
Por Ábia Marpin (Uerj)
O sol do meio dia arranca fumaças das pedras e relâmpagos dos
metais. Alvoroço no porto: os galeões trouxeram de Sevilha a
artilharia pesada para a Fortaleza de São Domingos; o prefeito,
Fernández de Oviedo, dirige o transporte de colubrimas e
canhões. A golpe de chibata, os negros arrastam a carga a todo
vapor. Rangem os carros, sufocados pelos pesos dos ferros e
bronzes, e através do torvelinho outros escravos vão e vem
jogando caldeirões de água contra o fogo que brota dos eixos
aquecidos.
Em meio da zoeira e da gritaria, uma moça índia anda em busca
de seu amo. Tem a pele coberta de bolhas. Cada passo é um
triunfo e a pouca roupa que usa atormenta a sua pele
queimada. Durante a noite e meio dia, esta moça suportou, de
alarido em alarido, os ardores do ácido. Ela mesma assou as
raízes de guao e esfregou-as entre as mãos até convertê-las em
pasta. Untou-se inteira de guao, da raiz dos cabelos até os
dedos dos pés, porque o guao abrasa a pele e limpa a cor, e
assim transforma as índias e negras em brancas damas de
Castilha.
– Me reconhece, senhor?
Oviedo afasta-a com um empurrão; mas a moça insiste, com
seu fio de voz, agarrada ao amo como sombra, enquanto Oviedo
corre gritando ordens aos capatazes.
– Sabe quem sou?
A moça cai no chão e do chão continua perguntando:
– Senhor, senhor, não sabe quem sou?
Eduardo Galeano
Algumas pessoas que pensam, teorizam e publicam sobre o racismo e/ou a modernidade já apontaram a relação mais que fortuita entre esses fenômenos. Junto-me a esse coro com pensadores e pensadoras como o argentino Walter Mignolo (2011), o britânico Paul Gilroy (2007, 2012), o brasileiro Sérgio Costa (2002b, 2006), a boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2010, 2015) e a também argentina María Lugones (2008), e, assim, uso esse vínculo como uma guia para a nossa trilha da compreensão disso que estou tomando como a experiência da negritude.
Além de pensar o processo de definição da alteridade na modernidade, pode-se dizer que essas pessoas têm em comum um enquadramento anticolonial mais ou menos manifesto. Essa perspectiva analítica servirá também como uma referência, no entanto a nova coordenada não pretende ser uma digressão em relação ao indícios do realismo crítico, pois estamos trabalhando na formulação de um sistema que vislumbra reintroduzir a história no debate que se abriu a partir de seus aportes metodológicos, indo de suas linhas do tempo filosófico até as cadeias temporais da modernidade e, veremos, da colonialidade; mudar a escala da discussão, antes sobre as estruturas, agora sobre a experiência das pessoas afetadas por elas; e demonstrar as inter-relações entre os mecanismos gerativos a partir de imagens mais corporificadas desses outros do Ocidente.
Em seguida, arrisco-me em uma incursão psicanalítica no rastro deixado pela alegoria hegeliana da relação entre Senhor e Escravo, guiada pelas vozes do francês de origem russa Alex Kojève (2002[1947]), da estadunidense Judith Butler (2012[1987]) e de outro francês, nascido na Martinica, Frantz Fanon (2008[1952]), sempre atenta aos elementos ideológicos recalcados, mas nem por isso menos eficientes, da racialização (e hierarquização) da alteridade.
Para além de uma consequência casual, a modernidade e a sua globalização sofisticaram e seguem sofisticando as técnicas da violência racista – fundamental para a expansão do modo de vida ocidental –, e tem nesse mesmo racismo um de seus principais dispositivos bélicos para a definição, radicalização e “conquista” da alteridade.
Em O lado mais sombrio da modernidade ocidental: Futuros globais, opções decoloniais[i] (2011), Walter Mignolo sustenta que a colonialidade é a contraparte clandestina e uma condição necessária para o estabelecimento da modernidade global de matriz monocêntrica e ocidental.
A colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada. O conceito como empregado aqui, e pelo coletivo modernidade/colonialidade, não pretende ser um conceito totalitário, mas um conceito que especifica um projeto particular: o da ideia da modernidade e do seu lado constitutivo e mais sombrio, a colonialidade, que surgiu com a história das invasões europeias de Abya Yala, Tawantinsuyu e Anahuac, com a formação das Américas e do Caribe e o tráfico maciço de africanos escravizados (Mignolo, 2011, p. 2).
Este projeto dependeu (e depende ainda) material e ideologicamente do arsenal racista, tanto ou mais do que de armas de fogo. Materialmente, tomando o corpo do Outro como fonte da força de trabalho e como algo alienável e franqueável, a colonialidade se escorou na mão de obra das pessoas racializadas, desumanizadas e escravizadas (nessa ordem), e com isso foi capaz de somar recursos suficientes para consumar suas revoluções. Ideologicamente, tomando o corpo do Outro como diferença ontológica e insuficiente como marca da humanidade compartilhada, a modernidade se escorou no recalque e na projeção da sua própria pulsão bárbara pela violência sanguinária, e com isso legitimou a crueldade como prática, omitindo-a, dissimulando-a e/ou eufemizando-a em seu discurso “civilizatório”.
Mignolo, a partir do conceito do intelectual peruano Aníbal Quijano, fala de uma matriz colonial de poder (MCP), que se ampara em quatro domínios, do controle: da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade; sustentados pelos fundamentos patriarcal e racial do conhecimento, que é “a enunciação na qual a ordem mundial é legitimada” (Idem, ibidem, p. 8). Ou seja, a colonização que controla e racializa os corpos reverbera até o corpus de conhecimento sedimentado como válido. Sobre isso, ele segue:
O conhecimento na MCP era uma faca de dois gumes: por um lado, era a mediação para a ontologia do mundo, assim como um modo de ser no mundo (a subjetividade); por outro lado, uma vez que o conhecimento era concebido imperialmente como o verdadeiro conhecimento, se tornou uma mercadoria para ser exportada àqueles cujo conhecimento era alternativo ou não moderno, segundo a teologia cristã e, depois, a filosofia secular e as ciências (Idem, ibidem, p. 13).
