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Por que você não lerá esse texto até o final: sobre TDAH, tecnologias viciantes e a sociologia das psicopatologias, por Gabriel Peters

Por que ninguém lerá esse texto até o fim? Leia para descobrir o motivo. A resposta vai te surpreender.

Arte por Mariana Cavalcanti

Texto por Gabriel Peters

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O TDAH é resultado de uma sociedade que faz exigências contraditórias à psique. O mesmo ambiente que exige do indivíduo a concentração prolongada, como condição do seu sucesso em várias arenas, o expõe a uma infinidade de distrações que atrapalham cronicamente aquela mesma concentração. 

Explosão de transtornos ou explosão de diagnósticos?

Como já escrevi nesse blog, uma sociologia das psicopatologias não se concentra somente sobre as experiências psicopatológicas, como a depressão, o transtorno de ansiedade generalizada, a síndrome do pânico e que tais. A análise sociológica se dirige também aos próprios diagnósticos pelos quais a psiquiatria interpreta tais experiências. Uma sociologia dos diagnósticos psiquiátricos examina tanto as condições sociais e históricas que influenciam o surgimento desses diagnósticos quanto os efeitos que eles geram, por sua vez, sobre o próprio ambiente coletivo em que operam.

Na trilha de Mark Fisher, Alain Ehrenberg e outros, pode-se mostrar, por exemplo, a conexão entre transformações do capitalismo e mudanças no diagnóstico psiquiátrico da depressão:  o imperativo da atividade central ao funcionamento do capitalismo tardio ou neoliberal, ao influenciar os diagnósticos psiquiátricos nas últimas décadas do século XX, contribuiu para que a psiquiatria considerasse a inação e a letargia, mais do que a tristeza e o mal-estar, como os fatores decisivos na sintomatologia depressiva. Em compasso com tal transmutação no diagnóstico, o tratamento psiquiátrico da depressão se volta, sobretudo, para “refuncionalizar” os indivíduos por ela afligidos, i.e., para restituir a eles sua capacidade de agir (p.ex., no trabalho, nas relações interpessoais etc.).

Da fluoxetina (simbolizada pela marca Prozac) em diante, o desenvolvimento de psicofármacos que incrementam a capacidade de ação exerce um estímulo para que mais e mais indivíduos percebam como sintomas depressivos suas dificuldades na vida prática, a exemplo da desmotivação e do cansaço crônico que emergem no desempenho de seus múltiplos papéis (profissionais, familiares etc.). Como tais dificuldades podem ser tratadas com aqueles psicofármacos, está preparado o terreno: a) seja para uma inflação de diagnósticos devida ao enquadramento, como sintomas psicopatológicos, de condições psíquicas e comportamentais outrora tidas por normais; b) seja para um recurso a neurofármacos que simplesmente prescinda do diagnóstico de uma síndrome e se assuma, sem mais, como um dispositivo de otimização de competências (i.e., como dopping).  

A relação entre psicotrópicos como a Ritalina ou o Venvanse, de um lado, e o diagnóstico psiquiátrico do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), de outro, pode ser analisada a partir dos mesmos processos: 1) explosão diagnóstica, a começar pela patologização e medicalização de estados psíquicos outrora considerados normais, como a distração e a agitação da criançada na sala de aula ou a dificuldade de concentração prolongada, mesmo entre adultos, em ambientes carregados de estímulos distraidores; 2) recurso à neurofarmacologia para a melhoria do próprio desempenho, independentemente de quaisquer preocupações com a existência “real” ou “genuína” de uma psicopatologia como fonte dos obstáculos a tal desempenho. Vejamos.  

A psiquiatria influencia a sociedade ou a sociedade influencia a psiquiatria?

