Da Série Verbetes
Por Gabriel Peters
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Vale a pena Weber de novo
Como vimos nos posts prévios desta série, a sociologia compreensiva de Max Weber abriga uma concepção “compatibilista” da relação entre explicação e compreensão nas ciências sociais. Por um lado, reconhecia Weber com um aceno a Dilthey e companhia, enquanto as ciências naturais estudam fenômenos e mecanismos impessoais (p.ex., o cair de corpos como efeito de forças gravitacionais), as “ciências humanas” ou “ciências da cultura” lidam com um objeto prenhe de significados subjetivos que demandam compreensão (p.ex., o cumprimento, genuíno ou fingido, entre dois colegas de trabalho). Diferentemente de entidades inanimadas, os agentes humanos atribuem sentidos subjetivos às suas próprias condutas, às condutas de outros atores e aos ambientes mais amplos nos quais se encontram imersos. Os significados subjetivos que tais agentes conferem às suas ações são constitutivos de tais ações e, portanto, têm de ser acessados por qualquer empreitada científica que busque emprestar a elas inteligibilidade.
Se uma historiadora tenciona explicar, por exemplo, o evento em que o senador Fulano atirou no senador Sicrano em pleno plenário do Senado, de nada valeria contentar-se com uma caracterização estritamente externa do acontecido: “a bala saiu do revólver de Fulano a tantos quilômetros por hora, levando 0.tantos segundos para atingir o peito de Sicrano etc.”. Explicar o episódio significa responder à questão “Por que Fulano atirou em Sicrano no plenário?”, o que só é factível pelo acesso aos motores subjetivos da ação de Fulano (p.ex., uma explosão de ódio diante de uma manobra política de Sicrano, com quem Fulano já tinha um longo histórico de rivalidades, blá, blá, blá…). Uma pequenina ressalva cabe aqui: na medida em que Weber sustentava, com vigor, haver um abismo lógico entre juízos de fato e juízos de valor, a explicação sociológica destas e de outras condutas – medíocres ou extraordinárias, grotescas ou sublimes – jamais equivaleria, a seu ver, a uma justificação moral dos feitos de qualquer agente.
De todo modo, também tal qual Dilthey nas suas primeiras cogitações epistemológicas, Weber afirmava que a dimensão compreensiva da realidade para a qual se dirigem as ciências humanas gera, no seio destas, desafios metodológicos inexistentes nas ciências naturais. Uma reação química é obviamente tornada inteligível sem quaisquer referências às intenções conscientes dos elementos nela envolvidos (os quais são, tudo indica, destituídos de consciência), ao passo que o mesmo não pode ser dito de um abraço entre duas pessoas. Por outro lado, se Weber concordava com o acento diltheyano sobre a inescapabilidade da compreensão de significados no estudo científico da atividade humana, ele certamente rechaçava a ideia de que a compreensão seria um procedimento radicalmente distinto da explicação causal. Ao invés, como o exemplo do pistoleiro Fulano permite entrever, a explicação por causas e a compreensão de significados seriam procedimentos complementares na apreensão científica da vida social.
A elucidação dos sentidos subjetivos que os agentes associam à própria conduta, no mesmo passo em que diferencia as ciências humanas das ciências naturais, resulta de um imperativo metodológico partilhado por umas e outras: a intelecção de vínculos causais como maneira de dar inteligibilidade ao mundo. Como vimos em algum detalhe no post anterior desta série-verbete, ao trazer o raciocínio causal para a análise das ações humanas, Weber (2001a: 33) cuidou de afastar a interpretação “necessitarista” de causalidade que despertava tantos temores em vários de seus contemporâneos. Estes julgavam erroneamente que a explicação mediante a identificação de causas significava, no estudo do humano tal como na análise de choques entre bolas de bilhar, mera dedução de eventos particulares a partir de leis gerais. Justamente por notar que as causas dos fenômenos sociais, diferentemente dos mecanismos impessoais estudados pelas ciências da natureza, envolvem ações orientadas por motores internos à subjetividade de seus agentes, o autor de Economia e Sociedade considerou a compreensão desses motores como indispensável às ciências humanas. Nesse sentido, sua sociologia compreensiva tomará a compreensão da ação social – i.e., a captação do significado subjetivo que ela possui para o agente – como inerente à explicação causal do seu decorrer e das suas consequências intencionais ou não intencionais:
“Sociologia…significa: uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e, assim, explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos. Por ‘ação’ entende-se…um comportamento humano (tanto faz tratar-se de um fazer externo ou interno, de omitir ou permitir) sempre que e na medida em que o agente ou os agentes o relacionem com um sentido subjetivo. Ação ‘social’…significa uma ação que, quanto ao seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu curso” (Weber, 2000: 3; nesta como nas citações subsequentes, os grifos são sempre desse grifador compulsivo que foi o doutor Max).
