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Foucault do outro lado da Alsácia-Lorena, Por Eduardo Altheman

Por Eduardo Altheman[i]

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Quando reconheço os méritos dos filósofos da Escola de Frankfurt, eu o faço com a consciência pesada de que deveria ter lido-os bem antes, compreendido-os bem mais cedo. Se tivesse lido suas obras, há um bocado de coisas que eu não teria necessidade de dizer e teria evitado erros. Talvez, se tivesse conhecido os filósofos dessa Escola quando era jovem, teria sido a tal ponto seduzido por eles que não teria feito nada a não ser comentá-los.
Michel Foucault em entrevista de 1980

Introdução

A primeira interrogação suscitada por este texto refere-se à inclusão de Michel Foucault em uma série sobre Teoria Crítica. Afinal, a crítica genealógica e a crítica dialética não seriam essencialmente incompatíveis? De um lado, uma analítica preocupada com o local, o micro, o evento; de outro, a investigação (racional) da razão, o diagnóstico do Esclarecimento, a crítica do capitalismo tardio. Entre uma ontologia do presente e a Teoria Crítica da sociedade, não haveria um abismo intransponível? Não se correria aí o risco de misturar “alhos com bugalhos” – ou, como formulou certa vez Fredric Jameson, apples and oranges?

Esta de fato foi a posição inicial assumida por parcela considerável da crítica em ambos os lados da equação – e da Alsácia-Lorena. A “querela” travada entre Foucault e Jürgen Habermas (complementada pelas críticas lançadas por Nancy Fraser nos EUA) operou como uma baliza fundante que viria a determinar boa parte da recepção de suas obras no contorno de uma espécie de “linha Maginot”, que lançou cada lado à sua trincheira. Nesta avaliação, não haveria como ler Foucault como frankfurtiano e, analogamente, a Teoria Crítica da sociedade não poderia ser lida em conjunto com a obra foucaultiana.

Não entrarei aqui no mérito do debate consagrado por esta contenda. Gostaria, entretanto, de levantar a seguinte questão neste texto: além de a “disputa” ter se configurado de modo muito mais indireto e truncado do que na forma de um debate propriamente dito[ii], resta considerar que a analítica foucaultiana talvez tenha mais afinidades com outro projeto da Teoria Crítica, aquele levado a cabo por sua primeira geração, para a qual Teoria Crítica e (certa leitura do) marxismo eram sinônimos.

Gostaria de sugerir aqui alguns caminhos de leitura que permitam encontrar aproximações nesta relação teórico-crítica. Certamente há diferenças de fato irreconciliáveis entre o projeto desenvolvido pela Escola de Frankfurt e a analítica foucaultiana; não se trata aqui de ofuscar aquilo que distingue uma tradição de outra. O objetivo é buscar alguns paralelos e fricções que podem resultar em fagulhas para o pensamento crítico hoje. A crítica do capitalismo levada a cabo por investigações referentes às relações entre poder, saber e subjetividade forma a linha mestra que permite acessar as afinidades frankfurtiano-foucaultianas ora propostas.

Foucault, crítico do capitalismo, parte I – Vigiar e punir

Embora este elemento seja frequentemente subestimado, a crítica ao capitalismo desempenha um papel central na analítica foucaultiana, em especial em sua “fase” genealógica. Obras como A vontade de saber (FOUCAULT, 2001) ou Vigiar e punir (FOUCAULT, 2011) são saturadas de menções ao sistema capitalista, à acumulação de capital, a formas de dominação e exploração de classe e outros temas tidos como muito mais afeitos ao marxismo – e, logo, supostamente avessos à analítica de Foucault.