As transformações recentes nas visões psiquiátricas do TDAH, como as variações na identificação das populações de indivíduos afetáveis pelo transtorno, foram tão rápidas que praticamente impõem um ceticismo a qualquer interpretação que as tome como pura história de sucesso do establishment psiquiátrico: primeiro, o fenômeno é “descoberto” em meninos; depois, “descobre-se” que ele também afeta meninas; finalmente, a psiquiatria “descobre” que não apenas crianças, mas também adultos de quaisquer sexos-gêneros podem sofrer do transtorno.

Como já dissemos sobre a depressão, não é preciso negar qualquer validade científica ou utilidade terapêutica ao rótulo TDAH, muito menos ser negacionista quanto aos reais sofrimentos e dificuldades que motivaram a emergência desse diagnóstico psiquiátrico, para se perceber quão incompleta seria uma simples história de descoberta científica. A simplicidade da interpretação significaria ignorância do peso dos ambientes sociais nos quais os “sintomas” se desenrolam, assim como das pressões que a própria psiquiatria pode sofrer desses ambientes. Tais circunstâncias ambientais incluem desde as exigências simultâneas de disciplina e desempenho no espaço escolar, inseparáveis do surgimento do diagnóstico entre crianças, até os desafios colocados à atenção individual de adultos em uma sociedade que os submete a exigências contraditórias.

Por um lado, como condição para o sucesso e mesmo para a simples “sobrevivência prática” em diversas esferas educacionais, acadêmicas, profissionais etc., nossa sociedade exige dos indivíduos a capacidade de concentração durável e continuada. Por outro lado, a mesma sociedade acossa tais indivíduos com estímulos tentadores que são não apenas vastos em número, mas cientificamente projetados para tirar vantagem das vulnerabilidades de nossa psique.

Em resposta aos fatores estressores que pesam sobre a atenção individual na contemporaneidade, como a necessidade de manter o foco em meio a um sem-número de “tentações atencionais”, a psiquiatria tem um forte incentivo para tomar como “patológicas” certas condições psíquicas antes tidas por normais. No atendimento individual, em que a/o psiquiatra responde à necessidade do paciente em integrar-se de modo mais funcional ao seu meio societário, a utilização de psicofármacos também aumenta como prática de auxílio. Note que o último termo é ambíguo: a fronteira entre a neurofarmacologia que trata síndromes, de um lado, e a neurofarmacologia que otimiza competências, de outro, é mais e mais borrada. Nas palavras de Yves Citton:

Como consequência…[da] individualização de comportamentos, utilizamos química para compelir a atenção das nossas crianças (assim como a nossa), a todo custo, para dobrar-se às necessidades – sem precedentes, completamente artificiais e terrivelmente invasivas – de um capitalismo com face de Janus, que advoga simultaneamente por uma implacável disciplina produtiva e por um hedonismo consumista sem limites” (Citton, 2017: 17).  

Individualização de comportamentos? Sim: o tratamento clínico do TDAH é uma resposta individualizada a dificuldades individuais. A psiquiatria não pode transformar as condições sistêmicas nas quais os indivíduos operam, como a pressão simultânea e contraditória para que eles desenvolvam uma “implacável disciplina produtiva”  sem, no entanto, abandonar o “hedonismo consumista sem limites”.  O atendimento psiquiátrico pode apenas auxiliar aqueles indivíduos em suas tentativas de responder a tais condições sistêmicas.

Desatenção ou vício?

Como o desemprego ou a depressão, incluindo a depressão dos desempregados, o problema da administração da atenção é mais um que ilustra a individualização como tendência histórica da modernidade tardia. No plano individual ou psíquico, a atenção é um recurso escasso, sobretudo quando comparada à extraordinária abundância de estímulos potenciais presentes no nosso ambiente. O que já surge como dificuldade de fonte sistêmica, portanto, é o gigantesco descompasso entre o número de objetos potenciais à nossa atenção, de um lado, e o fato de que cada indivíduo só pode devotar-se a uma parcela limitadíssima desses estímulos, de outro. Como sabemos, a quantidade de vídeos, textos, memes, seriados etc. disponíveis à nossa mente – ou melhor, gritando para nós: “Olhe pra cá! Olhe pra cá!” – é infinitamente maior do que aquela que somos capazes de acessar com nossa finitíssima atenção individual.    

