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A linguagem e seus excedentes: Comentário sobre o livro “Crítica dos Afetos”, por Marina Assis Pinheiro

A linguagem e seus excessos:  Comentário sobre o livro ” Crítica dos Afetos “, de Filipe Campello

Por Marina Pinheiro

Prof.(a) do Departamento de Psicologia da UFPE

marina.pinheiro@ufpe.br

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“A uva é feita de vinho”, lê-se em uma das anedotas de Eduardo Galeano (2004) em O livro dos abraços . O porvir de nossa constituição subjetiva é uma virtualidade que nos humaniza, uma potencialidade tão radical que é atravessada e mobilizada por sua própria incapacidade, diferentemente de outras espécies, ou do destino das uvas de Galeano. Somos eternamente tributários de impulsos que nos antecedem e acionam modos de sentir, pensar e dizer. 

O trabalho que nos reúne hoje, se debruça sobre os impasses implicados na compreensão de que nossos modos de afetação são constituídos por jogos de linguagem e vocabulários atuantes nas formas de vida (Wittgenstein, 2009) das quais participamos. Demolidor de concepções privatizadoras da afetividade ou mesmo de sua dicotomização das gramáticas e processos simbólicos da cultura, a argumentação da crítica não abre mão de refletir também sobre o lugar da singularidade subjetiva. A experiência em primeira pessoa seria potencialidade sensível e criadora – necessária, mas não suficiente – às dinâmicas de transformação social e suas normatividades. A afetividade e, consequentemente, as formas de sentir, perceber, seriam, portanto, também, uma questão política, donde o sofrimento é concebido como um marcador de formas de injustiça, até mesmo quando somos incapazes de senti-la e reconhecê-la. Como uma estrela-guia de sua argumentação (ou um meteoro?), somos constantemente interpelados pelo problema que aparece logo nas primeiras páginas do texto: “Como podemos compartilhar experiências de injustiça? Afinal, qual o lugar das experiências, dos sentimentos e dos relatos no diagnóstico de injustiça”? (p.22)

No denso trabalho argumentativo de Crítica dos afetos (Campello, 2022), muitas das entrevistas dos documentários de Eduardo Coutinho emergiam na minha leitura como aproximação compreensiva das teses articuladas. Recorto, assim, um fragmento da entrevista de Rafaela, estudante do Ensino Médio da rede pública do Rio de Janeiro, no filme Últimas Conversas (Coutinho, 2005). A jovem viveu até a pré-adolescência com a avó, pois a mãe se ausentara para garantir a sustentação econômica da família. Quando indagada pelo documentarista sobre como era a relação com sua mãe, escutamos:

Bom … É uma relação assim… Não é aquela relação de mãe e filha como a gente vê em filmes e novelas… Assim. É uma relação mais ou menos porque como ela não fez parte da minha infância, nem da minha adolescência assim, então não é uma relação muito boa porque não é uma relação onde eu tenho ela como amiga para contar. Então é uma relação é uma relação… hum, não tem como explicar. Não é uma relação assim linda, vamos dizer… Ela é minha mãe por ela ter me colocado no mundo. É minha mãe por me dar as coisas, mas o importante que é amor, eu não tenho. Não sei assim, certamente essa expressão. Como significa essa expressão… de uma mãe.

Nesta passagem que inaugura a entrevista, nos deparamos com a voz assertiva e embargada de Rafaela, no esforço de se fazer compreendida sobre o indizível de uma presença materna ambígua, intensa, marcada por interdições na provisão afetiva. Rafaela percorre metonimicamente o campo semântico que dispõe para dizer deste vínculo, assumindo, assim, tudo aquilo que a mãe “não é”, como se a mãe fosse o avesso de imagens e mitos sobre a maternidade, um lugar de enigma em sua vida, ou mesmo um inquietante não lugar. Rafaela se confronta, na intimidade da entrevista, com um vocabulário que se apequena ante a experiência de sofrimento, uma solidão vivida em primeira pessoa mas que atravessaria tantas outras pessoas, a exemplo do filme Que horas ela volta (Muylaert, 2015).