Vista de modo isolado, a definição weberiana de sociologia compreensiva pode parecer demasiado restritiva no seu escopo. Boa parte do capítulo de abertura de Economia e Sociedade é devotada, no entanto, a qualificações que aplacam tal impressão. Em primeiro lugar, Weber reconhece que a análise sociológica das ações humanas considera cientificamente relevantes toda uma pletora de fenômenos materiais que, em si mesmos, são destituídos de significado. A finitude biológica do indivíduo, assim como certos parâmetros universais do seu desenvolvimento físico da infância até a velhice, por exemplo, são obviamente pertinentes como circunstâncias que restringem e/ou capacitam as ações humanas (Ibid.: 4). Eventos naturais em relação aos quais os agentes orientam suas condutas, tais como uma nevasca que influencia as decisões de líderes de exércitos em guerra, também entram na conta de fenômenos sociologicamente relevantes, ainda que privados de sentido em si próprios. Quanto aos artefatos técnicos fabricados e mobilizados pelos seres humanos, como um martelo ou um livro, Weber reconhece que eles são dotados de significados compreensíveis somente por “referência à ação humana” (Weber, 2000: 5) – uma “mesa de jantar” existe como um objeto físico, dotado de peso e extensão, independentemente de quaisquer seres humanos, mas não como mesa de jantar. No mais, não cansa Weber de lembrar, os sentidos que os agentes humanos atribuem aos objetos materiais podem ser dos mais variados – para retomar o exemplo, uma mesa pode possuir uma significação prática (como simples móvel de uso), uma significação memorialística (“a mesa que pertenceu à minha avó”) e assim por diante.
Comportamento, ação, ação social, relação social
A definição weberiana do escopo da disciplina à qual aderiu, em momento tardio da sua carreira intelectual (Mata, 2013), apareceu primeiramente em um ensaio de 1913 intitulado “Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva”, ensaio cuja versão modificada e (acreditem) simplificada apareceria com o título “Conceitos sociológicos fundamentais” na entrada de Economia e Sociedade (2000: cap.1). O capítulo condensa tamanho volume de informações que, a rigor, uma exposição didática de suas ideias, longe de caber em um resumo, teria de se expandir em um comentário circunstanciado (Cf. Sell, 2013a; Schluchter, 2014). Mas vejamos…
Weber está a léguas de defender, como o faria posteriormente Giddens na sua teoria da estruturação, que qualquer influência causal exercida por seres humanos nos eventos do mundo poderia ser conceituada como “ação”. O sociólogo alemão parece reservar o termo “comportamento” (Verhalten) para abranger o conjunto das intervenções humanas sobre a realidade, ao passo que define como “ações” a gama de comportamentos aos quais o próprio agente associa um “sentido subjetivamente visado”. A atribuição de significado subjetivo à própria conduta é, portanto, o fator que distingue a ação (Handeln) genuína do “comportamento simplesmente reativo” (Ibid.: 4). Quando um indivíduo pisca intencionalmente o olho para comunicar a outro que sua fala é irônica, está agindo. Por outro lado, se um indivíduo, diante de outro, pisca em virtude de algum mecanismo neuromotor involuntário, sua piscadela não é ação, mas mero comportamento reativo. Já que o fator fundamental da distinção weberiana entre “ação” e “comportamento reativo” é a atribuição de sentido subjetivo à própria conduta pelo agente, vale notar que, assim como existe “mero comportamento ativo”, há também “ação passiva” – por exemplo, quando uma pessoa deliberadamente se omite de participar de uma discussão acalorada, está “agindo” naquele sentido especificado por Weber.
