9 out. 2022 15:06
Por Laurence Bertrand Dorléac (Presidente da FNSP) e Mathias Vicherat (Diretor da Sciences Po)
Tradução por Ieda de Mello e Silva
Dando sequência às homenagens feitas ao Bruno Latour, em função de sua morte no dia 08 de outubro, nós, do Labemus, trazemos mais uma tradução. Esta refere-se à mensagem transmitida aos estudantes e docentes da Science Po, a última instituição na qual Latour trabalhou. Ela foi escrita por Bertrand Dorléac, atual presidente da Fondation Nationale des Sciences Politiques (FNSP, e Mathias Vicherat, atual diretor do Institut d’études politiques de Paris (Science Po).
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Caros estudantes e docentes
Entristece-nos profundamente informar-lhes da morte de Bruno Latour, professor emérito da Sciences Po, antigo Diretor Científico, fundador do Médialab e do Mestrado em Artes Políticas Experimentais (SPEAP), ocorrida em 9 de outubro de 2022, no seu septuagésimo quinto ano.
Sciences Po acaba de perder um primus inter pares, um primus sine paribus, para usar o título de um discurso que Bruno Latour fez no dia seguinte à morte de Richard Descoings[1]. Perdemos também um homem muito querido, um grande amigo, que iluminou e encantou a nossa casa durante mais de quinze anos.
É agora do conhecimento geral que Bruno Latour é um dos intelectuais franceses mais reconhecidos no estrangeiro, que o seu trabalho científico, traduzido em muitas línguas, tem uma reputação mundial, em razão de que lhe foram atribuídos sete doutorados honoris causa e os prêmios acadêmicos mais prestigiados. Seus pares sabem também que ele é um dos nomes mais citados nas publicações científicas francesas e internacionais, que este grande filósofo é uma das figuras mais importantes da sociologia da ciência e da técnica, e que inspirou trabalhos em campos extremamente variados, desde a antropologia à gestão, do marketing à teologia, da filosofia ao design e às artes.
O público geral descobriu-o mais recentemente — pelo menos na França — e, nas palavras do filósofo Patrice Maniglier, “É à história que Latour deve este favor tardio. Foi preciso nada menos que um acontecimento cósmico: o aquecimento global”. Assim, nos últimos anos, revistas, jornais, estações de rádio e de televisão[2] se esforçaram para entrevistar o “grande pensador”, aquele que havia, muito antes de se tornar tragicamente óbvio, analisado e se empenhado numa profunda reflexão sobre os desafios da mudança ecológica global. Bruno Latour não se afastou dos prazeres dos holofotes, mas foi sobretudo porque sabia que isso lhe permitia alcançar um público mais vasto, o que é uma necessidade se quisermos enfrentar as urgências do novo regime climático.
Apresentado como inclassificável, o trabalho científico e intelectual de Bruno Latour é acima de tudo original, poderoso, abundante e inspirador. Assume a forma de trabalho de campo, pesquisas, artigos, livros, plataformas de colaboração online, exposições e peças de teatro, invocando a filosofia, a sociologia da ciência e da tecnologia, a antropologia, a teologia, o pensamento político ambiental e as artes, tudo isto constantemente mobilizado, trocando alegremente a toga do professor pelo traje de curador de exposições ou de ator. Trata-se de uma obra dominada por uma paixão pelo pensamento e pela escrita, pela necessidade de compreender e pelo desejo de transmitir.
Nada destinava Bruno Latour a vir à Sciences Po; nada incitava a Sciences Po a recrutar Bruno Latour. Filósofo por formação, antropólogo em campo, sociólogo da ciência por profissão, não pertencia, como ele próprio dizia — com um toque de provocação — a “nenhuma das disciplinas da casa” e tinha então pouca consideração pela nossa instituição. No entanto, esta distância aparentemente incomensurável foi atravessada. Primeiro por Bruno Latour, que foi seduzido e intrigado pela audácia e ousadia de Richard Descoings, e depois por este último que o recebeu de braços abertos em 2006 vindo da École des Mines e lhe confiou imediatamente, em 2007, a política de pesquisa da Sciences Po — em outras palavras, as chaves da sua orientação científica. Após a virada da internacionalização, após a revolução da abertura social, havia chegado o tempo de um novo momento intelectual. O encontro, a priori improvável, entre esses dois experimentadores visionários, entre o intelectual atípico e o alto funcionário público iconoclasta, desenvolveu-se numa colaboração extraordinariamente frutuosa, marcada pela confiança e respeito, concretizada por um apoio mútuo que nunca vacilou, mesmo nas horas mais sombrias de crise e luto[3]. Sem dúvida tinham em comum, para além de um gosto pronunciado pelo não-conformismo, o mesmo projeto político, no nobre sentido do termo, o de renovar a aliança da ciência e da ação, ao serviço de uma causa — armar as novas gerações com os instrumentos da ciência para enfrentar os desafios contemporâneos, para refundar as universidades e “reequipar” as disciplinas para o conseguir.