Em sua célebre obra sobre o nascimento da prisão, por exemplo, a emergência do capitalismo é determinante para a compreensão da tese principal do livro relativa a uma nova forma, especificamente moderna, de conduzir e administrar indivíduos: o poder disciplinar. O argumento é conhecido: Foucault mostra como, em presídios, mas também nas fábricas, escolas, hospitais e em outros recintos (aquilo que denomina “arquipélago carcerário”), as práticas disciplinares alocam, vigiam e controlam os indivíduos em espaços de reclusão, nos quais cada um é ordenado a ocupar seu lugar determinado e a desempenhar funções específicas. O modelo do panóptico de Bentham é replicado de modo prototípico como forma de gestão da sociedade.

Esta forma de exercício de poder, denominado por Foucault “disciplinar”, é inédita no Ocidente, argumenta ele. Seus mecanismos, cada vez mais minuciosos e capilares, contrapõem-se a um modo de funcionamento excessivamente lacunar e ostentoso – e por isso mesmo, marcado por lassidão e desperdício – do poder soberano. Como corretivo, o poder disciplinar volta-se para o adestramento dos indivíduos, visando a torná-los dóceis politicamente – uma vez subtraídos das temidas multidões que, em fluxo massivo, desafiavam o soberano – e, ao mesmo tempo, funcionais e ativos economicamente – potencializando e majorando as capacidades individuais para as mais diversas atividades produtivas, extraindo de cada movimento e de cada segundo seu emprego otimizado na sociedade burguesa nascente. Economia e política, nota-se, andam de mãos dadas no diagnóstico de Foucault de uma sociedade disciplinar.

O movimento histórico que caracteriza o nascimento das disciplinas, segundo o pensador francês, é o da explosão demográfica e do crescimento de um enorme aparelho de produção no século XVIII. Trata-se de um processo duplo que ata, em uma das pontas, uma acumulação de indivíduos e, na outra, de capital:

Na verdade, os dois processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema da acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz ao mesmo tempo de mantê-los e de utilizá-los; inversamente, as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa de homens aceleram o motivo de acumulação do capital. (FOUCAULT, 2011, p. 182)

É como se Foucault contasse aí uma história paralela e complementar àquela narrada por Marx no capítulo XXIV d’O Capital (MARX, 2013), mostrando como todo o processo de cercamentos e desapropriação ocorrido na formação da classe proletária não teria somente criado uma acumulação de capital necessária para a produção e reprodução do sistema capitalista, mas teria sido também amparado e impulsionado por um acúmulo igualmente monstruoso de indivíduos e corpos que, uma vez expulsos de suas terras, foram organizados e adestrados a partir de sua alocação em fábricas, prisões, escolas, hospitais e quarteis. Ao lado de leis contra a mendicância e a vagabundagem, uma miríade de micro regulações da vida cotidiana buscava transformar camponeses expropriados em indivíduos governáveis. A história de uma sociedade que se organiza e organiza a vida de seus indivíduos a partir dos ditames do capital é, portanto, elemento imanente à sua analítica.

Assim como Marx, Foucault busca aí dissecar a dominação subjacente a um projeto de sociedade moderna baseado na cisão contraditória da sociedade burguesa: de um lado, o indivíduo é tipificado política e juridicamente em um contrato celebrado entre livres e iguais (é isto que distingue sua existência da servidão e da escravidão e funda a sociedade moderna); de outro, a desigualdade econômica e social continua a estruturar todos os planos desta sociedade. Ao adentrar esses espaços de reclusão com suas assimetrias, hierarquias e regulamentações, Foucault narra a infra-história da gestão dos corpos que visa a frear o ímpeto democratizante da sociedade burguesa, que, no plano jurídico global,  havia decretado que todos era iguais, livres e fraternos. Como afirma em Vigiar e punir:

As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas. O contrato podia muito bem ser imaginado como fundamento ideal do direito e do poder político; o panoptismo constituía o processo técnico, universalmente difundido, da coerção. Não parou de elaborar em profundidade as estruturas jurídicas da sociedade, para fazer funcionar os mecanismos efetivos do poder ao encontro dos quadros formais de que este dispunha. (FOUCAULT, 2011, p. 214)

Em outras palavras, aquilo que o contrato, na esfera jurídica, iguala, o panoptismo, de modo infralegal, hierarquiza; o que a lei generaliza, as disciplinas individualizam; de um lado, cidadãos simétricos; de outro, sujeitos assujeitados por processos cotidianos de coerção que organizam os corpos de modo assimétrico.