Se a crítica não se reduziria às percepções subjetivas como a da personagem de Coutinho, por outro lado, ela se confronta com o problema da expressividade que estaria na gênese dos horizontes intersubjetivos em suas formações tanto comunicativas quanto afetivas. Não é por acaso, que a arte é mencionada (Campello,p.135) como um instrumento para lidar com os limites da reflexividade e seus modos de articulação simbólico-verbais. Uma hermenêutica dos afetos, como a crítica propõe, é uma crítica que entende que toda semiose é afetiva. A experiência estética promovida pelas artes como instrumento para o diagnóstico de patologias sociais, parece colocar em cena o lugar dos signos presentacionais (Langer, 1953) como uma formação central para a abertura e composição das sintonias intersubjetivas no processo de construção do conhecimento.

Os signos presentacionais seriam imagens vivas da vida sentida, se diferenciam do registro conceitual da ordem discursiva, e explicitam marcas da vida significativa, no sentido estético da experiência, isto é, como irrupção de uma imagem carregada de afeto. Os signos presentacionais seriam prenhes de ambiguidade, inconclusibilidade e resistência ao campo das palavras. Eles conseguem performatizar uma representação do que se encontra em estado de larva na experiência do próprio ator social. Eles seriam, assim, uma potencialidade semi-dita, uma forma viva posto que intensa e produzida numa lógica distinta da racionalidade discursiva. As mais cotidianas e pouco observadas experiências para a pessoa comum, são reconstruídas na presentacionalidades destes signos, num mergulho insólito no invisível e, simultaneamente, transformador das vivências, como nas entrevistas de Eduardo Coutinho. Este registro outro da vida, provocados pelo universo dos signos presentacionais, aproximam-se, em minha compreensão, daquilo que o ensaísta argentino José Juan Saer caracteriza como ficção. Em suas palavras:

Ao ir em direção ao não verificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento. Não nega uma suposta realidade objetiva, ao contrário, submerge-se em sua turbulência, desdenhando a atitude ingênua que consiste em pretender saber de antemão como essa realidade se conforma. Não é uma claudicação ante tal ou qual ética da verdade, mas sim a busca de uma ética um pouco menos rudimentar. (2012, p. 3).

Nesta proposição oriunda da experiência da autoria na literatura, é interessante notar que a ficção se relaciona não ao campo do irreal, mas da complexidade múltipla dos possíveis que subjaz ao que emerge como uma verdade. Assim, a ficção não seria o campo do que transfigura a realidade, mas justamente o que a amplia a trama dos sentidos, não se constituindo uma ruptura do real. Muito pelo contrário, a ficção é o alargamento afetivo do que é vivenciado (Pinheiro & Simão, 2020), como observamos no brincar, nos jogos, na fruição das artes e em todo modo de subjetivar o mundo da vida.

Richard Rorty (1993), filósofo bastante presente em Crítica dos Afetos, destaca que a literatura é um campo potencial da experiência marcado pela possibilidade de expansão da imaginação do leitor, por via de aspectos idiossincráticos que nascem no ato de leitura. A literatura seria capaz de colocar o leitor em contato com a dor e a humilhação do outro, assim como a sua própria e íntima, tão estranha quanto sentida.  Para ele, a solidariedade humana, aquela que se coloca em ato, seria uma emoção participativa provocada pela intensidade do reconhecimento, onde a experiência literária seria um modo de atingir e acessar a incomensurabilidade de outros mundos e narrativas. Ficcionar a si mesmo em outros mundos ampliadores de nossas capacidades imaginativas seria uma virtualidade engendrada, a meu ver, pela potencialidade de signos presentacionais produzidos na relação com o leitor.

