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Sim, a sociologia sabe que você tem um cérebro! Notinha sobre o estudo sociológico do sofrimento psíquico, por Gabriel Peters

Arte por Mariana Cavalcanti e Vinícius Buarque

Texto por Gabriel Peters 

Com desconcertante frequência, a primeira coisa que se exige de um/a cientista social que se pronuncia sobre o sofrimento psíquico é uma justificação da relevância de sua formação, quando não de seu direito intelectual para falar do assunto. “Quem” (sic) são as ciências sociais para tratar de vivências psicológicas como depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, insônia, distúrbios de ansiedade, síndrome do pânico ou ideias e sentimentos suicidas? E por que a sociologia, em particular, é convocada tão frequentemente a se justificar nesse plano?

Resposta: porque um montante gigantesco dos discursos da psicologia clínica, da psiquiatria e dos próprios meios de comunicação de massa encoraja uma compreensão individualista e individualizante daquelas experiências psíquicas dolorosas. Em outras palavras, tais discursos difundem a ideia de que esses sofrimentos possuem uma raiz individual e, por conseguinte, devem ser enfrentados apenas no plano individual (p.ex., com aconselhamento, psicoterapia, tratamento neurofarmacológico etc.).

Essas visões individualistas ou individualizantes do sofrimento psíquico podem ser, ressaltemos desde já, bastante variadas. Uma neurocientista pode explicar um caso de depressão, por exemplo, como resultado de disfunções químicas no cérebro; uma psicanalista, por sua vez, já pensa a condição depressiva como consequência de uma dinâmica intrapsíquica (por exemplo, o conflito entre certos impulsos afetivos, de um lado, e certas censuras interiorizadas, de outro); enfim, uma terapeuta cognitivo-comportamental pode associar a depressão sobretudo a crenças distorcidas e disfuncionais que orientam o indivíduo na sua experiência (p.ex., uma exigência tão irrealista de perfeição que faz com que ele jamais consiga se sentir satisfeito com qualquer realização sua ou, ainda, tome qualquer erro como um fracasso de proporções astronômicas que prova – de novo! – que ele não faz nada direito).

Embora tais explicações capturem parte da realidade, afirmar que todas elas tendem a uma percepção individualista dos sofrimentos psíquicos e das psicopatologias significa sublinhar a atenção insuficiente que elas devotam a fatores sócio-históricos na produção de transtornos psicológicos. A pesquisa  do papel de tais fatores na gênese de formas diversas de sofrimento psíquico não significa negação da existência de fenômenos como desequilíbrios fisiológicos na operação do cérebro, conflitos internos entre “impulsos” e “defesas” na psique individual ou vieses interpretativos que engendram ansiedade e depressão.

Trata-se apenas de frisar que cada um desses fenômenos é profundamente afetado por influências sociais, as quais não existem somente como fatos exteriores à realidade “biopsíquica” do indivíduo humano, mas moldam profundamente suas disposições mais profundas de ação, pensamento e sentimento. Somos moldados pela sociedade nas formas mais habituais e espontâneas pelas quais interpretamos nossa experiência e o mundo (tema da terapia cognitivo-comportamental), em nossa configuração de impulsos e defesas (tema da psicanálise) e também, a julgar por muitos estudos recentes acerca da neuroplasticidade, na própria arquitetura das nossas conexões neuronais (tema, por óbvio, da neurociência).

Uma das primeiras lições da teoria social reza que a sociedade não existe somente fora de nós; ela existe também dentro e através de nós, estruturando nossos modos de agir, pensar e sentir – mesmo os mais íntimos. Isto explica por que o sociólogo estadunidense C. Wright Mills definiu a “imaginação sociológica” (1975) justamente como a apreensão de vínculos entre biografia e história, o que inclui as conexões frequentemente insuspeitas entre dilemas existenciais vividos no plano pessoal, de um lado, e tendências estruturais e sistêmicas que afetam sociedades inteiras, de outro. Do clássico estudo de Durkheim acerca do suicídio (2003) até a obra coletiva que Bourdieu organizou sobre o “sofrimento social” na era neoliberal (2003), diversos autores demonstraram, de maneiras também diversas, que a sociologia tem um papel crucial a desempenhar na elucidação de aflições biográficas que vivenciamos como problemas estritamente pessoais, supostamente desconectados da vida societária. 