No compasso da sua visão neokantiana da relação entre conceito e realidade, o autor formulava distinções conceituais “puras” como um modo de aproximar-se de fenômenos concretos inerentemente “impuros”, isto é, fenômenos nos quais os aspectos enfatizados pelos diferentes conceitos da sociologia compreensiva se encontram inevitavelmente misturados. No caso em vista, isto significa que a distinção entre ação e comportamento reativo está longe de ser nítida na vida social concreta. A bem da verdade, como veremos logo abaixo, Weber descreve o tipo de ação que chama de “tradicional”, ancorada no hábito arraigado, como uma modalidade de conduta que está a meio caminho entre a ação e o simples comportamento reativo (Ibid.). No mais, sublinha Weber, nem toda ação é ação social. “Social” é uma ação cujo sentido subjetivo se orienta para outros seres humanos, ainda que esses outros, como lembraria o leitor atento de Weber que foi Schütz (1972), possam assumir uma multiplicidade de formas: um agente concretamente identificado do presente (p.ex., quando escrevo um e-mail para um amigo), um agente concretamente identificado do passado (p.ex., quando dirijo minha consciência leitora para um livro de Clarice Lispector ou Virginia Woolf), um agente concretamente identificado do futuro (p.ex., quando uma avó grava um vídeo para o aniversário de cinquenta anos do seu ainda infante neto), uma coletividade abstrata de agentes contemporâneos (p.ex., quando monto um site de vendas para uma quantidade indefinida de consumidores potenciais), uma coletividade abstrata do passado (p.ex., quando uma arqueóloga procura vestígios dos costumes e obras de uma civilização de outrora), uma coletividade abstrata de agentes futuros (p.ex., quando Stendhal ou Nietzsche escrevem seus livros para a “posteridade”) etc.
Se a ação social é uma conduta subjetivamente orientada para o comportamento de outros agentes, uma “relação social” aflora (Weber, 2000: 16) sempre que as ações de dois ou mais indivíduos sejam reciprocamente referidas, isto é, sempre que os agentes orientem suas ações uns para os outros. Assim como nem todo comportamento humano cabe na definição de “ação”, já que esta depende da existência de um sentido subjetivamente visado pelo agente, nem toda situação de influência mútua entre seres humanos constituiria uma relação social. “Relações sociais” são, para a sociologia weberiana, somente aquelas formas de intercâmbio nas quais os agentes orientam suas ações uns para os outros. Por exemplo, uma topada não intencional entre dois ciclistas, diz Weber (Ibid.: 14), não seria uma relação social. Caso o choque ciclístico fosse seguido, no entanto, por uma troca de xingamentos e porradas ou, ainda, por uma “discussão pacífica” (2000: 14), já estaríamos, em cada um dos casos, diante de uma relação social. De todo modo, o fato de que uma relação social emerge a partir de condutas reciprocamente referidas, subjetivamente orientadas umas pelas outras, não significa que os significados atribuídos à relação pelos agentes envolvidos sejam sempre idênticos entre si (Ibid.: 16). Para dar uma ilustração ideal-típica (i.e., simplificada e exagerada para fins didáticos), um casamento entre dois agentes continua a ser uma relação social mesmo que apenas um deles seja movido por amor, enquanto o outro se guia exclusivamente por algum cálculo interesseiro.