A intersubjetividade – peça chave de crítica dos afetos e da problemática do sofrimento no reconhecimento da experiência de injustiça – se coloca como impasse ao longo da trama argumentativa do livro. Rommetveit, no artigo intitulado On the Architcture of Intersubjectivity (1979) propõe que esta noção seria um estado dialógico situado e comunicativo, baseado na aposta da capacidade de compreensão mútua. Sem esta expectativa de ser entendido, o endereçamento enunciativo é sequer construído pelos participantes. Enquanto diálogo e marcação de fronteira expressiva, a intersubjetividade é, assim, pavimentada por confiança recíproca na redução da nebulosidade dos significados, sem que com isso haja uma fusão de horizontes, posto que a ambiguidade é traço fundante dos processos de simbolização, das ressonâncias da voz do outro em nós.  Ser afetado pelo outro, no campo intersubjetivo, é sustentar certa fenda alteritária, um certa descentração, despossessão do nosso campo semântico e da ficção de nós mesmos. Em nosso querer dizer há sempre um excedente não dito ao qual recriamos de modo mais aberto e comunicativo ou expulsamos de forma mais silenciadora.

Neste sentido, se pensarmos na experiência da intimidade não como o reduto psíquico privado, mas como uma zona afetiva intermediária das ressonâncias do outro em nós – isto é, uma forma de sentir os ecos alteritários, de produzir questões ante às interpelações da vida –  talvez o sequestro da intimidade pelas temporalidades produtivas atuais, seja um vetor importante no processo de torporização das sensibilidades e do próprio sofrimento na percepção das injustiças.

 Na incomunicabilidade que atravessa nossos próprios atos comunicativos, a partilha de afetos no horizonte de uma gramática socialmente compartilhada é enigma que percorre uma Psicologia às voltas com um tempo que parece ter desistido do diálogo como sustentação das diferenças carnavalizantes e criadoras da vida viva, da supra vivência, como diria o prof. Luis Antônio Simas (2019).  

Encerro meu comentário com uma passagem de Contingência, Ironia e Solidariedade (2007, p.307): “(…) o ironista – a pessoa que tem dúvidas sobre o seu vocabulário final, sua identidade moral e, talvez, sua própria sanidade – precisa desesperadamente falar com outras pessoas, precisa disso com a mesma premência com que as pessoas precisam fazer amor”. Ao articular a atitude ironista com ânsia de estar com o outro, de eroticamente investir no desejo de saber de suas próprias palavras através das metáforas entoadas pelo outro, Rorty nos lembra que a transformação dos nossos vocabulários não acontece sem a movência dos nossos desejos e de uma literatura ou de uma estética que nos inspire.

Obrigada pela leitura e pela oportunidade de diálogo

Referências

Campello, F. (2022). Crítica dos afetos. Autêntica.

Coutinho, E. (2015). Ultimas conversas . Vídeo Filmes, Instituto Moreira Salles.

Galeano, E. (2004). El libro de los abrazos . Catálogos.

Langer, S. (1953). Sentimento e forma. Escribas.

Muylaert, A. (2015) Que horas ela volta? Pandora Filmes.

Pinheiro, M.; Simão, L. (2020). Criatividade e Ficção: Horizontes Interpretativos sobre a Emergência do Novo na Relação Indivíduo e Cultura. Ciência Psicológica e Comportamental Integrativa . doi.org/10.1007/s12124-020-09583-8

Rorty, R. (1993). Contingência, ironia e solidariedade . Cambridge University Press.

Saer, J. (2012). O conceito de ficção. In: Revista FronteiraZ , n.12, p.1-6.

Simas, L. (2019). O corpo encantado das ruas . Civilização Brasileira.

Wittgenstein, L. (2009). Investigações filosóficas . Editora Blackwell.

 

 

1 comentário em “A linguagem e seus excedentes: Comentário sobre o livro “Crítica dos Afetos”, por Marina Assis Pinheiro

  1. Cesar Sabino

    Parece que a Teoria Social está se desfazendo da ganga racionalista e niilista que tanto a colocou distante da realidade e da diferença. Ainda bem! Passou da hora do Ocidente enxergar que não é o centro do pensamento.

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