Para o Coletivo Modernidade/Colonialidade, esses fundamentos e controles da MCP operam por meio de alguns nós histórico-estruturais, dos quais, segundo sua enumeração, o primeiro é “uma formação racial global, cujo ponto de origem foi a Espanha cristã na sua classificação dupla e simultânea: os mouros e os judeus da Europa, e os índios e os africanos do outro lado do Atlântico” (Idem, ibidem, p. 17). De uma lista de doze, pelo menos mais cinco nós nos ajudam a sublinhar a função do racismo como dispositivo bélico para o projeto expansionista da modernidade: uma hierarquia racial/étnica global; uma hierarquia estética; uma hierarquia epistêmica; uma hierarquia linguística; e, por fim, uma concepção particular do sujeito moderno, transformado em molde e modelo para o humano e para a humanidade, inclusive como bitola para a mensuração e classificação racial. A partir desses nós, que serviram de critérios binários de inclusão/exclusão, clandestinamente o estatuto da dignidade humana estava sendo estabelecido:
O que aconteceu entre (…) o século XVI e o século XXI? A historiadora Karen Armstrong – olhando para a história do Ocidente a partir da perspectiva de uma historiadora do Islã – destacou dois pontos cruciais. (…) A primeira transformação, segundo Armstrong, foi, portanto, a mudança radical no domínio da economia que permitiu ao Ocidente “reproduzir seus recursos indefinidamente” e é geralmente associado ao colonialismo. A segunda transformação, epistemológica, é geralmente associada ao Renascimento Europeu. Epistemológico aqui deve ser estendido para abranger tanto ciência/conhecimento quanto artes/significado. Armstrong localiza a transformação no domínio do conhecimento no século XVI, quando os europeus “conseguiram uma revolução científica que lhes deu maior controle sobre o meio ambiente do que qualquer um havia alcançado antes”. Sem dúvida, Armstrong está certa em destacar a relevância de um novo tipo de economia (capitalismo) e a revolução científica. Ambos se encaixam e correspondem à retórica celebrativa da modernidade – isto é, a retórica da salvação e da novidade, baseada em realizações europeias durante o Renascimento. Existe, no entanto, uma dimensão oculta de eventos que aconteciam ao mesmo tempo, tanto na esfera da economia, quanto na esfera do conhecimento: a dispensabilidade (ou descartabilidade) da vida humana e da vida em geral desde a Revolução Industrial até o século XXI. (…) Assim, ocultadas por trás da retórica da modernidade, práticas econômicas dispensavam vidas humanas, e o conhecimento justificava o racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram naturalmente consideradas dispensáveis. (Idem, ibidem, p. 5-6 – grifos no original)
Assim sendo, as questões que seguem tentam reconhecer os avanços no debate e atenuar o tom de denúncia dessas reflexões, para incluir no quadro de análise alguns elementos constitutivos da identidade e outros dos processos de subjetivação – incontornáveis quando consideramos a experiência das pessoas. Se nos vale considerar os caminhos interpretativos que se abrem a partir da matriz colonial de poder, também é importante levar em conta que o poder não é sua exclusividade, que há forças de ação e de contenção que se desdobram em resposta a seus estímulos e não emanam necessariamente dela (como o realismo crítico não permitiria ignorar ou omitir). Por isso, proponho que seu quarto domínio, o do conhecimento/subjetividade, sofra uma cisão e que a subjetividade que figura lá ganhe verossimilhança com o que vemos quando olhamos para as experiências de sociabilidade que se criam em torno da música negra produzida nos territórios afetivos situados nas periferias de Maceió (AL).
Como dito há pouco, há no trabalho de Walter Mignolo a premissa (ou nó histórico-estrutural) de um sujeito moderno, modelo restrito e restritivo que dá subsídios para a colonialidade do poder. É por essa razão que nesse esquema a conflação da subjetividade com o conhecimento faz sentido, pois foi por meio desse conhecimento (primeiro vinculado à teologia, depois à filosofia secular e por fim ao patriarcado) que o modelo normativo de humanidade foi criado e é atualizado – sempre que necessário para que continue cumprindo a sua função na MCP. Mas, se os indícios apontam muito claramente para esse mecanismo como uma tendência que afeta o processo de subjetivação na modernidade/colonialidade, o que deveria ser um acento se torna um hiato – pois há na síntese uma supressão crucial, que esconde o que as pessoas fizeram e fazem com, a partir e/ou apesar dessa constrição.
Para desamarrá-la, a subjetividade aqui vai ser tomada como um domínio específico, que vai apontar na direção de uma noção muito cara à análise aqui desenvolvida, a da experiência enquanto conceito-chave e um dos aspectos capitais da identidade, em especial naquela que toma o marcador racial como referência.
A seguir, reproduzo o esquema da MCP como Walter Mignolo a apresenta em seu livro (2011), junto a uma versão que representa graficamente a proposta que se desenvolve no encontro entre os domínios da MCP e os domínios da realidade segundo Roy Bhaskar (2008).

Aqui não serão ignoradas as pressões da atuação do modelo de um sujeito moderno homólogo à humanidade, mas na presente (re)formulação da visualização esquemática da matriz colonial do poder, a subjetividade é devolvida às pessoas, que a elaboram a partir de suas próprias experiências, enquanto que aquela tal como interpretada na MCP vira uma espécie de ímã que estabelece um campo de forças magnéticas que podem, simultaneamente, atrair ou repelir, ou seja, exercer tendências tanto na direção do polo do modelo de sujeito “moderno”, como um mecanismo recursivo para pessoas com mais similaridades aparentes com ele, quanto na direção de seu polo oposto, o do modelo de sujeito ante/anti-“moderno”, como um mecanismo restritivo para pessoas que divergem mais e mais aparentemente das normas da modernidade/colonialidade.