Aí jaz um motivo foucaultiano que, se já figura no pensamento do próprio Marx (considerado pelos próprios teóricos críticos como aquele que fundou a tradição à qual se filiam), é extremamente afinado com um dos projetos da Escola de Frankfurt, a saber, a crítica às formas de dominação capitalistas que se estabelecem de modo sub-reptício, furtivo e invertido, como se a história da Modernidade contivesse dentro de si uma contra-história, uma história subterrânea na qual razão interverte-se em desrazão, liberdade em dominação, igualdade em exploração. Não é por outro motivo que Marx teve de virar do avesso a troca de equivalentes para demonstrar o logro embutido de modo velado no contrato de trabalho. Analogamente, é o procedimento que está na base da crítica ao capitalismo tardio dos teóricos críticos posteriores: a despeito de sua capacidade de amortizar conflitos sociais por uma abundância de mercadorias, “progresso técnico” e entertainment, a sociedade burguesa, mesmo quando produz seus melhores resultados, é fundamentalmente irracional. Para lembrar as palavras de Herbert Marcuse, “uma falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho de progresso técnico” (MARCUSE, 2002, p. 3). Ao eviscerar a relação contraditória entre aquilo que o contrato formaliza, de um lado, e como o panoptismo disciplinar efetivamente re-hierarquiza, de outro, Foucault coloca-se nesta mesma tradição. Rouanet (1987, p. 157) aponta esta convergência: “Em sua radicalidade, essa crítica social [de Foucault] tem mais a ver com a velha Escola de Frankfurt que com a variante habermasiana. Apesar da existência de ‘Contrapoderes’, a modernidade descrita por Foucault é a do Iluminismo em sua última fase, a da sociedade unidimensional, a do mundo totalmente administrado, de onde a liberdade foi banida, diante do poder normativo do existente”.

E mais: esta crítica foucaultiana que aponta para o “subsolo” do capitalismo é acompanhada de perto por uma crítica dos saberes que escoraram e desbloquearam epistêmicamente as vias para o assujeitamento disciplinar. Trata-se aí de entender como os relatórios prisionais, prontuários manicomiais, fichas de fábrica mobilizavam certos saberes para produzir um sujeito disciplinado, dócil e produtivo. Estes saberes provinham do direito, da filosofia política, das ciências “psi-”, da medicina, das ciências forenses etc. Daí a crítica de Foucault ao Iluminismo: “as ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 2011, p. 214) é uma de suas afirmações mais lapidares. Um movimento de interversão análogo ao que caracteriza a relação entre contrato e panoptismo está em jogo aqui: um saber que coloca o indivíduo igual e livre no centro de suas preocupações é o mesmo que institui as formas de assujeitamento diferencial dos corpos, a alocação desigual dos sujeitos, o aprisionamento rentável dos indivíduos.

Como se sabe, o projeto de crítica (racional) da razão é caro à Escola de Frankfurt e está presente em cada uma das grandes obras produzidas por seus membros originais, da Dialética do Esclarecimento a’O homem unidimensional, e remonta a crítica ao pensamento burguês levada a cabo por Lukács em História e consciência de classe e ao próprio Marx ao apontar as robinsonadas da economia política burguesa. Crítica da ciência burguesa de um lado, genealogia dos saberes do Iluminismo de outro, fato é que ambos se cruzam ao apontar os momentos em que o conhecimento moderno traz consigo e (re)produz as marcas da dominação social que estruturam a sociedade da qual partem. Se daí em diante as empreitadas bifurcam – uma tomando a via da Ideologiekritik e outra da negação do conceito de ideologia –, o ponto comum de crítica das formas de dominação capitalistas que se apresentam como formas de saber permanece.