O contraste entre a briga pós-choque dos ciclistas, de um lado, e o arranjo duradouro do casamento, de outro, já indica que relações sociais podem ser tanto transitórias quanto prolongadas, ainda que o caráter durável de quaisquer relações sociais não esteja nunca dado, mas exista somente na forma da “probabilidade da repetição de um comportamento correspondente quanto ao sentido (considerado como tal e, por isso, esperado)” (Ibid.: 17). O exemplo dos dois agentes que dirigem xingamentos e socos um para o outro evidencia também que a orientação mútua de sentido em relações sociais não implica, para Weber, que elas sempre pressuponham cooperação e “harmonia”. Muitíssimo ao contrário, o sociólogo alemão era excepcionalmente sensível a uma incontornável dimensão agonística e conflitual da vida social nas suas mais diversas esferas – pavimentando, assim, o caminho para outros artífices do desencanto que, como ele, faziam ciência para saber quanta verdade podiam suportar. Seja como for, o que os exemplos do casamento e da briga dos ciclistas não deveriam fazer é sugerir que a sociologia compreensiva de Weber, ao tomar o agente individual intencional como sua unidade básica de análise, privilegia a dimensão “micro” da vida social em detrimento de seus aspectos macroscópicos.
A bem da verdade, o conceito weberiano de relação social é suficientemente amplo, no seu escopo, para abarcar concatenações complexas de condutas por parte de uma imensa multiplicidade de agentes individuais, como na operação do aparato burocrático de um estado-nação ou na dinâmica de trocas comerciais em um mercado internacional. Como veremos no próximo post da presente série, devotado ao “individualismo metodológico” de Weber, o importante para ele não era negar a existência dessas teias extensas e ramificadas de relações sociais, mas criticar abordagens que as “substancializassem” (Ibid.: 16) – tomando-as como dados da natureza – ou as “personificassem” – tratando-as como agentes concretos dotados de intencionalidade e “espírito” próprio. Foi para afastar essas modalidades de raciocínio, sem deixar de reconhecer a realidade de formas padronizadas de relação social, que Weber enfatizou o caráter probabilístico dessas configurações relacionais a que nos referimos como “estado”, “mercado” e assim por diante. (Sintomático de sua visão radicalmente histórica e processual dessas formações sociais é também o fato de que Weber preferiu recorrer, como fizera Simmel, à noção de “sociação” [Vergesellschaftung”] em vez daquela de “sociedade” [Gesellschaft]):
“A relação social consiste exclusivamente, mesmo no caso das chamadas ‘formações sociais’ como ‘Estado’, ‘Igreja’, ‘cooperativa’…etc., na probabilidade de haver…ações reciprocamente referidas quanto ao sentido. Deve-se sempre ter em conta isso, para evitar a ‘substancialização’ desses conceitos. Um ‘Estado’, por exemplo, deixa de ‘existir’ sociologicamente tão logo desapareça a probabilidade de haver determinados tipos de ação social orientados pelo sentido” (Ibid.: 16).
Os tipos de ação social
Famosíssimos são os tipos ideais de ação social, distinguidos entre si com base nas suas orientações de sentido, que Weber (Ibid.: 15) apresenta:
- a ação racional com relação fins, fundada sobre o cálculo autointeressado dos meios mais adequados à sua consecução, cálculo que se orienta por expectativas quanto ao comportamento de outros agentes e dos objetos do mundo externo (p.ex., investimentos financeiros baseados na expectativa informada de rendimentos futuros);
- a ação racional com relação a valores, ancorada na fidelidade a certos compromissos valorativos (éticos, estéticos, religiosos etc. [Ibid.]), independentemente de suas consequências (p.ex., o caso do indivíduo que se sente terrivelmente tentado a comer carne, mas mantém-se vegetariano devido a uma ética de respeito à vida animal);
- a ação tradicional, calcada em hábitos arraigados (p.ex., o reconhecimento da autoridade dos anciãos da aldeia, vivenciado como natural e autoevidente, já que derivado do “ontem eterno”, i.e., do pressuposto de que “as coisas sempre foram assim”);
- a ação afetiva, derivada de “afetos ou estados emocionais” (Ibid.) (p.ex., quando um indivíduo, tomado por um acesso de raiva, dá um soco na cara de outro).