A subjetividade aqui é essa elaboração contínua das experiências, representada graficamente no Quadro 3. Tais experiências, no que lhes tangem, são atravessadas pelos quatro domínios da MCP, aqui reordenados e tomados como mecanismos gerativos, enquanto vetores de força de três tipos que emanam da matriz e em uma espécie de rede que serve de piso, como uma base onde as pessoas apoiam e projetam suas narrativas identitárias, sua identidade constantemente revista e atualizada.
O primeiro tipo de vetor, aqui representado pelas setas em linha reta, corresponde a dois domínios de lá, que são a raça, o gênero e a sexualidade (aqui desmembrados em consideração ao grau de controle e violência desse mecanismo gerativo, que não só intensifica, mas também é independente e superpõe aquele do gênero). Esses vetores exercem forças tanto recursivas quanto restritivas, tanto em um sentido, como em seu oposto.
O segundo tipo de vetor é bem similar ao primeiro. É o domínio da economia, que difere do anterior sobretudo porque em vez de ser representado por linhas retilíneas segue em uma trajetória de padrão em espiral, para que sinalize o fato de que o marcador não é somático, mas sim formulado a partir dos recursos materiais, financeiros e patrimoniais, herdados e/ou acumulados ao longo da vida.
O terceiro tipo aqui é a autoridade lá, que impele para a adequação à normalidade e à normatividade da MCP, e é mais potente e atuante na proporção em que as pessoas resistem a essa limitação, ou seja, quanto mais a subjetividade vai no sentido contrário a este vetor, mas ela sentirá seus efeitos.
Por fim, o conhecimento, aqui expresso por meio de uma rede esquadriada e formatadora, que serve de base para o processo de subjetivação, e que quanto mais densa e fechada é sua trama, mais ela pode ser confundida com o próprio chão, com a materialidade que serve de suporte ao mundo real.
Em suma, no modelo inspirado pelo diálogo entre o realismo crítico e as teorias pós-coloniais, os mecanismos gerativos podem ser compreendidos como vetores hierarquizantes e, na maioria dos casos, bipolarizados no sentido preferencial da sujeição à MCP, como na pressão inconsciente e, em geral, involuntariamente aprendida para reconhecer, valorizar e reproduzir notas na escala musical tomada como convencional para cada contexto social – em sociedades afetadas pela modernidade/colonialidade vinda do “Ocidente”, a experiência estará sempre impelida a entrar no tom que a MCP dá para a ordenação dos mundos material e simbólico.
Além disso, podemos fazer ainda uma correspondência entre os domínios do realismo crítico de Bhaskar e aqueles da MCP: onde o que é tomado como o domínio do real de um lado, do outro é a própria matriz colonial do poder; o domínio atual equivale ao da subjetividade, acrescido das formulações propostas aqui, ou seja, levando em consideração a experiência das pessoas; e o domínio do empírico corresponde àquele do conhecimento.
Com esse novo enquadramento, podemos apreender porque a exclusão não pôde nem poderia ser total, pois a produção material da vida dependeu do trabalho desses Outros do Ocidente. Nesse sentido, Paul Gilroy faz jus à complexidade da discussão quando recupera as reflexões sobre essa condição de alienação radical entre o trabalho e as pessoas que o realizavam, tornando as uma presença indesejada mas necessária à manutenção do projeto das metrópoles “civilizadas”. Ele retoma esse argumento mencionado originalmente no conceito de dupla consciência do sujeito negro na modernidade de W. E. B. Du Bois, entre outros pensadores da negritude[ii].
Tal como elaborada por Paul Gilroy, a dupla consciência é um dos frutos de um ingresso estilhaçado na modernidade, que não prescindiu da presença objetiva, mas negou a dignidade e a subjetividade às pessoas negras – senão em uma condição antes ontológica, depois politicamente inferior. Esse antagonismo simbiótico, essa situação de congruência e contraste, municiou estas pessoas de uma perspectiva dupla e ambivalente, capaz de ver o avesso da costura da trama da modernidade; condição que desestabilizou o poder das promessas universalizantes de seus ideais humanistas, especialmente a partir do Iluminismo – o que antecipou alguns aspectos da modernidade na experiência das pessoas racializadas nesse processo, já que
Como é sabido, na Europa do Iluminismo, as categorias humanidade e sociedade não se estendiam aos povos não-ocidentais ou apenas formalmente, no sentido de que tal reconhecimento não tinha efeitos práticos. E, de qualquer forma, de acordo com a imagem organicista da totalidade, a parte regente, o cérebro do organismo total, era a Europa (Quijano, 1992, p. 18).
A fluidez, a hibridez, o cosmopolitismo são alguns dos aspectos intensificados na experiência dessas pessoas sujeitadas e/ou expostas ao trânsito transatlântico e às trocas culturais desse movimento. Tal circulação e as formas compostas que surgiram a partir dela, fizeram do oceano esse território em movimento que se tornou uma espécia de pátria, o lócus das pessoas negras na Diáspora colonial, o Atlântico Negro (Gilroy, 2012).
A dupla consciência emerge da simbiose infeliz entre três modos de pensar, ser e ver. O primeiro racialmente particularista, o segundo, nacionalista, porque deriva mais do estado-nação, no qual se encontram os ex-escravos, mas ainda-não-cidadãos, do que de sua aspiração por um estado-nação próprio. O terceiro é diaspórico ou hemisférico, as vezes global e ocasionalmente universalista. Este trio foi tecido em alguns padrões improváveis mas requintados no pensamento de Du Bois (Idem, ibidem, p. 249).
