade filosófica

Um dos impulsos centrais ao referencial teórico de análise social desenvolvido por Marx, mas também ao seu programa político radical, foi o senso de um contraste entre o estado de coisas na Alemanha, de um lado, e as circunstâncias na Inglaterra e na França, de outro, na primeira metade do século XIX. Ainda mais importante para Marx foi sublinhar, em conexão íntima com tal contraste, a coexistência entre o “atraso” histórico da sociedade alemã e o caráter altamente “avançado” do pensamento filosófico dos mesmos alemães, inclusive (ironia das ironias) na reflexão filosófica acerca da história.       

Em trabalho erudito e consciencioso sobre os (con)textos do jovem Marx, David Leopold (2007) mostra que a ideia de um abismo caracteristicamente alemão entre ação e pensamento era amplamente difundida na própria intelectualidade germânica da época. A coexistência paradoxal entre a escassez de efetivas realizações históricas e práticas da nação alemã, de um lado, e a abundância de suas “conquistas” no domínio da reflexão, de outro, foi expressa em uma variedade de fórmulas: “pobre em ação, cheia de pensamentos” (Hölderlin); “abismo entre teoria e práxis” (Ruge); “tudo em palavras, mas nada em feitos” (Feuerbach); dentre outras (Ibid.: 27).

Um dos adendos de Marx a essa tese da assimetria entre os estágios espiritual e material do desenvolvimento alemão consistiu na ideia provocativa de que as mudanças socioeconômicas e sociopolíticas de outros países, como a Inglaterra e a França em particular, encontraram seus análogos intelectuais na trajetória da filosofia na Alemanha. Marx resumiu o tema ao se referir à “história sonhada” ou “história onírica” da “nação alemã” (2010: 150) na sua “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução” (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie – Einleitung), concluída em Paris em dezembro de 1843 (veremos abaixo por que a informação é relevante). O autor assim explica a metáfora da história onírica (Traumgeschichte):  

“Assim como as nações do mundo antigo vivenciaram a sua pré-história na imaginação, na mitologia, nós, alemães, vivenciamos a nossa pós-história no pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos do presente, sem sermos seus contemporâneos históricos. (…) O que, para as nações avançadas, constitui uma ruptura prática com as modernas condições políticas é, na Alemanha, onde essas mesmas condições ainda não existem, imediatamente uma ruptura crítica com a reflexão filosófica dessas condições” (2010: 150; grifos do autor).

“Em política, os alemães pensaram o que outras nações fizeram” (Ibid.: 151; grifos do autor).

Na mesma edição da Boitempo de onde citei as passagens acima, uma “cronologia resumida” informa que, “em dezembro [de 1843, Marx] inicia grande amizade com Heinrich Heine e conclui sua ‘Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução’” (Ibid.: 164). A sequência é sugestiva. É justamente o modo específico de conceber o hiato entre pensamento e realidade alemã, rastreando as maneiras pelas quais mudanças sócio-históricas de seus vizinhos europeus encontraram na Alemanha paralelos filosóficos, que trai uma possível influência de Heine sobre Marx.

Filosofia alemã e política francesa 

Entre 1833 e 1834, quando Marx estava ali pela casa dos 15 anos e Heine pela casa dos 35, o último publicou o livro História da religião e da filosofia na Alemanha (2010). As analogias entre a Revolução Francesa e a filosofia idealista germânica, feitas em espírito satírico por um autor cuja verve lhe angariaria a reputação de “Voltaire alemão”, são nada menos do que o fio condutor dessa obra. A sucessão de paralelos entre as duas histórias, devidamente injetada com uma visão irônica que “celebra” as revoluções filosóficas alemãs como muito mais significativas do que as revoluções políticas na França, envolvia tanto acontecimentos quanto personagens: Robespierre e Kant compartilhariam um espírito guilhotinador, dirigido contra o rei pelo primeiro e contra Deus pelo segundo na Crítica da razão pura; tanto Fichte quanto Napoleão se apropriaram das forças engendradas pela revolução para, pouco em seguida, construírem impérios centrados no seu próprio eu; tais impérios, entretanto, tombaram rapidamente para dar lugar a uma restauração das antigas estruturas, com o retorno da alta nobreza francesa ao poder, após Napoleão, correspondendo à ressureição de uma filosofia da natureza à moda dos antigos por Schelling; finalmente, Hegel triunfou com uma síntese que acomodava ecleticamente, em suas devidas posições, kantianos jacobinos, fichtianos bonapartistas, schellinguianos restauracionistas e sua própria turma de hegelianos. 

