Por Yasmin Afshar[1]
Mas a gente da terceira classe/ escutava-o sem abrir a boca.
(…) não porque tivessem fome/ (se bem que fome eles tinham):
(…) Eles bem que entendiam o que ele dizia,/ mas não o compreendiam.
Suas palavras não eram as palavras deles,/ eram consumidos por outros medos
que não os dele, e por outras esperanças.
(…) escutavam-no, respeitosos,
e aguardavam o momento de afogar-seHans Magnus Enzensberger
Desde os anos 1950, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (IfS) dedicou-se continuamente investigar o potencial fascista da sociedade alemã em sucessivas pesquisas empíricas. Iniciada pela pesquisa de grupos (Gruppenexperiment) coordenada por Friedrich Pollock, a série continua, na década seguinte, com a aplicação da chamada escala F (de fascismo) no contexto alemão. Concebida para os Estudos sobre a personalidade autoritária (PA), trabalho realizado nos Estados Unidos, em 1950, essa métrica foi utilizada em, pelo menos, cinco pesquisas de opinião, entre 1960 e 1972, a fim de investigar a “ideologia alemã”, como gostava de dizer Theodor W. Adorno. Alguns resultados dessas sondagens foram analisados em duas teses de doutorado publicadas pelo IfS: Autoritarismo e apatia política (Authoritarismus und politische Apathie), de Michaela von Freyhold, publicada em 1971, e Os trabalhadores são autoritários? Crítica do método da psicologia social (Sind die Arbeiter autoritär? Zur Methodenkritik politischer Psychologie), de Ursula Jaerisch, publicada em 1975. Esses trabalhos são as únicas publicações dedicadas à aplicação da escala F conduzida pelo IfS, na Alemanha nesse período.
Mas por que razão continuar a pesquisar o potencial autoritário após o fim do regime nazista? Por que não passar a outra coisa? Essa alternativa seria plausível, caso os teóricos do IfS considerassem o nazismo como um mero desvio de percurso, na história do Ocidente; e, uma vez derrotado militarmente, já não representaria perigo algum. Entretanto, para Adorno e seus colegas, as condições de possibilidade do fascismo não haviam sido suprimidas com o fim da guerra, pois se tratava de um produto do modo de funcionamento capitalista. Nesse sentido, as interações dos países formalmente democráticos ou “desnazificados” permaneceriam permeadas por certo modo de pensar autoritário. “Eu considero a sobrevida do nacional-socialismo na democracia como potencialmente mais ameaçadora do que a sobrevida das tendências fascistas contra a democracia” (Adorno 1995, p. 29f). A coexistência entre democracia liberal e concepções autoritárias é o ponto de partida para a pesquisa nos Estados Unidos e, mais tarde, na Alemanha Federal.
A série de estudos sobre o autoritarismo do IfS inicia-se já em 1929, com a pesquisa A classe trabalhadora na República de Weimar, coordenada por Erich Fromm e que, em consequência do exílio forçado do IfS, não pôde ser concluída a contento. Fromm também coordenou Autoridade e Família, publicada em 1936. Nesse mesmo período, o IfS encomendou a Siegfried Kracauer um estudo sobre a propaganda fascista que resultou no ensaio Propaganda totalitária, publicado apenas postumamente e do qual Patrícia Santos já tratou anteriormente neste blog. Finalmente, as pesquisas ganharam desenvolvimentos substanciais nos Estados Unidos, onde os pesquisadores do IfS examinaram a prevalência do antissemitismo e do pensamento autoritário justamente no país tido como exemplo de democracia a ser seguido.
Uma ilusão em que se pode cair facilmente é a de que as pessoas na sociedade estão livres de antissemitismo por causa de seus bons modos. Isso não se sustenta na Europa. É ainda menos verdade aqui. Temos fortes razões para acreditar que a classe alta é violentamente antissemita. Eu acabei encontrando a corroboração disso na minha última viagem à costa leste (Adorno apud Wiggershaus 2015, p. 941).
É essa tese, aliás, que, segundo a socióloga Michaela von Freyhold, Martin Jay não “compreendeu” no livro, hoje um clássico, Imaginação dialética. Em uma resenha publicada em 1975, Freyhold diz que a experiência fascista figura na obra de Jay como um acontecimento puramente exterior que teria forçado o IfS ao exílio, sem atentar para suas implicações teóricas. Conforme o autor, continua Freyhold, a descrição de Adorno das tendências fascistas na sociedade norte-americana teria sido “exagerada”: “Para Jay, a observação de que a democracia de massa americana não era liberal e era, à sua maneira, tão totalitária quanto o fascismo, era certamente de mau gosto”. (Freyhold 1975, p. 839). Defendendo uma espécie de variação do argumento de Tocqueville sobre a especificidade democrática dos Estados Unidos, Jay de fato afirma que: “Totalitarismo, assim sempre insistiu o Instituto, era uma consequência do liberalismo, não o seu reverso, mas nos Estados Unidos existia uma sociedade liberal burguesa que resistiu a essa transformação.” (Jay 1973, p. 297). Assim entendido, o país seria uma exceção, senão um desmentido, da tese da dialética do esclarecimento.