As modalidades de ação social delineadas na sociologia compreensiva de Weber são, como os demais conceitos de seu esquema analítico, desenhadas como “tipos ideais” que, em sua forma pura, jamais seriam encontráveis no mundo social empírico. Weber justificou a formulação e o uso de conceitos ideal-típicos no estudo científico de fenômenos sócio-históricos através de argumentos epistemológicos inspirados em autores como Menger, Simmel, Windelband e Rickert. Na medida em que a complexidade inesgotável da realidade concreta jamais poderia ser apreendida pelo sujeito cognoscente, o conhecimento científico depende de um papel ativo de tal sujeito na seleção e na organização dos aspectos do real sobre os quais ele se debruça. As operações de abstração envolvidas nesses procedimentos cognitivos podem ser orientadas do particular para o geral ou do geral para o particular. Nos ensaios metodológicos sobre as “ciências da cultura” que Weber (2001a; 2001b) publicou nos primeiros anos do século de 1900, ele defendeu que tais ciências não dispensam teses e conceitos gerais, mas os mobilizam sobretudo como meios de auxílio ao conhecimento idiográfico de fenômenos e circunstâncias sócio-históricas particulares. Nesse sentido, elas contrastariam com as ciências nas quais a coleta de informações sobre fatos concretos está a serviço último de um saber geral ou “nomotético”. Na formulação madura de Economia e Sociedade, no entanto, a distinção entre saber nomotético e saber idiográfico é redesenhada como base de uma divisão epistêmica do trabalho entre a Sociologia e a História. O conhecimento sociológico incluiria, devido às suas inclinações generalizantes, um repertório de conceitos tipificadores (p.ex., “dominação carismática” ou “grupo de status”) e de teses quanto a padrões recorrentes de ação social (p.ex., a tendência intergeracional à “rotinização” da dominação carismática por vias tradicionais e/ou burocráticas ou a tendência à burocratização da administração em “sociedades de massa”):
“A Sociologia constrói…conceitos de tipos e procura regras gerais dos acontecimentos. Nisso contrapõe-se à História, que busca a análise e imputação causal de ações, formações e personalidades individuais culturalmente importantes. A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da História” (Weber, 2000: 12).
No tocante ao papel de construções teóricas gerais no exame de fenômenos sócio-históricos particulares, as ambições de Weber são bem mais moderadas do que aquelas veiculadas pelos outros dois porquinhos da sociologia clássica, Marx e Durkheim. Isto o levou a despender bem mais tinta e energia sociológicas na formulação de um rol de conceitos ideal-típicos do que na produção de generalizações sobre a vida social. Cabe sublinhar, ainda assim, que as “regras gerais” mencionadas na citação acima devem ser entendidas como sinônimas de padrões ou regularidades, não de normas de conduta (nem todos os padrões de ação social resultam da obediência a normas, como vimos acima). Quanto à referência a “ações, formações e personalidades individuais culturalmente importantes”, ela deriva da tese, desenvolvida por Weber em diálogo com Rickert, de que a “relação a valores” ou “relevância valorativa” é a base da seleção do objeto na pesquisa sociocientífica.
A racionalidade como postulado heurístico
O que vale para os tipos ideais, de modo geral, se aplica também, é claro, aos conceitos weberianos relativos às diversas formas de ação. Suas modalidades “puras” não estão presentes na realidade empírica, já que condutas sociais concretas tendem a misturar aspectos dos diferentes tipos. No mundo real, por exemplo, um indivíduo que realiza uma doação pública a uma instituição de caridade pode ter um genuíno compromisso racional-valorativo com o bem-estar dos mais pobres, entrelaçado, porém, a um componente de autossatisfação afetiva (i.e., um sentimento de orgulho da própria bondade) e a uma pitada de cálculo racional-instrumental dos benefícios que sua doação traz a ele próprio (p.ex., o prestígio social oriundo da reputação de sujeito benevolente). Um raciocínio similar poderia ser aplicado a outros exemplos, como a recusa do Prêmio Nobel por Jean-Paul Sartre discutida em outro post.