Subscrevendo e ampliando o escopo da análise de Gilroy, Sérgio Costa conecta esse Atlântico Negro à sua contraparte, o Atlântico Norte. Em Dois atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo (2006), ele faz um mergulho teórico de fôlego capaz de demonstrar as continuidades e complementaridades entre esses polos que se apresentam como antagônicos. Defendendo a importância do cosmopolitismo multicultural, em oposição à modernização ocidental autorreferenciada e homogeneizante, ele destaca a divisão metafórica entre Atlântico Norte, onde as nações quanto mais semelhantes mais modernas, e o Atlântico Negro, com uma perspectiva descentrada para o projeto de modernização – apoiado no debate sobre as reflexões de Habermas (cidadania mundial), Beck e Giddens (modernização reflexiva) de um lado, e nos estudos pós-coloniais, inclusive do próprio Gilroy e de Stuart Hall, do outro. Dessa intensificação e antecipação de aspectos modernos, Sérgio Costa destaca uma reflexividade característica das pessoas colonizadas:
De algum modo, essas sociedades (colonizadas) já eram “reflexivas” muito antes de se industrializarem. Os déficits analíticos da teoria da modernização reflexiva são particularmente graves quando se trata dos processos estudados nesse livro. Afinal, as ambivalências e dessincronias na história moderna, ausentes da narrativa gloriosa de Giddens e Beck, apresentam uma importância constitutiva para o Atlântico Negro. A diáspora se constituiu como o espaço da dupla consciência e os anti-racismos foram, desde os seus primórdios, um exercício de esperança cética, misto de aposta e dúvida – na nação, na cidadania, nos direitos humanos, na justiça (Costa, 2006, p. 220).
As pessoas marcadas racialmente tiveram que desenvolver uma capacidade de transitar e (re)existir ao encontro entre o racismo e a modernidade, que duplicando suas consciências, em polos incompatíveis e ainda assim coexistentes (externo/reiteradamente expulso plus interno/veladamente reintegrado)[iii], cria uma perspectiva ambivalente e fronteiriça, apta a pôr em xeque as promessas e expor os fracassos do projeto de globalização do Ocidente: “Nessas sociedades, a desconfiança nas instituições modernas sempre constituiu regra de conduta e imperativo de sobrevivência” (Idem, ibidem, p. 78).
Silvia Rivera Cusicanqui faz dois deslocamentos notáveis e originais que contribuem para alargar a compreensão desse encontro mais que contingente: um sobre as incongruências entre o discurso moderno da evolução civilizacional humanista e sua prática genocida das invasões colonizadoras; e o outro que abre frentes de reflexão para a dupla consciência das pessoas racializadas que estão situadas onde a miscigenação racial suplantou o antagonismo e a hibridez ganhou corpo.
Para o primeiro ponto, assim como Gilroy, Cusicanqui sugere desviar sistematicamente da textualidade escrita. Mas diferente dele, que escolhe a oralidade e a música, ela aponta as representações visuais enquanto reduto do pensamento da alteridade racializada e da contracultura que lhes antecipou aspectos modernos. Isto porque, para ela,
Há no colonialismo uma função muito peculiar para as palavras: as palavras não designam, mas encobrem, e isto é particularmente evidente na fase republicana, quando tiveram que adotar ideologias igualitárias e ao mesmo tempo escamotear os direitos cidadãos a uma maioria da população. Deste modo, as palavras se converteram em um registro ficcional, torturado por eufemismos que velam a realidade no lugar de designá-la (Cusicanqui, 2010, p. 19).
Essa função se desdobra num “complexo jogo de dissociação entre a linguagem escrita pública e a linguajem privada” (Cusicanqui apud Lara, 2013, p. 601). Não é difícil ligar os pontos e ver uma emulação na dissociação entre o que é oficial e o que se diz e faz fora dos autos.
Essas investigações de Cusicanqui culminaram no projeto sistematizado com a publicação de Sociologia da imagem: Ensaios[iv] (2015), onde Cusicanqui defende a descolonização do olhar, que “consistiria em libertar a visualização dos laços da linguagem e em reatualizar a memória da experiência como um todo indissolúvel, no qual os sentidos corporal e mental se fundem” (Idem, p. 22-3)
Notemos que enquanto Paul Gilroy e, em certa medida, Sérgio Costa chamam atenção para e celebram a modernidade (temporã) típica das pessoas negras sequestradas e escravizadas na colonização, forjada na experiência do trânsito no Atlântico Negro; Silvia Rivera Cusicanqui nos convida a pensar a modernidade de outro grupo de pessoas racializadas no processo colonial, a modernidade indígena – que inclusive seguem enfrentando as investidas da recolonização interna das elites locais, que lhes negam um significado contemporâneo inteligível e mesmo crível, sendo sempre apresentadas e representadas sempre exótica e anacronicamente.
A modernidade que emerge desses acordos variegados e linguagens complexas e mistas – Gamaliel Churata os chamou de “uma língua com pátria” – é o que constrói a hegemonia indígena a ser realizada nos espaços criados pela cultura invasora – o mercado, o estado, o sindicato. Ao fazê-lo, funda-se um projeto de modernidade mais orgânico e próprio do que a modernidade imposta das elites, caricaturas ocidentais que vivem do ventriloquismo de conceitos e teorias, de correntes acadêmicas e visões de mundo copiadas do norte ou tributários dos centros de poder hegemônico (Cusicanqui, 2010, p. 73).
Os argumentos dela advertem para o fato de que a fabulação da alteridade radical produzida a partir do dispositivo bélico do racismo não se restringiu às pessoas negras – algo que as nações Tupi e Guarani não nos perdoariam o esquecimento.
A partir da perspectiva da teórica boliviana, é possível perceber que a noção pós-moderna de hibridismo encobre a tensão material típica desse lugar ambíguo descrito como dupla consciência, pois a mistura (biológica e cultural) não homogeniza e nem de longe compatibiliza seus antagonismos constituintes – questão a qual ela responde com o desenvolvimento do conceito de ch’ixi.
Pessoalmente, não me considero q’ara (culturalmente nu, usurpador do estrangeiro), porque reconheci plenamente minha origem dual, aymara e europeia, e porque vivo por meus próprios esforços. Por essa razão, considero-me ch’ixi, e considero isso a tradução mais apropriada da mistura variada de que somos os chamados mestiços e mestiças. A palavra ch’ixi tem diferentes conotações: é um produto colorido de justaposição, em pequenos pontos, de duas cores opostas ou contrastadas: branco e preto, vermelho e verde, etc. É aquele cinza marmoreado resultante da mistura imperceptível de branco e preto, que são confundidos pela percepção sem nunca se misturar. A noção Ch’ixi, como muitos outros (allqa, ayni), obedece à ideia aymara de algo que é e não é ao mesmo tempo, isto é, a lógica do terceiro incluído. (Idem, ibidem, p. 69 – grifos meus).