Mas o drama, como já antecipamos, não é apenas matemático. Nosso ambiente é marcado por uma economia da atenção em que diversas agências competem entre si pela conquista desse recurso escasso. A escassez da atenção implica, por definição, que dirigi-la para um estímulo (p.ex., o Instagram) é deixar de dirigi-la para outro – na verdade, para uma infinidade de outros estímulos possíveis (p.ex., uma árvore, um amigo sentado na mesa à nossa frente). Um dos principais trunfos competitivos que aquelas agências têm à mão, em sua disputa pela atenção escassa de cada um de nós, é um conhecimento da psique humana, inclusive das fragilidades e vulnerabilidades que a tornam altamente manipulável.  

Como viu Nick Seaver em texto publicado neste blog, os algoritmos da economia da atenção são projetados para “capturar” ou “fisgar” cada um de nós segundo estratégias similares às armadilhas feitas para capturar animais. Seaver mostra, por exemplo, que mesmo algo aparentemente tão simples para o usuário individual como a sugestão algorítmica de uma música (p.ex., a música que o Spotify sugere quando você o deixa tocando sozinho) resulta de um vasto complexo de pesquisa científico-tecnológica ricamente financiada.

Segundo os achados dessa pesquisa, qual a melhor maneira de manter sua atenção grudada no aparelho? Adam Alter (2017) responde: tentando te transformar em um adicto, dependente ou “viciado”, com base no que já se conhece sobre a psicologia do vício. Frente a todo o conhecimento perito incorporado aos algoritmos para explorar a suscetibilidade humana ao vício, um conhecimento financiado por corporações mi e bilionárias, o usuário da plataforma se encontra em uma luta imensamente desigual – tenha ou não consciência disso (Newport, 2019). 

Somos todos pombos

Em A condição humana, Hannah Arendt escreveu que “o problema com as teorias modernas do behaviorismo não é que elas estejam erradas, mas que poderiam se tornar verdadeiras”, a ponto de oferecerem “a melhor conceituação de certas tendências…na sociedade moderna” (1998: 322). A filósofa alemã não pensava nos algoritmos digitais, por óbvio, mas estes fornecem mais um exemplar dessa desconcertante lição da psicologia behaviorista: não é que sejamos essencialmente pombos, mas podemos ser transformados em pombos, para todos os efeitos práticos, por certas condições ambientais.

Uma das estratégias mais eficazes utilizadas pelas redes sociais na captura da nossa atenção é, com efeito, oriunda de experimentos com pombos na “Caixa de Skinner”, estratégia que já opera há décadas nos cassinos em máquinas de caça-níqueis (slot machines). O princípio envolve o chamado “reforçamento intermitente”. Trata-se basicamente da ideia de que o melhor modo de manter uma pessoa fisgada, capturada e, no limite, viciada em um comportamento é tornar os reforços (i.e., as recompensas) intermitentes e imprevisíveis.

Quando os pombos de Skinner (2013 [1969]) bicavam o disco da caixa, “produziam” comida, o que aumentava a probabilidade de que o pombo bicasse o disco novamente (tal processo de fortalecimento do comportamento foi chamado de “reforçamento”; e a comida, de “estímulo reforçador”). Quando os pombos bicavam o disco e não produziam comida, por outro lado, eles desistiam do comportamento. 

Entretanto, quando o reforço era intermitente, com a comidinha descendo depois da bicada no disco somente de vez em quando, de maneira que a recompensa se tornava um tanto difícil de prever, os pombos ficavam “viciados” em bicar (i.e., o comportamento se tornava frequente e resistente à extinção). Alter (2017) mostra que esse mecanismo está embutido nos algoritmos de plataformas como o Instagram e o Youtube, em particular em um dos atributos mais viciantes dessas plataformas que é o botão Like (Curtir, coraçãozinho do Instagram ou seus equivalentes).