Foucault, crítico do capitalismo, parte II – Nascimento da biopolítica

Pode-se afirmar que boa parte da produção intelectual de Foucault dedicou-se a analisar as relações recíprocas entre campos de saber, relações de poder e modalidades de subjetivação. Desde História da loucura (FOUCAULT, 2009), o pensador francês mostrou-se intrigado pelos nexos tecidos entre saberes nascentes que se cristalizam e encarnam em instituições específicas, com suas hierarquias e relações de poder, e assim dão vida a modos de assujeitamento que conduzem as pessoas e impelem-nas a conduzir-se de formas determinadas – na fórmula foucaultiana consagrada, as distintas formas de configurações da “condução das condutas”.

Em sua fase genealógica, esses nexos voltam a ocupar o palco central de sua produção intelectual, mas agora, conforme vimos no item anterior, a formação e desenvolvimento do capitalismo desempenham um papel crucial. Neste sentido, pode-se afirmar que Foucault passou a investigar então as relações entre formas capitalistas objetivas e subjetivas.

Em Vigiar e punir, Foucault já havia desnudado esta relação entre poder e subjetividade. “São as práticas disciplinares, com suas regras de observação, de vigilância, de notação, de registro que individualizam o homem, que o constituem como sujeito. As regras de sujeição são também regras de subjetivação — de formação dos sujeitos”, constata Rouanet (1987, p. 176). Na conhecida fórmula de Foucault, subjetivação e assujeitamento são dois lados da mesma moeda nas formas de fabricação de um sujeito moderno individualizado por saberes e instituições como a prisão e a fábrica[iii].

Entre os anos de 1978 e 1979, contudo, Foucault dá um passo além em sua indagação a respeito das formas subjetivas capitalistas e explora como uma forma de subjetivação pode ser decalcada diretamente de uma das instituições nevrálgicas da sociedade burguesa: a empresa capitalista. Não é mais a prisão que fornece aqui a medida e forma do sujeito, mas a instância máxima de determinação do capital. E tampouco são as ciências psi- que são vistas com desconfiança; Foucault parte diretamente para a leitura de pensadores neoliberais que, se hoje tornaram-se “mestres do universo” (JONES, 2014), naquela época ainda estavam penando para abandonar a pecha de “pregadores no deserto”.

Analisando primeiramente o pensamento ordoliberal de raízes germânicas, Foucault mostra como, ao contrário de um projeto de sociedade marcado pela naturalidade e espontaneidade das relações sociais (tal qual preconizavam proponentes do liberalismo clássico), pensadores como Alfred Müller-Armack, Alexander Rüstow, Walter Eucken ou Wilhelm Röpke defendiam que a sociedade não deveria ser regida por um laissez-faire generalizado. Uma matriz de programação não só da economia, como da sociedade inteira, inclusive dos aspectos mais individuais e subjetivos, era parte indispensável de seu projeto. Para promovê-lo, esta genuína “planificação” social neoliberal passava por um elemento nuclear fundamental: a forma empresa. Nas palavras de Foucault:

Na verdade, […] [trata-se] de constituir uma trama social na qual as unidades de base teriam precisamente a forma da empresa […] Em outras palavras, trata-se de generalizar, difundindo-as e multiplicando-as na medida do possível, as formas “empresa” […]. É essa multiplicação da forma “empresa” no interior do corpo social que constitui, a meu ver, o escopo da política neoliberal. Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por conseguinte, da empresa o que poderíamos chamar de poder enformador da sociedade[iv]. (FOUCAULT, 2008, p. 203)

A forma empresa – com seu raciocínio de perdas e ganhos, competição, lucros marginais, investimentos, aquisição de ativos, planejamento financeiro, relatórios periódicos, missão do negócio – constitui a forma elementar a partir da qual toda a sociedade deve ser erigida. A empresa provém as coordenadas que devem, para os ordos, nortear a vida social. Daí a expressão “poder enformador da sociedade”, empregada por Foucault acima.