Invocando as experiências de pessoas situadas no tempo presente e no espaço moderno, em grande medida, María Lugones (2008) ratifica ao passo que nos ajuda a entender os deslocamentos que as reflexões de Silvia Cusicanqui fazem à ambiguidade/ambivalência da “dupla consciência” (Gilroy, 2012). Os apontamentos que a filósofa argentina faz às reflexões do Coletivo Modernidade/Colonialidade genericamente e a Aníbal Quijano especificamente, distendendo o conceito supracitado de matriz colonial de poder (MCP), nos ajuda a avançar na direção de uma harmonização entre a complexidade das experiências e identidades racializadas e aquilo que nós profissionais podemos dizer delas.
Ao pensar sobre a indiferença, a cumplicidade e mesmo a reprodução, que homens de cor demonstram diante das opressões que atingem especificamente às condições de mulheres de cor, Lugones argumenta haver um ponto cego fundamental no conceito de MCP e demonstra, convincentemente, que as metodologias interseccionais são régua e compasso indispensáveis para uma cartografia do poder global do que ela chama de Sistema Moderno/Colonial de Gênero – visto que ainda que a análise de Quijano destaque a classificação da população mundial em termos raciais no capitalismo global, ele aceita e assente (de modo eletivo ou não) o mesmo processo de classificação a partir de termos de gênero/sexualidade.
Tanto o dimorfismo biológico, a heterossexualidade e o patriarcado são características do que eu chamo de lado claro/visível da organização colonial/moderna do gênero. O dimorfismo biológico, a dicotomia homem/mulher, a heterossexualidade e o patriarcado estão inscritos em letras maiúsculas e hegemonicamente no próprio significado de gênero. Quijano não tomou conhecimento de sua própria aceitação do significado hegemônico do gênero. Ao incluir esses elementos na análise da colonialidade do poder, tento expandir e complicar a abordagem de Quijano que considero central para o que chamo de sistema moderno/colonial de gênero (Lugones, 2008, p. 78).
Desse modo, Lugones nos permite inferir que a cisão entre texto e imagem, entre público e privado (Cusicanqui, 2010), é projetada em dualismos hierárquicos e/ou excludentes, onde um polo é a norma, e o outro é o desvio, um lado é claro/visível, o outro escuro/escondido, como nos pares masculino e feminino, corpo e espírito, cerebral e sensual, racional e passional, etc.: “Creio que também podemos dizer que ter um lado escondido/escuro e um lado visível/claro é característico da co-construção entre a colonialidade do poder e o sistema de gênero colonial/moderno” (Lugones, 2008, p. 93).
Tal dissociação, tão característica das promessas cínicas e dos valores hipócritas da modernidade (aqui já inseparável da colonialidade e de todos os seus processos de estabelecimento do estatuto hierárquico da dignidade humana), é que dá condições para que as violências com aquelas pessoas que as vive circunscritas por mais de um desses pares, sejam engolfadas e invisibilizadas, para em seguida (re)emergirem como norma no cotidiano e nas práticas dessas mesmas pessoas.
Ou seja, ainda que homens negros e mestiços, e no mais das vezes também pobres, saibam de experiência própria o quão dolorosas são as injunções da MCP, quando deslocados desse lugar de alvo de abusos no par branco versus não-branco, ou rico versus pobre, por exemplo, para o lugar de agente de agressões no par homem versus mulher, ainda que reproduzindo uma violência derivada da mesma matriz, não por fidelidade a ela, mas por disrupção/alienação de si e de sua condição integral, não se furtam de agredir e/ou legitimar agressões que emanam de tal lógica.
A reflexão de María Lugones (2008) conclui, entre outras coisas, que diante desses sistemas de classificação, parte do trabalho teórico é tornar explícita a dissolução forçada dos vínculos de solidariedade entre as vítimas de dominação e exploração, visto que tal violação é crucial para sustentar a colonialidade/modernidade. Pois, ela observa, mesmo que todos e todas sejamos racializados e generificados, nem todo mundo é dominado ou vitimizado por esse processo, que é “binário, dicotômico e hierárquico” (Idem, p. 82).
Ao prestar atenção a essa espécie de cumplicidade que homens colonizados podem ter com colonizadores, Lugones desvela a colonialidade como esse vetor estruturante das relações de poder na modernidade.
As traições e colaborações de pessoas em posição de desvantagens com pessoas em posição de privilégio na MCP, podem ser lidas nos termos de um blend entre o conceito de ch’ixi de Cusicanqui (2010), que fala desses opostos que integram os sujeitos, mas não se integram entre si, e o conceito bourdieusiano de illusio, que “é essa relação encantada com um jogo [social] que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social” (Bourdieu 1996, p. 140).
No entanto, vale lembrar que
Historicamente, não é simplesmente uma traição de homens colonizados, mas uma resposta a uma situação de coerção que engloba todas as dimensões da organização social. A investigação histórica do porquê e do como a alteração das relações comunitárias com a introdução da subordinação da mulher colonizada em relação ao homem colonizado e o porquê e como da resposta do homem a essa introdução formam uma parte essencial da base do feminismo descolonial. A questão aqui é por que essa cumplicidade forçada continua mesmo na análise contemporânea do poder (Lugones, 2008, p. 76 – nota 6).
Ou seja, o espraiamento dessa lógica é tão extenso e intenso que mesmo intelectuais críticas e críticos a ela, não escapam sem vigília. Isso torna ainda mais importante estarmos atentas e aptas para identificar a ela e as suas injunções, tal como ela se dá: a partir da complexidade, da ambivalência, de traduções, e por fim, do que surge no vácuo entre o que é possível elucidar e o que é impossível elaborar. Ou, nas palavras da filósofa argentina, “precisamos entender a organização do social para assim poder tornar visível nossa colaboração com uma violência de gênero sistematicamente racializada, para assim chegar a um reconhecimento ineludível dessa colaboração em nossos mapas da realidade” (Idem, p. 99).