Algumas amostras:

“Nós [i.e., os alemães] temos insurreições no mundo das ideias exatamente como vocês [i.e., os franceses] têm no mundo material, de modo que a demolição violenta do antigo dogmatismo nos torna tão acalorados e tempestuosos quanto a da Bastilha torna vocês” (Ibid.: 141)

“…ao demonstrar os paralelos entre a Revolução Francesa e a filosofia alemã, comparei Fichte a Napoleão, mais como gracejo do que seriamente. No entanto, existem, de fato, similaridades impressionantes aqui. Fichte surgiu depois de os kantianos terem completado seu trabalho terrorista de destruição, assim como Napoleão, que surgiu depois de a Convenção ter, com sua própria ‘crítica da razão pura’, demolido violentamente todo o passado. Napoleão e Fichte representam o grande eu impiedoso, para quem o pensamento e a ação são um, e as estruturas colossais que eles conseguiram construir comprovam uma determinação colossal. No entanto, as duas estruturas iriam em pouco tempo ser arruinadas em função da ausência de limites dessa determinação, de tal modo que o Wissentschaftslehre [Doutrina da Ciência], assim como o Império, desabaria em breve e desapareceria tão rapidamente quanto surgiu” (Ibid.: 145)

“…o antigo Schelling representa, assim como Kant e Fichte, uma das mais grandiosas fases da revolução filosófica que, nestas páginas, comparei às fases da revolução política francesa. Na verdade, se considerarmos Kant como a Convenção terrorista e Fichte como o Império Napoleônico, então vemos em Herr Schelling a reação da restauração que se seguiu. (…) Restaurou aquela grandiosa Naturphilosophie que encontramos nos filósofos da antiga Grécia…(…) No fim, ele restaurou coisas que nos permitem compará-lo no pior sentido à Restauração francesa. Entretanto, a razão pública já não mais o tolerava então; ele foi retirado do trono do pensamento. Hegel, seu mordomo, tomou a coroa de sua cabeça…e, desde então, rege sobre a filosofia alemã” (Ibid.: 167-168).

“…as ações práticas de nossos vizinhos do outro lado do Reno tiveram…certa afinidade com nossos sonhos filosóficos aqui, na tranquila Alemanha. Apenas compare a história da Revolução Francesa com a da filosofia alemã…(…) Kant foi nosso Robespierre. – Depois, veio Fichte com seu ‘eu’, o Napoleão da filosofia…, que improvisou um rápido império universal o qual desapareceu tão rapidamente quanto; (…) sob o comando de Schelling, o passado e seus interesses tradicionais voltaram a ganhar reconhecimento…[em uma] nova restauração…(…) – até que Hegel, o Orléans da filosofia,…colocasse em funcionamento um novo regime, um regime eclético, que ele lidera…e em que dá posições, fixadas por uma constituição, aos antigos jacobinos kantianos, aos bonapartistas fichtianos, à alta nobreza schellinguiana e aos seus próprios nomeados” (Ibid.: 188-189).

É fácil suspeitar que o tom e a substância das passagens de Heine animaram, de modo original e não simplesmente imitativo, as diatribes futuras de Marx contra seus compatriotas. Veja-se, por exemplo, a passagem que ele escreve com Engels em A ideologia alemã