Uma vez mais em compasso com sua concepção do papel heurístico de conceitos típico-ideais na investigação empírica, Weber sustenta que instâncias concretas de ação social podem ser elucidadas em termos do quanto se aproximam ou se afastam daqueles “tipos puros”. Isto dito, o grande polímata alemão defendeu também que a hipótese inicial de que os agentes estudados agem de modo racional com relação a fins, hipótese formulada com base nos critérios de racionalidade do próprio pesquisador, consiste em um estratagema útil à compreensão de condutas sociais empíricas. Em outras palavras, principiaríamos com o postulado de que os agentes atuam de maneira racional-instrumental, para então compararmos nosso modelo idealizado de conduta racional-instrumental com as ações efetivamente evidenciadas pelo estudo empírico, investigando em que extensão as últimas se aproximam ou se afastam do primeiro:
“Para a consideração científica que se ocupa com a construção de tipos, todas as conexões de sentido irracionais do comportamento…que influem sobre a investigação são investigadas e expostas, de maneira mais clara, como ‘desvios’ de um curso construído dessa ação no qual ela é orientada de maneira puramente racional pelo seu fim. Na explicação de um ‘pânico financeiro’, por exemplo, é conveniente averiguar primeiro como se teria processado a ação sem influência de afetos irracionais, para registrar depois aqueles componentes irracionais como perturbações” (Ibid.:5).
Pensemos em uma pesquisa sociológica sobre o comportamento eleitoral. A cientista social orientada por Weber tem interesse em compreender-e-explicar as escolhas de voto de uma parcela da população que depende, por motivos socioeconômicos, do uso frequente de sistemas públicos de educação e saúde. Com base em um modelo de ação racional com relação a fins, ela postula inicialmente, então, que os membros dessa população tenderão a votar em um candidato que proponha não a dissolução, mas o fortalecimento daqueles sistemas estatais. Sublinhe-se que a hipótese não deriva de uma posição ético-política da própria pesquisadora, mas de um palpite quanto ao que significaria, na situação dos eleitores em mira, um voto racionalmente autointeressado (tal qual, digamos, o do empresário que vota em um defensor de isenções tributárias para o seu setor de atuação). Uma vez de posse da hipótese, no entanto, a cientista social tem acesso a informações empíricas de que vários dos eleitores estudados não votaram segundo o que predizia aquele palpite fundado em um modelo racional-instrumental. Em vez de brigar com os dados para ajustá-los à sua hipótese inicial, a pesquisadora weberiana irá, então, à cata de fatores que possam explicar os “desvios” em face da conduta esperada. A procura de tais fatores pode se dirigir, assim, a aspectos daqueles outros tipos de ação social conceituados pela sociologia compreensiva de Weber, como a ação racional com relação a valores (p.ex., o indivíduo, um leitor apaixonado de Hayek, Friedman e Nozick, tem um compromisso valorativo com uma filosofia política antiestatista, mesmo quando ela vai na contramão de seus supostos interesses particulares), a ação afetiva (p.ex., a intensa identificação emocional com um candidato que ele considera mais carismático) e a ação tradicional (p.ex., a confiança em sua tradição familiar, que recomenda o voto sempre em certo partido independentemente dos conteúdos mutáveis de suas propostas).
Como diretriz metodológica, o postulado inicial da racionalidade instrumental dos agentes poderia transmitir a errônea impressão de que Weber diminui a importância empírica de outros tipos de ação, como a ação afetiva e a ação tradicional, ao situá-las na “fronteira da ação com sentido” (2000: 4). O próprio homem afirma, contudo, que o tipo ideal da ação racional com relação a fins exagera deliberadamente o grau em que os motores subjetivos da conduta social são nítidos e explícitos na consciência do agente:
“…a construção de uma ação orientada pelo fim de maneira estritamente racional serve…à Sociologia como tipo (‘tipo ideal’). Permite compreender a ação real, influenciada por irracionalidades de toda espécie (afetos, erros), como ´desvio’ do desenrolar a ser esperado no caso de um comportamento puramente racional. Nessa medida, e somente por motivo de conveniência metodológica, o método da Sociologia Compreensiva é ‘ racionalista’. No entanto, é claro que esse procedimento não deve ser interpretado como preconceito racionalista da Sociologia, mas apenas como recurso metodológico. Não se pode, portanto, imputar-lhe a crença em uma predominância efetiva do racional sobre a vida. Pois nada pretende dizer sobre a medida em que, na realidade, ponderações racionais da relação entre meios e fins determinam ou não as ações efetivas. (Não se pode negar, de modo algum, o perigo de interpretações racionalistas no lugar errado. Toda experiência confirma, infelizmente, sua existência)” (Ibid.: 5).