Esses nossos mapas da realidade, assim como aqueles das primeiras navegações de pilhagens e saques transatlânticos, estão repletos de representações hiperbólicas e mais, cheios de vazios. Fato é que tudo aquilo que não é logicamente adequado (inteligível) às normas correspondentes das cópias malfeitas da modernidade, logo é tomado como inexistente. Ou seja, a cumplicidade masculina, o que aqui estendo às pessoas submetidas em quaisquer dos pares binários de inclusão/exclusão da modernidade, é menos cumplicidade e mais reprodução daquilo que parece ser a única ordem possível para as coisas do mundo – como no caso de uma regra que não deixa de ser regra, ainda que seja cravejada de exceções, porque a regra talvez não seja de regularidade mas sim de regulamentação. Daí também advém a importância dos repertórios de negritude que a música racialmente referenciada das periferias das grandes cidades possui, pois seus acervos fornecem e acolhem outros elementos para novos possíveis mapas da realidade das e para as pessoas submetidas à MCP.
O recalque, termo psicanalítico freudiano para designar um mecanismo de defesa que esconde no inconsciente aqueles conteúdos que ameaçam a integridade da autoimagem do eu (self), pode ser recuperado para interpretar esta incapacidade, ou tendência à incapacidade, que embarga a solidariedade entre vítimas da MCP – visto que, com o silenciamento quase compulsório, a elaboração dos traumas também é embaraçada. Além disso, ele serve também como molde analítico para compreender a dissociação entre o discurso e as práticas da colonialidade/modernidade. Segundo o Vocabulário de psicanálise, o recalque é esta
Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão. O recalque produz-se nos casos em que a satisfação de uma pulsão – suscetível de proporcionar prazer por si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências (Laplanche; Pontalis, 2001, p. 430).
O desenvolvimento do conceito, permitiu que Sigmund Freud identificasse o reaparecimento do conteúdo recalcado como uma etapa constituinte deste mecanismo de defesa, uma vez que aquilo que ameaça o self não é nunca completamente aniquilado e tende a retornar, ainda que distorcidamente, por meio de sintomas como sonhos, esquecimentos e atos falhos[v].
Estes curtos apontamentos do legado da psicanálise para os modos de funcionamento da psiquê humana, com a mudança de escala do eu para o nós, ou seja, da pessoa para a sociedade, já nos permite pressentir o elemento que procuro destacar a seguir.
Tomando como referência esta interpretação, uma das origens de todas as ambiguidades, contradições e incoerências da negritude, tanto enquanto experiência quanto como identidade, pode ser rastreada até os fundamentos de uma das leituras mais basilares e influentes da modernidade: a alegoria hegeliana da dialética entre o Senhor e o Escravo[vi].
A premissa da luta até a morte para o reconhecimento, o que segundo Hegel, é condição para alcançar a consciência de si e consequentemente inaugurar a realidade e a dignidade humana, dá substrato para uma espécie de ontologia da destruição e da morte mal dissimulada. Como uma espécie de retorno do recalcado, a violência sanguinária e sua sanção ganham vultos de condição existencial sob a luz da modernidade.
Dada a confusão entre humanidade e branquitude que o dispositivo bélico do racismo causou a partir das invasões coloniais do século XVI, as pessoas negras são incluídas mas interditadas para a dialética do reconhecimento e para a autorrealização, ecoando em suas experiências cotidianas o desafio de terem valor humano na e contra a modernidade.
Ainda que Hegel nos queira convencer de um impasse existencial do Senhor e das condições exclusivas do Escravo[vii] para redimir e alcançar a verdadeira humanidade, para si e para o Senhor (o que na verdade parece ecoar as promessas jesuítas de um paraíso pós-terreno[viii]), indica essa mediação baseada na radicalização e violação da alteridade.
Só o escravo pode transcender o mundo dado (sujeito ao senhor) e não perecer. Só o escravo pode transformar o mundo que o forma e o fixa na sujeição, e criar um mundo formado por ele, onde será livre. E o escravo só consegue isso pelo trabalho forçado e angustiado, feito a serviço do senhor. De fato, apenas esse trabalho não o liberta. Mas, ao transformar o mundo por esse trabalho, o escravo transforma a si e cria, assim, as novas condições objetivas que lhe permitem retomar a luta libertadora pelo reconhecimento que, anteriormente, ele recusou por medo da morte. Por isso, no final, todo trabalho servil realiza não a vontade do senhor, mas a – inconsciente, no início – do escravo3, que – afinal – consegue vencer naquilo em que o senhor – necessariamente – fracassa. Portanto, a consciência dependente, que serve e é servil, é que a realiza e revela no fim de contas o ideal da consciência-de-si autônoma, e que é assim a sua verdade (Hegel apud Kojève, 2002, p. 31).
Em Sujeitos do desejo: Reflexões hegelianas na França do século XX[ix], Judith Butler faz uma revisão da influência da obra Fenomenologia do espírito (1807) em duas gerações da filosofia francesa[x], onde discute a relação entre desejo e subjetividade, e entre reconhecimento e alteridade. Alguns elementos se destacam em suas conclusões, a saber, o caráter aberto da dialética hegeliana do reconhecimento; a fundamentação da subjetivação por meio da negação da alteridade; por conseguinte, a imprescindibilidade tanto do Outro, quanto do contato intersubjetivo para a autoconsciência de si; e finalmente a relevância do desejo e sua assimilação com a pulsão de morte.
Em sua leitura, “o Outro é revelado como uma estrutura essencial de toda experiência no curso da Fenomenologia; de fato, não pode haver experiência fora do contexto da intersubjetividade” (Butler, 1987, p. 47). Não que isso signifique a ausência de conflito, pelo contrário, ela levará às últimas consequências a formulação do desejo de morte e o de aniquilação do Outro como fundamentos na ontologia colhida na alegoria hegeliana, radicalizando e enfatizando a negação da alteridade como o elemento constituinte da subjetivação.