O encontro de Bruno Latour com a Sciences Po foi também o de um homem maduro mas perpetuamente jovem com uma juventude forçada pelo espírito do tempo a uma maturidade precoce, cuja raiva e indignação, curiosidade e entusiasmo, energia incansável e vontade indomável, e força criativa ele partilhava. Aquelas e aqueles que tiveram a sorte de assistir às aulas de Bruno Latour recordam a presença de um orador brilhante, a facilidade e o carisma de um ator virtuoso, a sua estatura de carvalho dominando o palco do anfiteatro Boutmy, o seu humor, a sua curiosidade insaciável, a sua atração por técnicas, o seu gosto pela prática, pela demonstração e pela experimentação. Simular em tamanho real as negociações da COP, esta foi a performance política e teatral que propôs aos estudantes que participaram de Copenhague, et si ça s’était passé autrement e de Paris Climate 2015. Make it Work. Utilizar o espaço digital para mapear as controvérsias científicas, tal é a experiência digital partilhada com estudantes do Colégio Universitário e depois do Mestrado em Comunicação da Sciences Po. Renovar a política através da representação e da criação é o objetivo artístico e científico da Escola de Artes Políticas, SPEAP. Surpreendente em todas as circunstâncias, Bruno Latour também influenciou o projeto pedagógico da Sciences Po, trabalhando para fortalecer a cadeira — com a cumplicidade do Diretor de Estudos e Escolaridade, Hervé Crès, da comunidade acadêmica e de toda a geração de intelectuais, artistas, pesquisadoras e pesquisadores que ele formou ou que ele foi capaz de unir aos seus esforços —, o ensino de humanidades científicas, o duplo currículo em ciências e ciências sociais (o seu amado “Scubes”), os estudos ambientais, as humanidades digitais (Médialab e Forccast), as humanidades políticas e artísticas (oficinas artísticas, SPEAP) — todos elementos precursores que, dez anos mais tarde, constituem o alfa e o ómega dos currículos das chamadas universidades de excelência.
Esse encontro entre um homem sem instituição e uma instituição há muito tempo sem professor nem pesquisador completou a transformação da grand école Sciences Po numa universidade de pesquisa e tirou o filósofo da sua Tebaida e o sociólogo da ciência das paredes do laboratório em direção aos caminhos da política científica e da administração. Analisando o “je ne sais quoi” que caracteriza a Sciences Po a partir das profundezas históricas da École libre des sciences politiques, da sua governança, da variedade do seu corpo docente, da metamorfose do seu syllabi, da diversidade das suas oportunidades profissionais, Bruno Latour escreveu textos profundos e incisivos sobre a identidade da nossa instituição — “uma monstruosidade, uma maravilha, uma quimera” — e sobre sua ideia de universidade — “nem a université no sentido francês, nem a University no sentido inglês, a universidade anormal”. Dedicou o seu último grande discurso público à Sciences Po, proferido em 16 de setembro em Saint-Thomas, por ocasião da celebração do nosso centésimo quinquagésimo aniversário[4]. Nesse dia, ele projetou-se pela última vez, não exclusivamente para o passado como a ocasião comemorativa o poderia ter encorajado a fazer, mas resolutamente para o futuro, oferecendo àquelas e àqueles que sabem ouvi-lo e lê-lo um autêntico programa de política universitária.