“Conforme anunciam os ideólogos alemães, a Alemanha teria passado nos últimos anos por uma revolução sem igual. O processo de decomposição do sistema hegeliano, que começara com Strauß, desenvolveu-se a ponto de se transformar numa fermentação mundial em que foram envolvidas todas as ‘potências do passado’. Nesse caos geral, formaram-se poderosos impérios para logo perecerem; emergiram heróis momentaneamente para, em seguida, serem catapultados de volta às trevas por rivais mais arrojados e poderosos. Foi uma revolução diante da qual a Revolução Francesa não passou de um brinquedo de criança; uma luta mundial diante da qual os combates dos diádocos pareceriam mesquinhos. (…) Tudo isso teria acontecido no terreno do pensamento puro. (…) Mas, para apreciar a justo título essa gritaria filosófica de feira livre,…a fim de tornar visível…a limitação local de todo esse movimento jovem-hegeliano e, sobretudo, o contraste tragicômico entre as façanhas reais desses heróis e as ilusões suscitadas em torno delas, é necessário olhar todo esse espetáculo, ao menos uma vez, de um ponto de vista situado fora da Alemanha” (Marx; Engels, 2007: 85-86).

Presença de Heine: entre tragédias e farsas

Para além das afinidades textuais reportadas anteriormente, alguns dados são inequívocos: assim como outros escritores (p.ex., Shakespeare ou Cervantes), Heine é citado ao longo de toda a obra de Marx. Segundo alguns intérpretes, um indício de quão cedo Marx começou a ler o poeta alemão se encontra nas semelhanças entre as sátiras antiburguesas de Heine e os esforços literários do “jovem jovem” Marx (o adolescente, juveníssimo Marx) na poesia e no romance (Prawer, 1978: 1-31; McLellan, 1995: 19; Goetschel, 2019: 49). Pouco mais de uma década após a morte de Heine, quando chega a hora de espinafrar Jeremy Bentham em uma nota de rodapé n’O capital [1867], o Marx maduro, por seu turno, se apresenta como menos corajoso do que seu amigo (digo mais sobre a amizade logo abaixo) na arte do insulto: “Tivesse eu a coragem do meu amigo H.Heine, chamaria o sr. Jeremy de gênio na arte da estupidez burguesa” (Marx, 2013: 1493).

E há muito mais entre os dois Marx.   

Nos anos de 1840, por exemplo, versos de Heine foram citados e até alterados por Marx e Engels para trollar alvos como Bauer e Stirner n’A ideologia alemã (2007: 121; 491). E, na década seguinte, foi de um personagem saído de um poema político de Heine que Marx tomou de empréstimo o apelido venenoso pelo qual se referiu a Luís Bonaparte n’O 18 de Brumário: Crapülinski (2011).

Aliás, falando no Brumário, a tese de que o processo histórico pode repetir a sequência do antigo teatro grego, com a tragédia dando lugar à farsa, já aparecia em Heine – no caso, como metáfora para a história das ideias. O ensaísta a mobilizou para explicar por que Kant, após afirmar a impossibilidade de demonstrar a existência de Deus na Crítica da razão pura, resolveu posteriormente reabilitá-lo como “postulado moral” na sua Crítica da razão prática. O motivo? Aplacar o luto de seu fiel empregado Lampe:

“Falta ainda uma peça. Após a tragédia, vem a farsa. Até este ponto,…Kant tem…representado o herói trágico: ele atacou o céu,…o soberano do mundo flutua, sem poder ser provado, em seu próprio sangue,…não há mais benevolência paternal, não há mais recompensa no além-túmulo…, a imortalidade da alma jaz em suas últimas agonias…; e o velho Lampe se mantém lá, com seu guarda-chuva sob o braço, assistindo pesaroso, seu rosto empapado com suor e lágrimas aflitas. Ao ver isso,…Kant se compadece e mostra que não é apenas um grande filósofo, mas também um grande homem. Ele pensa e, em parte com boa vontade, em parte com ironia, diz: ‘O velho Lampe precisa ter um Deus, do contrário o pobre homem não pode ser feliz…[…] talvez possamos deixar a razão prática garantir a existência de Deus’. Como resultado dessa proposição, Kant faz a distinção entre a razão teórica e a razão prática e, com esta, como com uma varinha de condão, reanima o caráter do deísmo, que havia sido morto pela razão teórica” (Heine, 2010: 140; grifos meus).

Vários outros exemplos da presença de Heine nos textos de Marx caberiam (cf. Prawer, 1978).