A luta de vida e morte é uma extensão do projeto inicial de autoconsciência para ganhar unidade com o Outro e encontrar sua própria identidade através do Outro. Na medida em que o esforço para obliterar o Outro é uma ação mútua ou “dupla” (pág. 187), cada autoconsciência busca destruir os limites determinados que existem entre eles; eles procuram destruir os corpos um do outro. Violência ao Outro aparece como o caminho mais eficiente para anular o corpo do Outro (Idem, ibidem, p. 52).
Essa é uma das premissas que guiam a narrativa Ocidental e branca: “Eu existo no reconhecimento do poder que tenho de destruir o Outro” – qualquer semelhança com o que temos visto na relação entre a branquitude e a negritude modernas está longe de ser mera coincidência.
O que talvez não fique evidente na análise meticulosa da filósofa estadunidense, fica em destaque no debate do médico martinicano: a desigualdade e assimetria entre os dois entes da dialética. É Frantz Fanon quem nos pôde oferecer uma versão situada e incorporada dessa mesma alegoria hegeliana, que se torna especialmente importante pela sua condição emblemática de pessoa negra intelectual que escapou da violência alienante e sanguinária da escravização e seus impactos imediatos, mas que não se livrou de suas reverberações existenciais.
Ele mesmo experimentando uma interpretação com aportes da psicanálise de um lado, e da dialética hegeliana do outro, Fanon falou nos termos de um desvio existencial, que não necessariamente implica um novo tipo de conflito existencial, mas uma impossibilidade de vivê-los (e com isso, superá-los) integralmente. “Não quero ser reconhecido como negro, e sim como branco. (…) e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu” (2008, p. 69).
Esperamos ter mostrado que aqui o senhor difere essencialmente daquele descrito por Hegel. Em Hegel há a reciprocidade, aqui o senhor despreza a consciência do escravo. Ele não exige seu reconhecimento, mas seu trabalho. Do mesmo modo, o escravo não é de forma alguma assimilável àquele que, perdendo-se no objeto, encontra no trabalho a fonte de sua libertação. O negro quer ser como o senhor. Assim, ele é menos independente do que o escravo hegeliano. Em Hegel, o escravo se afasta do senhor e se volta para o objeto. Aqui, o escravo volta-se para o senhor e abandona o objeto (Fanon, 2008, p. 183 – nota 9).
Ao demandar o trabalho e não a consciência, a alienação que o Senhor precisa fazer entre o Escravo e sua corporeidade, é uma das fontes da assimetria e da não-reciprocidade de que fala Fanon. Ou, como diria Butler, “a identidade do senhor está essencialmente fora dos limites do corpo; ele obtém confirmação ilusória desse ponto de vista, exigindo que o Outro seja o corpo que ele se esforça para não ser” (1987, p. 53 – grifos meus).
Ainda que a confirmação seja ilusória, ela tem efeitos práticos, materiais e sanguinários. A questão é que, “claro, bem que existe o momento de ‘ser para-o-outro’, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia torna-se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada” (Fanon, 2008, p. 103) – pois há uma distância oceânica entre a liberdade, a igualdade e a fraternidade nas (ex)metrópoles e estas nas (ex)colônias.
Já há quase um século, o brasileiro Alberto Torres desconfiava da coincidência entre a posição no tabuleiro da colonialidade e os resultados do trabalho científico[xi]. O intelectual e político fluminense que atuou entre o fim do século XIX e o início do século XX, momento em que debater e acomodar a “raça” era fundamental para o firmamento da pueril nação brasileira, duvidava do teor das teorias raciais da ciência das metrópoles, que nesse processo acumulariam capital suficiente para alimentar às máquinas e instaurar e sustentar a modernidade.
Não se poderia achar prova mais clara da natureza política deste movimento, do que a que mostram a semelhança simultaneidade das doutrinas aristocráticas, predominantes na ciência social. Gobineau e Malthus, Vacher de Lapouge, certas filiações políticas e sociais do darwinismo, Nietzche, surgiram, de origens e de fontes diversas, quase na mesma geração, chegando, por métodos todos científicos, à mesma conclusão: a afirmação da superioridade morfológica, irredutível, de certas raças e certos povos. (…) Chefes superiores e raças colonizadoras pediram títulos à ciência, para os direitos da hierarquia e da subordinação (Torres, 2002[1933], p. 58-9).
E como ignorar que um dos principais fundamentos da subordinação da alteridade é a marca da raça? A divisão tacanha entre o saber pré-moderno e o saber moderno, entre o primitivo e o civilizado, permanece mal disfarçadamente abalizada pela concentração de melanina. Refiro-me aqui a ainda influente noção de que os saberes afrocentrados são, em comparação aos eurocentrados, menos complexos e/ou relevantes para a reflexividade e a construção do conhecimento.
Noções de primitivo e civilizado, que haviam sido essenciais ao entendimento pré-moderno das diferenças “étnicas”, tornaram-se sinalizadores cognitivos e estéticos fundamentais nos processos que geraram uma constelação de posições temáticas nas quais anglicidade, cristandade e outros atributos étnicos e racializados dariam finalmente lugar ao fascínio desalojador de “brancura” [whiteness[xii]] (Gilroy, 2012, p. 47).
A ligação das pessoas negras com o acervo da ideologia e da cosmovisão da cultura africana não deve ser fossilizada, ela continua sujeita aos efeitos dos atritos com a civilização eurocentrada, não só como objeto desse atrito, mas como sujeito. Ainda que pela senzala, a população negra e mestiça do Brasil, assegurou o seu ingresso na modernidade. Ciente da sua de sua diferença ela não deixou de influenciar e ser influenciada por esta mudança. Ser indesejada não a excluiu dos modos de vida modernos, apenas deu-lhe um lugar determinado.
O racismo é incorporado e (re)semantizado no projeto colonizador – que ao longo dos séculos acumulou recursos capazes de “expandir” o ocidente e revolucionar as relações entre os seres humanos no e com o globo terrestre –, tornando-se um dos principais dispositivos bélicos de subordinação. Pois, “a inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (Fanon, 2008, p. 90).