Como Diretor Científico da Sciences Po de 2007 a 2013, Bruno Latour, juntamente com a Diretora Adjunta, Cornelia Woll, lançou as bases e começou a promover o recrutamento de professores permanentes de primeira linha, escolhidos e avaliados de acordo com padrões internacionais, a reunir professores-pesquisadores e pesquisadores, a criar ou reorganizar os órgãos colegiados onde a política científica é discutida (departamentos, conselho científico, senado acadêmico), a fornecer para a pesquisa recursos (chamada à apresentação de projetos financiados a partir do orçamento da Sciences Po e avaliados por um Conselho Consultivo Científico, “SAB”) e ferramentas para obter financiamento competitivo (a missão de apoio a projetos científicos, “MAPS”), a expandir o escopo disciplinar (Médialab para estudos digitais, Centre des politiques de la Terre para estudos ambientais, SPEAP para artes políticas), a “refundalizar” a formação e a pesquisa, a desenvolver métodos de ensino inspirados na antropologia, ciências experimentais e artes, a convidar os intelectuais mais famosos para a Rua Saint-Guillaume.
Além disso, Bruno Latour conceptualizou a tensão no centro da identidade da Sciences Po entre a pesquisa fundamental e as “questões políticas e mediáticas” e insistiu a que se assumisse a “contradição entre o próximo e o distante, entre o imediatamente útil e o duradouro, entre o que profissionaliza e o que prepara para o imprevisível”. Assim, a “experiência Sciences Po”, por mais imperfeita ou irritante que por vezes lhe pudesse parecer, continuaria a ser para ele a forma mais relevante e eficaz de remediar a impotência política, a indiferença das sociedades face às transformações globais e a catástrofe ecológica.
Durante o último ano da sua vida, quando estava muito fraco e não ignorava que o resultado fatal estava próximo, Bruno Latour colocou toda a sua energia, sua fama e seus recursos (uma vez que nos doou o montante do seu Prêmio Kyoto) ao serviço de um projeto, que partilhamos e apoiamos muito activamente: a constituição de um fundo destinado a recrutar, na Sciences Po, pós-doutorandos particularmente avançados nas dimensões mais fundamentais da pesquisa em ecologia política, com formação em diversas disciplinas das humanidades e ciências sociais. Conseguimos agora angariar os fundos necessários para lançar os primeiros convites à apresentação de candidaturas.
É assim que pretendemos honrar a sua memória, continuando o trabalho que iniciou e seguindo os seus passos, como fizemos ao observar uma das recomendações do relatório que escreveu em 2019: a criação de um curso obrigatório sobre grandes transformações ambientais para todos os nossos estudantes do Colégio Universitário.
O último ato público de Bruno Latour ocorreu no sábado, 24 de setembro, no Teatro Chaillot, onde celebramos juntos o décimo aniversário da SPEAP, na companhia da equipe pedagógica, liderada por Frédérique Aït-Touati, perante um grande número de representantes das doze turmas de alunos deste programa de mestrado que lhe era tão querido. Naquela noite, exausto, estava radiante de felicidade.
Nós guardaremos essa imagem dele. A de um encantador que nunca deixa de experimentar, questionar, sacudir e renovar os modos de pensamento e expressão da filosofia e das ciências humanas e sociais. A de um alquimista borgonês que transforma em ouro o chumbo de pensamentos estreitos, confinados, cautelosos e convencidos. Um rio poderoso que transborda constantemente o seu leito, fertiliza e enriquece tudo à sua volta.
Nada pode jamais conter este fluxo sumptuoso. Nada pode jamais extinguir uma tal chama.
Os nossos pensamentos mais calorosos estão com a sua esposa, Chantal, os seus filhos, Chloé e Robinson, e os seus três netos.
Notas:
[1] Discurso proferido aos estudantes do Sciences Po por ocasião da Noite da Cultura, 18 de Abril de 2012, poucos dias após a morte de Richard Descoings, cf. http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/00-PRIMUS_SINE_PARIBUS.pdf
[2] Veja a ver a notável série de entrevistas de Bruno Latour com Nicolas Truong transmitidas por Arte, cf. https://www.arte.tv/fr/videos/RC-022018/entretien-avec-bruno-latour/
[3] Discurso proferido aos estudantes da Sciences Po em 18 de abril de 2012, ver acima.
[4] Discurso proferido no 150º aniversário da Sciences Po, sexta-feira 16 de setembro de 2022 sob o título The New Free University.
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