Contudo, embora Foucault tenha situado seu ponto de partida nas proposições ordoliberais, é a experiência do neoliberalismo nos EUA que se mostra crucial para compreender a emergência daquilo que identifica como uma subjetividade sui generis neoliberal.  Isto porque o neoliberalismo estadunidense tem uma proposta muito mais ampla, profunda e extrema. Para operadores do pensamento neoliberal como Gary Becker ou Milton Friedman, a questão do neoliberalismo toma proporções muito mais ambiciosas.

Na Escola de Economia de Chicago, a meca neoliberal enfocada por Foucault, dá-se o impulso inicial para que cada aspecto da vida possa ser interpretado (e vivido) como empreendedorismo (de si), accountability, resiliência, feedback, sinergia, mindset, disrupção, branding, compliance, skills, performance e tantas outras entradas nesta gramática corporativa que satura a vida social e individual como um todo. Trata-se do momento em que a racionalidade econômica neoliberal dá uma guinada muito mais ousada e pretende explicar (e, com isso, na verdade, forjar, argumenta Foucault) não apenas a própria economia, mas todo o campo do social a partir de seus termos.

Foucault examina como sujeitos são decalcados diretamente da forma da empresa capitalista e como todas as suas ações e escolhas passam a ser realizadas como se indivíduos capital fossem. Daí porque confere tanto interesse à teoria do “capital humano”, proposta por autores como Gary Becker. Foucault busca desentranhar da própria teoria neoliberal o projeto de sociedade e de subjetividade ali promovido e sustentado. E o que encontra em sua escavação são sujeitos que “aparece[m] como uma espécie de empresa para si mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 310).

A novidade deste curso em relação à Vigiar e punir dá-se por conta da ênfase nos processos de gestão da liberdade como forma de condução das condutas. No livro de 1973, a sensação que toma conta do leitor é a de exasperação: da escola à prisão, da fábrica à caserna, de uma instituição de sequestro a outra, a vida dos indivíduos assujeitados pelas disciplinas é marcada pela clausura, pelo encerramento compulsório, pela heteronomia do controle sobre o corpo. No curso de 1978 e 1979, este diagnóstico do capitalismo é complementado[v] por uma análise das técnicas que situam a autocondução no cerne das tecnologias de governo. Foucault explora como não é somente a imposição coercitiva que extrai resultados de subjetivação afeitos às formas capitalistas objetivas; no rol de técnicas capitalistas, entram também incentivos e contra-incentivos, premiações, insinuações e sugestões, um modo de impelir o sujeito a portar-se de determinada forma a partir de um cálculo “racional” que parece emanar do próprio sujeito e cujo resultado é benéfico para si. Isto é, ao invés de (apenas) enquadrar, imobilizar e uniformizar os indivíduos, as técnicas neoliberais atuam nos fatores que circundam esse indivíduo, buscando influenciar sua ação futura. Como afirma Foucault (2008, p. 354), a racionalidade neoliberal não visa tanto aos jogadores, mas às regras do jogo – ainda que aquelas saiam igualmente transformadas, canalizadas, (para usar um termo caro à Escola de Frankfurt) administradas.

Ao descrever a forma de atuação desta modalidade neoliberal de subjetivação, Foucault mostra como as malhas do poder são bem mais sutis do que podem parecer à primeira vista. Afinal, prisões e fábricas são ambientes em que o assujeitamento compulsório mostra-se de modo mais evidente: relações assimétricas e submissões de toda ordem são marcas distintivas destes espaços. Por outro lado, as fronteiras entre heteronomia e autonomia são esfumaçadas por uma tecnologia de poder neoliberal que impele o indivíduo a portar-se de certo modo por meio de recompensas e repreensões post festum, mas não necessariamente por coerções diretas.

