
Por Andrea Pavoni (Dinâmia’CET, ISCTE-IUL) e Simone Tulumello (Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais)
Perguntar “o que é a violência urbana” pode parecer, logo, uma tarefa redundante. Afinal, não se encontra a violência urbana a todo lado, nas silenciosas cidades de fronteira como nos caóticos centros urbanos, no florescer de favelas, bairros informais e condomínios fechados, como no escuro dos becos, na agitação de protestos, nos bairros em gentrificação e nos que estão a ser abandonados, nas formas futurísticas dos centros direcionais, nas verdes avenidas residenciais e nos bairros sociais estigmatizados? Pela variedade e multiplicidade de formas com as quais a violência urbana é debatida, apropriada, contada, dramatizada, produzida e reproduzida no mundo urbano contemporâneo, a tentativa de enclausura-la com uma definição coerente pode parecer, como frisou a Sophie Body-Gendrot, “uma tarefa utópica, se não impossível” – e, talvez, até supérflua. Não deveríamos antes de mais considerar a realidade concreta da violência urbana? Sem dúvida. Porém, nos parece que um esforço de definição não seja incompatível com essa perspetiva – pelo contrário, talvez seja uma premissa necessária. É com esse esforço que temos recentemente engajado, ao propor algumas pistas para uma teorização da violência urbana em um artigo recentemente publicado em Progress in Human Geography.
Se considerarmos as tentativas feitas de encontrar um núcleo comum nas discussões sobre a violência urbana (e nomeadamente os trabalhos de Robert Muggah e Sebastian Saborio), parecem faltar seja uma definição unânime, seja uma robusta teorização do conceito. Será que importa? Se assumirmos os conceitos como reflexos passivos da realidade, talvez não. Porém, se os considerarmos como respostas estratégicas a problemas existentes, então, sim, importa. Ou seja, importa se considerarmos uma definição como algo mais do que a simples identificação de rígidos limites semânticos e focarmos, ao invés, na mobilização dinâmica dos conceitos, se rastrearmos os territórios problemáticos para quais os conceitos nos levam.
Mas qual é, então, o principal problema que encontramos com as definições existentes de violência urbana? É a forma com que essas definições tomam os conceitos de “urbano” e de “violência” como factos dados, ou seja, sem os problematizar. Por um lado, o termo “urbano” é utilizado, de forma acrítica, como simples sinônimo dum lugar assumido, estático e delimitado: ou seja a cidade. Já em relação à cidade, a violência, por seu lado, é considerada ser uma anomalia, um problema exógeno que precisa ser extirpado.
Conseguintemente, o discurso, acadêmico, público e político, acaba por ser dominado pela simples equação “violência urbana” = “crime e a violência que acontecem na cidade”. Além de um problema teórico, nos parece que a falta de discussões conceitualmente rigorosas sobre “o que é a violência urbana” tenha preocupantes implicações políticas. O discurso sobre “violência que acontece na cidade” é projetado face ao imaginário de uma “cidade sem violência”, assumida como o objetivo teórico das políticas de segurança. Como demonstrado por muita investigação crítica, acontece que a máquina da segurança, mobilizada em nome desse imaginário, acabe por justificar, legitimar e reproduzir mais violência – violência de estado, nesse caso – da que pretende prevenir.
Sem dúvida, a conceitualização da violência como um fator exógeno à sociedade é um eixo, embora implícito, orientador do pensamento político clássico ocidental, como podemos observar na convergência das teorias fundadoras do pensamento iluminista e liberal (Rousseau, Hobbes, Locke, Bentham etc.) no sentido de intender a civilização como um processo inarrestável que, por mão do monopólio institucional da força (seja o Leviatão, a Vontade Geral, a Lei), iria gradualmente expungir a violência (direita e física) do socius.
Contra as definições redutivas, disciplinas como a filosofia, a antropologia e a psicanálise, entre muitas outras, nos relembram que a violência é bem mais do que um evento pontual, traumático e observável. A violência se encontra encaixada nas estruturas sociopolíticas, legais e econômicas, e até nas infraestruturas físicas; a violência é invisibilizada e normalizada por ideologias e representações, mantida e incorporada em atmosferas afetivas de opressão. A violência existe e persiste, no espaço e no tempo, onde parece estar ausente, onde passa despercebida, quando é percebida como algo passado – na violência colonial que continua a oprimir os corpos racializados, na violência patriarcal que assombra subjetividades femininas e non-normativas, na violência do estigma contra espaços e comunidades urbanas.