A amizade parisiense: Heine na bagagem (intelectual) de Marx

Em adição aos indícios textuais dessa presença, sabemos também, por relatos e cartas, da convivência íntima que Marx e Heine travaram em Paris em 1843 e 1844. Heine, que era umas duas décadas mais velho, já estava há doze anos exilado na capital francesa quando Marx lá chegou com 25 anos, logo após a supressão do jornal do qual era editor na Alemanha: a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung). Em notas biográficas redigidas a pedido de Karl Kautsky em 1895, Eleanor Marx, filha de Karl e Jenny, afirma que os tempos dos Marx em Paris incluíram encontros caseiros frequentes, quase diários, entre seu pai e Heine (McLellan, 1995: 90-91). (Eleanor nasceu em 1856; portanto, narrava histórias familiares, não memórias pessoais [Marcuse, 1955: 122]). A admiração de Marx pela poesia e pela pessoa de Heine, segundo o depoimento de Eleanor, chegava ao ponto de levar aquele a desculpar os deslizes políticos deste, já que os critérios ordinários (e mesmo os extraordinários) de juízo não valeriam, segundo Karl, para criaturas estranhas como os poetas (Prawer, 1978: 66; Leopold, 2007: 31).

No mais, a pesquisa de arquivo também tem acesso hoje a três cartas remanescentes que Marx escreveu para seu amigo literato, incluindo uma redigida nos últimos momentos de sua estadia em Paris, na qual ele afirma: “De todas as pessoas que estou deixando para trás aqui, aquelas que deixo com mais pesar são os Heine”. Com uma nota de humor que é bem a cara de ambos, Marx acrescenta que, se pudesse, levaria Heine com prazer em sua bagagem (Prawer, 1978: 66; Leopold, 2007: 30).

Conclusão

O propósito desse minúsculo rastreio da influência heineniana sobre Marx foi simplesmente o de apontar para um autor insuficientemente reconhecido nos tratamentos das fontes intelectuais do pensamento marxiano. Não se tratou nem de um exercício do tipo “nada de novo sob o sol”, nem de utilizar o nome de Heine para diminuir o papel de outras influências sobre a trajetória marxiana, inclusive na sua estadia parisiense – provavelmente o mais decisivo dos exílios de Marx para sua formação intelectual (Leopold, 2007: 32). Tal exílio incluiu: o contato com uma sociedade burguesa mais desenvolvida do que a alemã, em meio à agitação urbana da “capital do século XIX”; o diálogo com sociedades secretas de comunistas (p.ex., os seguidores de Babeuf), com a “Liga dos Justos” e até, em menor medida, com o cartismo; o mergulho nas ideias dos chamados “socialistas utópicos”; e, claro, o estabelecimento de uma amizade e colaboração mais firme entre ele, Marx, e seu fiel escudeiro Engels, uma relação que a morte não separou.

Sim, tudo isso adveio em Paris. 

Mas Heine também estava por lá, assíduo como antes o fora na biblioteca do jovem Marx, assíduo como o seria depois na memória prodigiosa do Marx maduro.

P.S.: Dedico este ensainho ao meu amigo heinéfilo Luís de Gusmão, que insistiu para que eu lesse o homem. 

Referências

GOETSCHEL, Wili. Heine and critical theory. London: Bloomsbury, 2019.

HEINE, Heirich. História da religião e da filosofia na Alemanha e outros escritos. São Paulo: Madras, 2010.

LEOPOLD, David. The Young Marx: German philosophy, modern politics, and human flourishing. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

MARCUSE, Ludwig. “Heine and Marx: a history and a legend”. The Germanic review, v.30, 1955, p.110-124.  

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O capital. Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. 

MCLELLAN, David. Karl Marx: a biography. London: MacMillan, 1995.

PRAWER, S.S. Karl Marx and world literature. Oxford: Oxford University Press, 1978.

REEVES, Nigel. “Heine and the Young Marx”. Oxford German Studies, v.7, n.1, p. 44-97. 

Para citar este post: PETERS, Gabriel. A “história onírica” da Alemanha: notinha sobre a influência de Heinrich Heine sobre o jovem Marx. Blog do Labemus, 2023. [publicado em 09 de maio de 2023]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2023/05/09/heine-e-marx/ 

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