“Mas então”, diz o colega liberal, “cabe ao indivíduo exercer a responsabilidade pelo seu uso da tecnologia”. Pode ser, mas é mais difícil do que parece.

Sereias no seu bolso

Uma das lições clássicas na psicologia do autocontrole é a ideia de que o melhor modo de praticá-lo é organizar o ambiente de maneira tal que os desafios à própria força de vontade sejam minimizados. O princípio é conhecido, no mínimo, desde a famosa história de Ulisses e as sereias na Odisseia. Ulisses (ou “Odisseu”) sabia que passaria em uma área do mar repleta de sereias conhecidas por emitirem um canto tão bonito que enfeitiçava os marinheiros que o ouviam, os quais não resistiam ao efeito e pulavam no mar. Ao caírem na água, os marinheiros terminavam comidos por aquelas sereias, cujo canto era, no fim das contas, uma estratégia para atrair seu alimento. Querendo ouvir aquele canto tão lindo sem precisar ser devorado, mas sabendo de antemão que não seria capaz de resistir ao seu encanto, Ulisses decidiu, então, amarrar-se ao mastro do seu próprio barco, enquanto os demais marinheiros ali tamparam seus ouvidos com cera. Ulisses ouviu o canto, não resistiu ao encanto e tentou desesperadamente pular na água. No entanto, impedido de pular para a morte, ele salvou-se de virar comida de sereia graças às amarras que antes impusera deliberadamente a si próprio. 

Eis o princípio dos “pré-compromissos” como modo de autocontrole (Elster, 1984), princípio cujas ilustrações são inúmeras e provavelmente já praticadas por todes nós. Quer estudar para valer? Vá para a biblioteca, onde pode evitar as tentações de casa (cama, geladeira, violão etc.). Quer parar de comer porcarias deliciosas? Simplesmente não as tenha dentro de casa, já que é mais difícil resistir a abrir a porta do armário do que a sair de casa e ir até o supermercado. E assim por diante…

O problemão é que, com smartphones que proveem acesso à Internet, o funcionamento desse princípio de autocontrole passou a ser tremendamente dificultado, já que nosso celular está quase sempre ao alcance da mão. Mesmo expedientes de autoproteção frente às tentações, como deixá-lo em modo avião, são facilimamente contornáveis. No mais, a proximidade e a facilidade do acesso também favorecem que o altíssimo índice de uso não dependa nem de um alto nível de consciência do usuário quanto às suas motivações (quantas vezes você checa o celular como um movimento do piloto automático?) nem de uma experiência intensa de prazer sempre que a rede é acessada (quantas vezes você pode dizer que valeu muito a pena checar o celular?).

A frequência com que, ao esperarem em uma fila de supermercado, as pessoas sacam seus celulares para acessar o Instagram, por exemplo, pode até ser explicada como um decréscimo no limiar de tolerância ao tédio, associado à vontade de afastá-lo por alguma gratificação digital (o famoso hit de dopamina, assunto ao qual voltarei outro dia [Lembke, 2022]). Mas é óbvio que o processo efetivo na subjetividade das pessoas pode ser o de um hábito mecânico ou, pelo menos, situado em uma zona cinzenta de semiconsciência.

O fato de que, com alguma frequência, não encontremos nada particularmente interessante ou gratificante em termos de estímulo, ao acessarmos o celular para afastar o tédio, também é relevante. Por um lado, assim como ocorre na máquina de caça níqueis, fica a expectativa de que, na próxima vez, possamos encontrar algo que realmente valha a pena – por exemplo, esse vídeo de gatinhos com 1.557.154 visualizações (eu mesmo assisti 243.587 vezes). Por outro lado, a acessibilidade contínua do celular encoraja, ao longo do tempo, uma vivência que não é mais tanto a do prazer, mas do que psicanalistas chamam de “compulsão à repetição” (Turcke, 2016).