Embora esta complexidade tenha sido longamente explorada e desvendada – pensamos nos trabalhos de Walter Benjamin, Frantz Fanon, Jacques Derrida, Silvia Federici, Roberto Esposito, Loïc Wacquant e muitos mais – a nossa revisão mostrou que, no campo da violência urbana, as coisas são bastante diferentes. Para chegar a essa conclusão, mapeamos o discurso existente com uma perspetiva analítica e sistemática, utilizando as revisões existentes e complementando-lhas, misturando pesquisa qualitativa e instrumentos da cientometria. O que concluímos é que, com pouquíssimas exceções (especialmente os trabalhos do Dennis Rodgers), praticamente todos os trabalhos acadêmicos que têm engajado diretamente com a noção de violência urbana acabam por não problematiza-la. Em particular, acontece que o rótulo de “urbano” seja comummente utilizado como um simples adjetivo, a localização do espaço onde essa violência acontece. Em outras palavras, o termo violência urbana é, quase unanimemente, utilizado por abranger uma variedade de fenômenos de violência direta, claramente identificável e estatisticamente mensurável (nomeadamente, os crimes) que acontecem “no espaço urbano”. De consequência, as definições de violência urbana que encontramos acabam por tornar-se redundantes, ou seja, não expressam diferencias qualitativas em contraste a outras formas e definições de violências; ou reducionistas, ou seja, não dão conta das dimensões invisíveis, silenciosas e sistêmicas da violência.

Como nos relembram Bruce Lawrence e Aisha Karim na introdução de On Violence: A Reader, a violência, “nunca pode ser percepcionada externamente à sua própria estrutura, que opera em múltiplos níveis – histórico, retórico e prático’: é na interação entre estes níveis que a violência se reproduz. Ao mesmo tempo, o urbano, é bem mais do que um simples meio físico (ou seja, a cidade). Como ricamente debatido em sociologia, geografia e economia política, entre outras disciplinas, o urbano é também uma condição social e existencial (a vida urbana), um processo histórico e estrutural (o processo capitalista de urbanização), e até uma coexistência ontológica e afetiva. Para ultrapassar os limites duma definição simplista, e ao mesmo tempo redundante, precisamos começar por recuperar o “urbano” do seu reducionismo, e voltar a dar-lhe o seu valor ontológico enquanto processo diretamente constitutivo dá violência (urbana). Além disso, também precisamos perceber o papel jogado pela suposição da natura exógena da violência em respeito ao urbano no influenciar a emergência, percepção e governação da violência urbana. Sem dúvida, a produção da violência urbana está dependente das relações de poder existentes – e nomeadamente, na diferente capacidade existente entre os que têm o poder de definir o que é violência urbana, e os que são sujeitos desta própria definição. Ainda mais, a produção da violência urbana depende profundamente de históricas conceitualizações da “cidade sem violência” – em outras palavras, depende do imaginário de segurança que surge em conjunto com a forma moderna do urbano, ou seja, o processo de urbanização. O valor estratégico da noção de “urbanização planetária” veio em nossa ajuda no desenvolvimento deste argumento. Originalmente idealizada por Henri Lefebvre e recentemente popularizada por Neil Brenner e Cristian Schmid em uma série de trabalhos muito debatidos, a tese da urbanização planetária sugere de compreender o urbano como um processo geográfica e historicamente contingente que acabou por ultrapassar a “cidade” (e, então, uma rígida separação entre urbano e rural), até chegar à escala planetária. Estamos conscientes de que esta tese possa produzir generalizações problemáticas, especialmente pela sua tendência a priorizar a dimensão político-econômica enquanto lente privilegiada para abordar o urbano – sem dúvida, concordamos pelo menos com algumas das criticas que foram desenvolvidas neste sentido. Porém, nos parece que a tese da urbanização planetária se torne particularmente útil do ponto de vista do seu ataque a um outra tese, à da “época urbana” (urban age). Apregoada por varias instituições internacionais, a “época urbana” se tornou numa “meta-narrativa difusa” (nas palavras de Brenner e Schmid) que encaixa, implícita ou explicitamente, o discurso urbano, apresentando a urbanização como um movimento dramático de pessoas do “rural” para o “urbano”, uma dicotomia convenientemente naturalizada para que as estatísticas quantitativas possam “compreender” o processo.