Esse diagnóstico do neoliberalismo também envolve a transição de cenário: se as injunções e guias individuais partem do interior da empresa capitalista, elas não ficam ali contidas, transbordando os locais e tempos específicos em que os indivíduos de fato se situam em seu âmbito para saturar todos os aspectos de suas vidas. Se Vigiar e punir fosse lido como um romance, seria um que se passa em espaços fechados. Seus personagens, os indivíduos esquadrinhados pela sociedade burguesa emergente, transitam incessantemente entre a cela, a sala de aula, o confessionário, a oficina. O curso de 1978 e 1979, por sua vez, retrata uma dominação que sai das salas de reunião corporativas para transcorrer ao ar livre. Opera na cidade, nas migrações, nas atividades culturais, nos hábitos de saúde, nas seleções genéticas, em suma, na vida social e individual como um todo. O que não indica um funcionamento menos abrangente das relações de poder. Pelo contrário: à claustrofobia generalizada suscitada pela leitura de Vigiar e punir soma-se uma suspeição ubíqua resultante de Nascimento da biopolítica.

Para o leitor versado em Teoria Crítica, tornam-se evidentes os paralelos entre a analítica de Foucault sobre o neoliberalismo e o diagnóstico de uma sociedade que tem na forma mercadoria seu “poder enformador”. Marx chamou a mercadoria de “forma elementar” das sociedades “onde reina o modo de produção capitalista” (MARX, 2013, p. 113). Em um ensaio que abriria as portas para a Escola de Frankfurt, Lukács afirmaria que, em Marx, “o problema da mercadoria […] aparece como o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais” (LUKÁCS, 2003, p. 193).

Walter Benjamin, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse extrapolariam a afirmação de Lukács para sondar como a mercadoria e seu fetiche determinam os mais diversos fenômenos sociais no capitalismo (especialmente em sua versão tardia). Ao fazê-lo, abandonam a ideia de que as relações de dominação no capitalismo restringem-se ao local de trabalho, ao choque imediato entre burgueses e proletários no chão de fábrica, e elaboram uma teoria crítica da forma de vida global engendrada pelo capital, atuante mesmo no (assim chamado) “tempo livre” (cf. ADORNO, 2002). Abrem-se aí as portas para decifrar não apenas aquilo que se denomina de modo restrito esfera da produção, mas também a ciência, as artes, a linguagem, a indústria cultural, a sexualidade ou a psique a partir do hieróglifo social representado pela mercadoria.

Neste sentido, é como se Foucault, em sua crítica da economia política neoliberal, extraísse da forma empresa aquilo que a tradição da teoria Crítica havia derivado da forma mercadoria.

Com esse diagnóstico global, a Teoria Crítica mostra como momentos que à primeira vista não aprecem ser determinados pelo capital revelam-se imbuídos, de cima a baixo, de sua lógica. E novamente, assim como na passagem de Vigiar e punir a Nascimento da biopolítica vista acima, a inquietação dá o tom da análise, uma vez que os fenômenos que assumiam a aparência de “livres” são problematizados. Como afirma novamente Marcuse, “sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em um poderoso instrumento de dominação” (MARCUSE, 2002, p. 9). No quadro marcado por uma interiorização das injunções do capital, a ação individual, mesmo quando determinada de modo aparentemente autônomo, pode carregar consigo as marcas de uma sociedade caracterizada pela dominação.

A relação entre formas capitalistas objetivas e seus correlatos subjetivos é outro ponto de intenso contato entre Foucault e a Escola de Frankfurt. Uma das marcas distintivas da Teoria Crítica é justamente aliar teoria social e psicanálise, Marx e Freud, para compreender como as distintas configurações sociais, políticas e econômicas do modo de produção capitalista (seja em sua versão liberal, tardia, monopolista, autoritária, unidimensional etc.) engendram seus “tipos antropológicos” (HORKHEIMER, 1950, p. x) correspondentes. Daí o interesse por objetos como a indústria cultural, a personalidade autoritária, a ascensão e queda do indivíduo, a dessublimação repressiva, a linguagem, a coluna de astrologia do LA Times, a semiformação – entre tantos outros assuntos caros aos teóricos de Frankfurt.