A experiência é comparável à que eu costumava ter quando, na adolescência, comia caixas de bombom inteiras (para indignação justificada dos meus irmãos). A primeira metade era prazerosa. Na segunda metade, entretanto, a sensação de prazer dava lugar a certo enjoo e inchaço. Ainda assim, e este é o fator decisivo, se a caixa com os bombons continuasse ao meu alcance, eu não resistia e continuava comendo. O mecanismo ajuda a explicar, suspeito, por que algumas das pessoas que mais usam Instagram e o (outrora chamado) Twitter são as que mais reclamam dessas plataformas (Seymour, 2019).  

Patologia individual ou patologia social?

Nietzsche escreveu – e Freud concordaria – que “o valor de todos os estados mórbidos” consiste no fato de que “eles nos mostram sob uma lente de aumento certos estados que são normais – mas não facilmente visíveis quando normais” (apud CANGUILHEM, 2009: 15; grifos meus). Este também é um dos sentidos, suspeito, em que se pode interpretar o comentário de Adorno segundo o qual, “na psicanálise, nada é verdadeiro a não ser seus exageros” (2005: 49).

A afirmação nietzschiana serve de mote a uma concepção de “patologia”, partilhada pela psicanálise de Freud no exame da psique humana, que Canguilhem chamou de “grega” (2009: 11-12). Nela, o patológico não se identifica a um estado qualitativamente distinto do ser, mas é parte de um mesmo continuum com o normal. Freud, para seguir com o exemplo, pensou quadros psicopatológicos como versões dramáticas e intensificadas de uma mesma dinâmica conflitual entre impulsos e defesas – dinâmica que seria, assim, inerente à psique humana como tal, inclusive nos seus estados “normais”.

Uma sociologia das psicopatologias pode considerar diversas formas de sofrimento psíquico comuns na contemporaneidade de modo análogo: quando diagnosticados como patológicos, tais transtornos podem ser lidos como manifestações mais radicais de dilemas e dificuldades inerentes às atuais condições sociais de vida e, portanto, capazes de impactar a totalidade ou, pelo menos, a grande maioria dos seus membros individuais. Se bem entendo as formulações um tanto oraculares de Byung Chul-Han, a caracterização de distúrbios como a depressão e o TDAH como resultantes de um “excesso de positividade” (2015) aponta para uma tese similar: as pessoas não são levadas à depressão e ao déficit de atenção porque escapam às lógicas da atual sociedade, mas, ao contrário, porque seguem ou, pelo menos, tentam seguir tais lógicas.

Eis por que uma sociologia das psicopatologias não consiste somente em acessar fontes sistêmicas de sofrimento psíquico nas sociedades contemporâneas. Ela também implica o procedimento reverso: tomar formas frequentes de transtorno mental nessas sociedades como chaves analíticas para a elucidação das características sistêmicas que as singularizam. Trata-se, assim, tanto de um exame sociológico do sofrimento psíquico (uma “sociologização da psicologia”), de um lado, quanto de um diagnóstico de época baseado no exame do sofrimento psíquico (uma “psicologização da sociologia”), de outro. 

Assim, a análise da “ecologia social” da atenção nas sociedades capitalistas contemporâneas (Citton, 2017) lança luz sobre o TDAH, mas o TDAH também lança luz sobre o regime atencional vigente nessas sociedades. Um traço sistêmico central desse regime, ao qual tanto o diagnóstico do TDAH quanto seu tratamento respondem no plano individual, é a contradição entre uma exigência de produtividade que depende da concentração prolongada, de um lado, e uma profusão de estímulos projetados precisamente para distrair e dispersar nossa atenção, de outro.  

As referências da sociologia a uma “sociedade da depressão” ou a uma “sociedade da dispersão atencional” obviamente não dependem, nesse sentido, da tese de que todos os membros dessa sociedade se tornaram deprimidos ou hiperativos em sentido clínico. Trata-se, em vez disso, de afirmar que casos severos de depressão ou TDAH derivam de – e apontam para – tendências sistêmicas que também afetam indivíduos que não se encaixam naquele diagnóstico (pelo menos, não ainda).