Nós parece que seja exatamente uma semelhante meta-narrativa, redutora na mesma medida, a orientar o discurso sobre a violência: isto é, o entendimento da violência urbana enquanto acontecimento naturalmente pertente a a um espaço específico e delimitado (a cidade), e observável através de estatísticas precisas (sobretudo os homicídios), assim permitindo traçar hierarquias de cidades “violentas” ao nível global. Noutras palavras, ao ser a violência na cidade assumida como consequência congênita da coabitação urbana, o aumento da violência urbana se assume como consequência natural do próprio crescimento urbano. É exatamente em contraste com este assunto que o argumento de Brenner e Schmid manifesta a sua relevância, e com este também a sugestão de James Tyner e Joshua Inwood para não assumir a violência como trans-histórica e trans-geográfica, e ao invés assumi-la por ser “produzida por, e por sua vez produtora de, modos de produção social e espacialmente contingentes”. O nosso propósito é pôr estas sugestões em diálogo, assim desenvolvendo uma compreensão processual da violência e do urbano (enquanto urbanização), e finalmente construindo um conceito de violência urbana capaz de ultrapassar preconceitos estáticos, estatísticos, e cidade-cêntricos. A propósito, frisamos a importância de desligar o nosso empenho teórico da simples enfatização das propriedades, por muitos consideradas únicas, das megalópoles do Sul Global, objeto de análise preferido nos estudos sobre violência urbana. Embora uma superficial revisão das estatísticas globais sobre crime iria apontar exatamente essas metrópoles, óbvios riscos resultam da redução da violência urbana a um problema específico das “ferozes” o “frágeis” cidades do Sul, nomeadamente, a desconsideração da dependência da violência de processos globais de urbanização, bem como de relações de desenvolvimento desigual e (pós-)colonização. Sem dúvida, uma abordagem estatística e estática sugere que há menos violência nas cidades do Ocidente; porém ao considerar o processo de urbanização podemos reparar como essas cidades participam ativamente da produção da violência urbana pela sua participação, em múltiplas escalas, no processo global de urbanização capitalista.
Em luz desta manobra conceitual, a violência urbana deixa de ser uma propriedade natural de certos lugares (os que chamamos comummente de cidade), para se tornar um processo histórica e geograficamente específico, nomeadamente uma categoria emergente das deslocações e relocações do processo de urbanização capitalista. Um processo, este, jamais homogêneo, mas sempre materializado através relações socio-históricas com natureza contingente e concreta. Por isso, precisamos de uma lente bifocal, para podermos apontar simultaneamente à dimensão planetária do processo de urbanização e às formas materiais e afetivas (as “atmosferas”) emergentes no espaço urbano.
Por essa razão, na segunda parte do artigo nos inspiramos pelos entendimentos resultantes das “viradas” materiais e afetivas da teoria urbana, e sobretudo o “pensamento atmosférico”, que nos estimula a ponderar nas formas pelas quais a violência da urbanização capitalista se localiza, moldando e sendo por sua vez moldada pela realidade material e afetiva da experiência urbana do cotidiano. Esta abordagem nos permite considerar as configurações emergentes (contingentes) e estratificadas (históricas) dos afetos, das emoções e dos sentimentos; bem como a sua atuação com objetivos políticos, económicos o securitários. Em contraste com o argumento, talvez apressado, de Neil Brenner, David Madden e David Wachsmuth, enfocar estas “montagens” afetivas não significa reduzir o urbano a uma superfície de-historicizada e indiferenciada – pelo contrário, nos permite afinar a investigação da urbanização capitalista, engajando com processos planetários e abstratos, e, ao mesmo tempo, com relações mais-que-humanas e com as formas em que esses processos podem ser percebidos ao nível dos corpos.
Desta forma, o urbano pode ser conceptualizado como o contexto da violência, um verdadeiro pano de fundo que a torna manifesta e vivida como evento; e ao mesmo tempo como o processo constitutivo da própria violência. Assim, a violência urbana se transforma em um conceito estratégico emergente da interseção do estrutural, do representacional e do afetivo. Em outras palavras, a violência urbana se torna em um quando que nos permite estudar a dimensão planetária do (violento) processo de urbanização capitalista e, contemporaneamente, as formas especificas nas quais este mesmo processo se materializa – e é então percebido, experienciado e vivido – no urbano.
Ao mesmo tempo, esta complexa configuração é influenciada, até constituída, pelas maneiras de gerir e “governar” a violência no contexto das políticas urbanas contemporâneas. Como argumentamos na parte final do artigo, o quadro complexivo das lógicas de segurança oferece uma perspetiva necessária para explorar a complexa interação que produz, enquadra e reproduz a violência urbana. O nosso assunto é que as manifestações da violência urbana têm sempre uma contraparte ideal, nomeadamente, a idealização dum espaço urbano purificado da violência. Muito mais de que uma simples oposição dialética, esta relação é historicamente situada e pode localizar-se exatamente com a emergência da urbanização capitalista.