A preocupação noturna com as tarefas a resolver, em função da qual tantos de nós somos levados à insônia, é inseparável de um capitalismo orientado para o funcionamento 24/7, pronto a nos dar lembretes agudos de que o tempo despendido na cama nos transforma em criaturas “inúteis” para aquele sistema. A sensação de um abismo enorme e crônico entre a pessoa que somos e a pessoa que “deveríamos” ser, sensação dolorosa que marca tantos quadros de depressão, não existiria caso os próprios indivíduos não interiorizassem as exigências de modelos culturais de subjetividade que, no limite, são de cumprimento impossível. O dilaceramento da atenção que marca o chamado TDAH é uma internalização, na psique individual, de influências contraditórias que o nosso próprio ambiente social exerce sobre as nossas subjetividades: de um lado,a demanda por concentração durável e prolongada (p.ex., nos estudos, no trabalho etc.) e, de outro, a exposição implacável a estímulos atencionais não somente vastos como construídos para nos deixar viciados (p.ex., Tik Tok e outras formas de “cocaína digital” nos celulares em nossos bolsos). E assim por diante…     

No fim das contas, quando perguntada sobre sua legitimidade para interrogar o sofrimento psíquico, a sociologia tem de responder incisivamente: pensar o sofrimento psíquico com lentes sociológicas não é apenas possível ou útil, mas indispensável a qualquer tentativa de apreendê-lo fidedignamente e responder a ele eficazmente na prática. A negação do caráter socialmente moldado de vivências como a depressão e os transtornos de ansiedade leva a perder de vista uma dimensão fundamental dessas vivências. Sendo suficientemente perniciosa em si, essa apreensão distorcida da realidade não é somente uma falha analítica, mas também danosa, ouso acrescentar, no âmbito terapêutico.

No mais, se o sofrimento psíquico for pensado a partir não só da teoria social, mas de uma teoria social crítica, interessada em uma agenda política emancipatória, sociologizar a análise de experiências como a depressão, a ansiedade ou a síndrome do pânico é, por extensão, politizá-las.

Não se trata de apontar qualquer correlação simples entre interpretações sociológicas e posições políticas, por óbvio, mas apenas de lembrar das consequências práticas de uma sociologia que encontra, por trás de sofrimentos psíquicos individuais, toda uma série de causas sistêmicas. Por exemplo, se a pandemia de depressão alardeada pela Organização Mundial de Saúde não é um mero agregado de aflições individuais, mas um efeito sistêmico das condições sociais de vida nas sociedades capitalistas contemporâneas, o combate àquela pandemia passa pela modificação de tais condições sociais, o que só é possível por uma via política: uma política da (ou para a) depressão.

De modo similar, se o significativo vácuo de proteções à estabilidade e à salubridade do trabalhador que marca o atual mundo do trabalho é parte das fontes sistêmicas de tantos casos individuais de esgotamento e burnout, um mundo do trabalho mais estável e salubre tem de ser construído por um caminho político. Em outras palavras, uma “sociedade do cansaço”, na famosa frase de Byung-Chul Han (2015), requer uma “política para o cansaço” – por exemplo, uma legislação protetiva do tempo dos trabalhadores ou, melhor ainda, a instituição de uma “renda básica de cidadania” que independa do emprego.   

Quem acha que isso significa afirmar que todas as abordagens de cuidado individual são inúteis, devendo ser abandonadas em prol da revolução, faria bem em ler o texto de novo desde o início. Ou este post aqui. 

Se tiver tempo, é claro.

Eu não tenho, porque vou pra terapia. 

Referências

BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes, 2003.

DURKHEIM, É. O suicídio. São Paulo, Martin Claret, 2003.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015. 

MILLS, C.W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975.

2 comentários em “Sim, a sociologia sabe que você tem um cérebro! Notinha sobre o estudo sociológico do sofrimento psíquico, por Gabriel Peters

  1. Márcio Nicory

    Que “notinha” (notão) massa, viu? Obrigado prof. Gabriel por mais um texto tão envolvente e instigante para leitura e percepção dos nossos tempos em sofrimento psíquico. Valeu!

  2. RAFAEL ALEXANDRE LIRA BAUMGARTNER

    Texto de uma perspicácia instigante e, de certa forma, reconfortante. A partir desse cotidiano em que vivemos no automático, sem refletir muito sobre nosso modo de vida, uma parada para uma leitura dessa traz um certo alento e uma energia extra para enfrentar essa auto cobrança excessiva e irracional, até mesmo, para diminui-la para patamares suportáveis. Grato, um abraço.

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