A facilidade com que tantas pessoas podem se reconhecer na listagem psiquiátrica dos sintomas de TDAH e depressão não é redutível apenas à penetração do discurso psiquiátrico no senso comum ou, ainda, à tendência da psiquiatria contemporânea a patologizar fenômenos outrora tidos por normais. Embora ambos os processos sejam reais, há uma genuína sagacidade sociológica na ideia de que experiências aparentadas ao TDAH, à depressão ou ao transtorno de ansiedade generalizada também são partilhadas, ainda que com intensidades variadas, pela maioria dos membros ordinários das sociedades contemporâneas. Mesmo que, por motivos múltiplos, tais indivíduos sofram aqueles sintomas de modo menos intenso, doloroso e incapacitante, eles também estão expostos às mesmas influências sistêmicas adoecedoras.

Em suma, a patologia é social.

  • P.S. agradecido: Agradeço a Mariana Cavalcanti pela arte do post e também pelos comentários a uma versão primeira desse ensaio – que ela, assim como você, leu até o final. Alguns “obrigados” também são devidos a Renata Cambraia, cuja consultoria em relação a questões skinnerianas técnicas me poupou de alguns embaraços (quanto aos embaraços restantes, são culpa minha). O texto é dedicado, finalmente, a Maria Luiza Rebêlo, por tudo o que ela me ensina sobre prestar atenção.   

Referências

ADORNO, T. Minima moralia: reflections on a damaged life. London: Verso, 2005.

ALTER, Adam. Irresistible: the rise of addictive technology. New York, Penguin, 2017.

ARENDT, Hannah. The human condition. Chicago: University of Chicago Press, 1998. 

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CYTTON, Yves. The ecology of attention. London: Polity Press, 2017.  

ELSTER, Jon. Ulysses and the sirens. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis, Editora Vozes, 2015.

LEMBKE, Anna. Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. São Paulo, Vestígio, 2022.

NEWPORT, Cal. Digital minimalism. New York: Portfolio, 2019. 

SEYMOUR, Richard. The twittering machine. London: The Indigo Press, 2019. 

SKINNER, B.F. Contingencies of reinforcement. Cambridge: B.F.Skinner Foundation, 2013. 

TÜRCKE, Christopher. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2016.

Para citar este texto: PETERS, Gabriel. Por que você não lerá esse texto até o final: sobre TDAH, tecnologias viciantes e a sociologia das psicopatologias. Blog do Labemus, 2023. [Publicado em Outubro de 2023]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2023/10/11/tdah-vicio-psicopatologias/

3 comentários em “Por que você não lerá esse texto até o final: sobre TDAH, tecnologias viciantes e a sociologia das psicopatologias, por Gabriel Peters

  1. Márcio Nicory

    Poxa… que texto bacana, Gabriel! Ainda que não seja de forma muito sistemática, venho pensando bastante em alguns dos pontos que teu artigo esclarece. Obrigado pela oportunidade da leitura. E, sim, eu li até o final e já estou relendo e buscando as referências! rsrsrsr
    Pensando também em como “ficam/ficariam” as interpretações da vida cotidiana feitas por Goffman hoje em tempos de “explosão de diagnósticos”?
    Um abraço!

  2. Brilhante.

  3. “A facilidade com que tantas pessoas podem se reconhecer na listagem psiquiátrica dos sintomas de TDAH e depressão não é redutível apenas à penetração do discurso psiquiátrico no senso comum ou, ainda, à tendência da psiquiatria contemporânea a patologizar fenômenos outrora tidos por normais”

    Sensacional.

    O discurso psiquiátrico está no constituindo enquanto sujeito fundamentalmente doentes da psique. A norma é a doença, é a identificação com a patologia.

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