Em linha com as reflexões de Michel Foucault nas palestras Segurança, Território, População, emerge no contexto da urbanização capitalista uma específica relação entre violência e segurança: trata-se de uma série de discursos, práticas e políticas de segurança que, ao enquadrar a violência urbana como uma anomalia exógena que deve ser erradicada, geram as difusas atmosferas de medo que caraterizam o espaço urbano contemporâneo, com efeitos assimétricos sobre os corpos, espaços e práticas constitutivas do urbano. De fato, uma vez que se constitui a “extirpação da violência” como objetivo normativo, produz-se um efeito normalizador do social, assim que as variações à norma acabam por ser destacadas enquanto violações, segundo uma espiral sem fim. Não é tanto sublinhar a impossibilidade lógica de eliminar verdadeiramente a violência no futuro que nos interessa, quanto os efeitos materiais e afetivos que esta projeção produz no presente. O espetáculo da segurança, parafraseando Debord, não é simplesmente uma ideologia que precisamos desconstruir, mas também uma “Weltanschauung tornada realidade, translada no domínio material– uma visão do mundo transformada em força material”. Nomeadamente: a atmosfera de medo que por sua vez torna concreta (e justifica) a violência no presente. Neste sentido, os (crescentes) sentimentos de insegurança na cidade contemporânea, mais do que ser julgados pela sua racionalidade ou irracionalidade em comparação ao risco real de vitimização, poderiam ser lidos enquanto expressões das atmosferas de medo, produzidas, por um lado, pelas desigualdades estruturais da urbanização capitalista e, pelo outro, pelo esforço neoliberal, continuo e ilusório para a securitização. O esforço de confinar ou neutralizar a violência (direta) leva à proliferação de formas de violência estrutural e cultural, que se materializam violentamente nas atmosferas urbanas da cidade.
Explorar essas atmosferas de medo, nos parece, significa investigar as dimensões afetivas da violência urbana, assim adicionando uma dimensão constitutiva ao estudo das dimensões estruturais e ideológicas.
Para concluir, propomos três deslocamentos conceptuais, três pistas para uma teoria crítica da violência urbana. Primeiro: abandonar a “violência na cidade” em favor de uma compreensão da violência em/de/através uma época de urbanização capitalista, e justamente planetária. Segundo: ultrapassar o pensamento dicotómico sobre a relação entre violência e segurança – ou seja a compreensão da segunda como ausência da primeira. Procurar uma compreensão universal da violência urbana e, ao mesmo tempo, “soluções” universais para ela é uma tarefa cheia de perigos. Precisamos, ao invés, procurar compreender as relações contingentes a condições urbanas em mudança e diferentes interpretações da vida urbana – e, para tal, integrar a análise econômico política das dimensões estruturais da violência urbana com explorações afetivas da sua experiência cotidiana. Terceiro: focar a nossa atenção nas condições de limiar (de visibilidade) alem das quais uma cidade é compreendida, representada, e percebida, como violenta. Desta forma, a violência urbana nos aparece como um Janus Bifrons: uma atmosfera afetiva de violência – nomeadamente, o que torna a violência “visível” e “perceptível” como resultado da lente especifica que enquadra a violência, ou seja, a segurança; e ao mesmo tempo um processo especifico (nomeadamente, a urbanização capitalista) que produz as condições pela proliferação de formas concretas de violência.
A nossa proposta central, então, é a necessidade de desarticular violência urbana e sentimentos de segurança a ela associados. Isso, seja dito, não significa minimizar a violência, e ainda menos render-se à sua inevitabilidade; significa, sim, rejeitar hipóteses problemáticas – por exemplo, uma ideia de violência como anomalia exógena, como algo calculável e racional e então manejável por meio de cálculos custo-benefício – e projeções teleológicas. O esforço para uma sociedade sem violência acaba por produzir mais insegurança (embora de forma estrutural e simbólica, mais frequentemente do que direta), exatamente da mesma forma em que o esforço pela segurança absoluta acaba por produzir insegurança e medo. Se aceitamos que a violência urbana está inextricavelmente entrelaçada com o complexo de formas de poder, práticas e representações das ideologias neoliberais de segurança, então precisamos reconhecer a necessidade de aceitar a incerteza e – por perturbador que isso seja – a violência como uma componente inevitável, embora problemática, da vida urbana.
Valeria a pena dar sequência a esta discussão com uma reflexão sobre a noção de Mal em Bataille
Republicou isso em Educação Global e Diversidade Cultural.
Republicou isso em Simone Tulumello.