Seja em fábricas ou prisões, seja nas páginas de autores neoliberais ou em empresas, Foucault fornece sua própria cartografia de como o capitalismo engendra múltiplas formas de subjetivação afinadas com suas formas objetivas.

A analítica de Foucault e a Teoria Crítica cruzam-se mais uma vez no questionamento de um sujeito que, se é livre e soberano de si, é concomitantemente submisso e heterônomo. O que é formulado de um lado (com recurso à psicanálise) como introjeção da dominação é articulado, de outro, (com rejeição à psicanálise) como autocondução e governo de si em meio aos ditames de uma racionalidade neoliberal que administra oscilações individuais como forma de governo.

***

Se Foucault aprovaria ou não a aproximação proposta aqui é assunto para outro texto. Mas cabe ressaltar que é justamente no início dos anos 1980, logo após terminar o curso sobre neoliberalismo no Collège de France, que Foucault confessa – por iniciativa própria, é importante sublinhar – sua proximidade (e até mesmo admiração!) em relação à Teoria Crítica, explicitada na entrevista que consta da epígrafe e em outros momentos.

Como afirmei, isto evidentemente não implica um nivelamento completo ou a identificação de desenvolvimentos críticos idênticos. Mas certamente permite procurar em sua obra os momentos em que genealogia do poder e teoria crítica da sociedade cruzam-se e, deste encontro, dão o que pensar e fornecem bússolas para a crítica do capitalismo hoje.

Referências

ADORNO, Theodor W. Tempo livre. In: ALMEIDA, J. M. B. DE (Org.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2001.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2011.

HORKHEIMER, Max. Preface. In: ADORNO, T. W. e colab. The authoritarian personality. New York: Harper & Brothers, 1950. p. ix–xii.

JONES, Daniel Stedman. Masters of the universe: Hayek, Friedman, and the birth of neoliberal politics. Princeton, Oxford: Princeton University Press, 2014.

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARCUSE, Herbert. One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. London: Routledge, 2002.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

ROUANET, Sérgio Paulo. Poder e Comunicação. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 147–192.

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Notas: 

[i] Mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, atualmente é pós-doutorando no mesmo Programa, com bolsa da Capes.

[ii] Como afirma Sérgio Paulo Rouanet, “durante muito tempo, Jürgen Habermas ignorou a existência de Michel Foucault. Podemos argumentar que isso não tem nada de extraordinário, porque a recíproca é em grande parte verdadeira” (ROUANET, 1987, p. 147).

[iii] Não será possível analisá-lo aqui, mas o primeiro volume de História da sexualidade também fornece uma apreciação de como o sujeito da sexualidade é engendrado a partir de uma explosão discursiva que coloca a verdade do sexo no centro de suas preocupações. Novamente este dispositivo é associado por Foucault ao desenvolvimento do capitalismo, uma vez que entra em cena uma nova “categoria”, a de biopoder, que visa a cultivar, gerir e administrar a vida individual de forma a extrair dela suas máximas potencialidades econômicas. 

[iv] Neste excerto, Foucault refere-se textualmente ao pensamento de Alexander Rüstow, sociólogo e economista alemão associado ao ordoliberalismo e um dos arquitetos da economia social de mercado alemã após a 2ª Guerra Mundial. Mas o argumento pode ser estendido ao raciocínio ordo como um todo.

[v] Em minha concepção, não substituído, mas complementado – embora o próprio Foucault tenha sido ambivalente quanto a isso.

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Para citar este texto: ALTHEMAN, Eduardo. Foucault do outro lado da Alsácia-Lorena. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 06 de setembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/09/06/foucault-do-outro-lado-da-alsacia-lorena-por-eduardo-altheman/

 

1 comentário em “Foucault do outro lado da Alsácia-Lorena, Por Eduardo Altheman

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