Quando refletimos acerca do contexto brasileiro a partir desses apontamentos, é importante destacar que os desdobramentos históricos da negritude e seus repertórios ao longo dos séculos, desde a invasão colonial até os autos de resistência[xiii], são sistematicamente escondidos numa disputa assimétrica pela semântica e pela memória dos terrores da escravização racial. A violência que hoje assombra e assola as periferias parece ter detector de melanina e, infelizmente, estas coisas estão intrinsecamente ligadas pois, é cada vez mais evidente que, o direito de existir está em relação dialógica com o direito a uma interpretação da história. Que sirva de consolo saber que as leituras hegemônicas não são necessariamente as únicas. É preciso levar em consideração as outras narrativas, outros meios e outros significados para a vida e para a morte[xiv].
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Notas
[i] Tradução livre de The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options, lançado em 2011, pela Duke University Press.
[ii] O próprio Gilroy apresenta uma linha histórica para o desenvolvimento desse argumento. Destacando as reflexões de Richard Wright, escritor do clássico Os filhos do Pai Tomás (Uncle Tom’s Children, 1938), que também faz uma interpretação dos conceitos de véu e dupla consciência do autor de As Almas da Gente Negra (The Souls of Black Folk, 1903). “‘Perspectivas do sapo’. Esta é uma expressão que tomei emprestada de Nietzsche para descrever alguém que olha de baixo para cima, a percepção de alguém que se sente inferior aos outros. O conceito de distância envolvido aqui não é físico; é psicológico. Envolve urna situação na qual, por razões morais ou sociais, uma pessoa ou um grupo sente que há outra pessoa ou grupo acima dele. Fisicamente, porém, todos vivem no mesmo plano geral material (Wright apud Gilroy, 2012, p. 306-7). Gilroy destaca ainda que “O sujeito negro de Wright está internamente dividido por filiação cultural, cidadania e as demandas de identidade nacional e racial. (…) Ele adquire um tempero etnopsiquiátrico específico da vida social colonial e semicolonial” (Gilroy, 2012, p. 307). Há uma passagem com relativa popularidade na obra O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil (1995), do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, em que ecoa essa perspectiva ambivalente e cindida. Mas ele alega que, no Brasil, as pessoas miscigenadas, nem brancas nem pretas (“fisicamente”), é que estariam fadadas a essa não-posição: “Posto entre os dois mundos conflitantes – o do negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita –, o mulato se humaniza no drama de ser dois, que é o de ser ninguém” (Idem, p. 223).
[iii] Vale fazer notar que, diferente do que intuitivamente se espera, foi a experiência de violação e/ou dominação que criou e cria condições para fenômenos como a dupla consciência e a reflexividade.
[iv] Tradução livre de Sociología de la imagen: Ensayos, lançado em 2015, pela Tinta Limón Ediciones.
[v] No sentido contrário do que poderia se deduzir, “o chamado ato falho é um ato bem-sucedido: o desejo inconsciente realiza-se nele, muitas vezes, de uma forma bastante clara” (Laplanche; Pontalis, 2001, p. 44).
[vi] Aqui referenciada pela leitura feita por Alexandre Kojève (2002[1947]).
[vii] No já clássico Pedagogia do oprimido (Freire, 1974), um dos argumentos fundamentais é que a possibilidade de emancipação política e existencial dos oprimidos é a única via de emancipação dos próprios opressores, eco da influência hegeliana entre pensadores e pensadoras marxistas também no Brasil. Além de parecer com o argumento de Hegel, há indícios de que Paulo Freire sofreu influência das reflexões sobre o tema em Os condenados da terra, obra de Frantz Fanon, publicada em 1968 no Brasil e onde o autor trabalha a partir da dialética hegeliana.
[viii] O discurso dos jesuítas serviu de aparato ideológico para lidar com a contradição entre os preceitos humanistas da “civilização” e/ou da cristianização e o assassinato em massa que o regime escravocrata promovia. Segue um exemplo da argumentação pela necessidade de redenção de suas almas, mesmo que isto significasse uma vida inteira de violenta escravidão e o risco cotidiano da morte: “De maneira, irmãos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais duro e áspero que seja ou vos pareça, não é cativeiro total ou de tudo o que sois, senão meio cativeiro. Sois cativos naquela ametade exterior e mais vil de vós mesmos, que é o corpo; porém na outra ametade interior e nobilíssima, que é alma, principalmente no que a ela pertence, não sois cativos, mas livres.” (Padre Antônio Vieira [1608-1697] apud Hofbauer, 2006, p. 167).
[ix] Tradução livre de Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, tese de doutoramento defendida em 1984 e publicada em 1987, pela Columbia University Press.
[x] Na primeira geração analisada por Butler estão o próprio Alexandre Kojève, Jean Hyppolite, Jean-Paul Sarte e Jacques Lacan; na segunda, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Julia Kristeva.
[xi] Mais ao norte espacialmente, mas contemporâneo a Alberto Torres, Du Bois chegou a conclusões muito próximas. “Du Bois destacou muito mais vigorosamente os pressupostos raciais que moldam a investigação social. Em uma famosa passagem em Black Reconstruction in America, ele lamentou que em sua revisão da literatura era ‘de absoluta necessidade uma acusação da relação entre historiadores americanos e seus ideais’” (Emirbayer; Desmond, 2015, p. 31).
[xii] Com a ampliação do debate, creio que a melhor tradução para o termo seja “branquitude”.
[xiii] O termo é uma convenção jurídica mal formalizada e herdada da Ditadura Civil Militar dos anos de 1964-1985, que ao transmitir a ideia de que houve resistência durante a prisão, isenta a responsabilidade do agente policial por qualquer abuso da violência e presume a sua inocência. Especialmente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a expressão ficou associada a exoneração da culpa das execuções que a polícia faz nas regiões periféricas, tendo como alvo jovens negros do sexo masculino.
[xiv] Sobre essa reflexão, fiquei especialmente inspirada pela conferência de Petronilha Beatriz Gonçalves no Seminário em Rede: Relações Étnico-Raciais, promovido pelos programas de pós-graduação da Fundação Joaquim Nabuco/PE (MPCS-Fundaj/ PPGECI-UFRPE), em março de 2017.
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