A passagem torna mais compreensível, espero, uma constatação estranha ao primeiro relance – a saber, o fato de que a ação tradicional, tipo que o autor situa “no limiar da ação significativa”, é o mais achegado à maior parte das condutas humanas ao longo da história:
“A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu ‘sentido visado’. O agente mais o ‘sente’ de forma indeterminada do que o sabe ou tem ‘clara ideia’ dele; na maioria dos casos, age instintiva ou habitualmente. […] Uma ação determinada pelo sentido…claramente e com plena consciência…é, na realidade, apenas um caso limite. Toda consideração histórica e sociológica tem de ter em conta esse fato ao analisar a realidade. Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos mediante a classificação do possível ‘sentido subjetivo’…como se a ação, seu decorrer real, se orientasse conscientemente por um sentido. Sempre que se trata da consideração da realidade concreta, tem de ter em conta a distância entre esta e a construção hipotética, averiguando a natureza e a medida desta distância” (Ibid.: 13).
Em mais de uma ocasião, Weber nota também que os sentidos que o agente reconhece conscientemente como motores de sua ação podem ser formações defensivas que mascaram, para ele próprio, os motivos reais de sua conduta: “em muitos casos, supostos ‘motivos’ e ‘repressões’…ocultam ao próprio agente o nexo real da orientação de sua ação”. Nestes casos, em vez de delegar o trabalho aos psicanalistas, a Sociologia assume para si “a tarefa de averiguar essa conexão e fixá-la pela interpretação, ainda que não tenha sido elevada à consciência ou, o que se aplica à maior parte dos casos, não o tenha sido plenamente” (Ibid.: 7). O autor admite, ademais, que agentes concretos podem atuar a partir de motores subjetivos internamente conflitantes entre si (p.ex., um indivíduo devoto experimenta uma luta interior entre um impulso libidinoso e um compromisso valorativo com a castidade). Finalmente, Weber lembra que condutas exteriormente similares podem resultar de motivações subjetivas distintas – por exemplo, o engajamento de dois agentes no mesmo culto religioso pode derivar de intensa devoção para um e de um cálculo cínico para outro.
Cenas do próximo capítulo
No próximo post desta série-verbete, exploraremos as maneiras pelas quais Weber trata dos motores subjetivos da ação social em seus estudos histórico-sociológicos. Devotaremos uma atenção especial ao seu famoso argumento quanto à “afinidade eletiva” entre a ética da vocação do “protestantismo ascético”, de um lado, e o “espírito do capitalismo” moderno, de outro. Ao retornarmos a essa tese clássica, mostraremos que, mesmo quando Weber lida com a racionalização instrumental como tendência-chave da modernidade no Ocidente, ele continua a se mostrar excepcionalmente sensível ao papel dos hábitos e dos afetos na conduta humana em sociedade. Finalmente, discutiremos também o que é propriamente “individualista” no “individualismo metodológico” de Weber, tal como ele aparece não apenas nos seus escritos analíticos mais gerais, mas também nas suas investigações de processos sócio-históricos concretos.
Nos vemos lá, se você quiser e o destino permitir.
Aqui está um concerto para felino, piano e orquestra:
Referências
MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
SCHLUCHTER, Wolfgang. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.
SCHÜTZ, Alfred. Phenomenology of the social world. Evanston: Northwestern University Press, 1972.
SELL, Carlos Eduardo. “O nascimento da sociologia weberiana: ‘Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva’ 100 anos depois”. XVI Congresso Brasileiro de Sociologia, GT 34: Teoria Sociológica, 2013a.
________Max Weber e a racionalização da vida. Petrópolis: Vozes, 2013b.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Vol.1. Brasília: UnB, 2000.
________Metodologia das ciências sociais: parte 1. São Paulo/Campinas, Cortez/Unicamp, 2001a.
________Metodologia das ciências sociais: parte 2. São Paulo/Campinas, Cortez/Unicamp, 2001b.
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