A pesquisa Personalidade autoritária (PA), iniciada em 1944 e publicada em 1950, parte das seguintes hipóteses: 1) As convicções de natureza política, econômica e social formam um todo coerente a que se pode chamar de “mentalidade”, a qual, por sua vez, expressa tendências profundas da personalidade do indivíduo; 2) O indivíduo potencialmente fascista seria aquele cuja personalidade é particularmente suscetível à propaganda antidemocrática e disposto a aderir ao fascismo, caso ele venha a se tornar um movimento socialmente respeitável (Adorno et al., 1950). Para medir o fascismo latente na sociedade norte-americana, a equipe de pesquisadores elaborou um questionário que, embora não tematizasse abertamente o antissemitismo, o nacionalismo e a exclusão de minorias, procurava identificar o perfil psicológico mais suscetível à propaganda autoritária. Os entrevistados – em sua maioria, estudantes, funcionários públicos e profissionais liberais – pertenciam quase exclusivamente aos setores médios da sociedade. Isso porque os pesquisadores haviam constatado, já de início, que o questionário seria inadequado a indivíduos de classes mais baixas (Adorno et al 1950, p. 22).
A estrutura da personalidade “autoritária” compreendia nove características: convencionalismo (rígida adesão aos valores da classe média e do status quo); submissão à autoridade (atitude acrítica com relação à autoridade de um grupo); agressão autoritária (rejeição violenta de quem viola os valores convencionais); anti-intracepção (oposição àquilo que é da ordem do imaginativo e do subjetivo); superstição; dureza ou “toughness” (identificação com figuras de poder e dominação); destrutividade e cinismo; projetividade e exagerada preocupação com o sexo. Essas características, ou “variáveis”, constituiriam o padrão de personalidade dos que tendem a mais facilmente aderir à propaganda antidemocrática. Esse instrumento de medida do potencial fascista foi chamado de escala F.
A tese de doutorado de Freyhold analisa os resultados de quatro pesquisas, com aplicação da escala F, realizadas entre 1960 e 1966, pelos grupos de trabalho do IfS. O primeiro teste, não representativo, ocorreu no verão de 1960 e tratava da opinião política e da trajetória de vida de um grupo reduzido de entrevistados; a primeira utilização oficial foi no início de 1961, no contexto do processo de Eichmann, em um universo de 1989 pessoas; a segunda ocorreu em uma pesquisa sobre as condições de vida e o comportamento da nova geração, realizada com apoio da rádio Westdeutschen Rundfunk e na qual foram entrevistados 3402 jovens; a terceira vez, em março de 1966, tratou de medir a reação ao casamento da princesa Beatrix dos Países Baixos, abordando diferentes dimensões do mecanismo psicológico da personalização; e, finalmente, em novembro do mesmo ano, uma pesquisa abordou o preconceito contra o operariado imigrado (Gastarbeiter), em sua maioria advinda da Turquia e da Itália. Freyhold atentou particularmente para o fato de que a maioria dos indivíduos autoritários tende antes à apatia política que ao engajamento antidemocrático. “Como para eles é indiferente se vivem em uma democracia ou em uma ditadura, eles aceitariam calmamente o Estado autoritário, especialmente se a supressão de interesses conflitantes fosse apresentada a eles como uma simplificação dos processos políticos”. (Freyhold 1971, p. 246).
Além disso, segue Freyhold, as pesquisas revelaram que o interesse pela política é um claro marcador de classe social. “Aposentados e donas de casa são apáticos, trabalhadores mais apáticos que a classe média, que, por sua vez, são mais interessados em política quanto mais alta for sua posição social” (Freyhold 1971, p. 159). De um lado, as classes baixas viam com suspeita o sistema democrático liberal, no qual a representação política lhes havia sido negada por um longo tempo e, depois de conquistada, pouco havia alterado a situação de dependência e insegurança econômica própria ao mundo do trabalho (Freyhold 1971, p. 160). Nesse sentido, conclui Freyhold, os indivíduos das camadas mais altas estariam mais dispostos a aceitar uma democracia formal em que “seus privilégios e status são garantidos” (Freyhold 1971, p. 246).
A tese de doutorado de Jaerisch, por sua vez, trata da aplicação da escala F para medir o impacto da propaganda do NPD (Partido Nacional Democrático da Alemanha), entre 1967 e 1972. Criado em 1964, em Hannover, a maior parte das lideranças, dos membros da assembleia e dos filiados do NPD veio do Partido Alemão do Reich (Deutschen Reichspartei, DRP), dissolvido em 1965 e sucessor do Partido Socialista do Reich (Sozialistischen Reichspartei, SRP), proibido em 1952, por ser reconhecido como neonazista. O NPD se insere, portanto, na linha de continuidade dos partidos de extrema-direita que remonta ao partido nazista, NSDAP (Borowsky 1983, p. 38). Em 1966, ano em que Jaerisch foi contratada como pesquisadora assistente do IfS o NPD obteve 8 das 96 cadeiras do parlamento regional de Hessen (estado onde se encontra a cidade de Frankfurt). O primeiro programa do NPD, lançado em novembro de 1967, defendia “a recusa da ‘mentira da culpa coletiva’, a restauração da unidade alemã, a luta contra o comunismo e o ‘americanismo’… [e atacava] o ‘monopólio’ reivindicado pelos ‘partidos de Bonn’, assim como sua ‘política de renúncia’ [Verzichtpolitik]” (Borowsky 1983, p. 38). A forma estereotipada da linguagem e o uso de jargões antissemitas, antissemitas, conspiracionistas e nacionalistas identificavam seu material de propaganda rapidamente à sua matriz nazista.
O período entre 1966 e 1967 também é marcado pela desaceleração do crescimento econômico, o que acabaria por levar a Alemanha Federal a um quadro de recessão, pela primeira vez desde a sua fundação em 1949. Para Ernest Mandel, essa crise teria “consequências psicológicas e ideológicas de grande alcance”. “Uma lenda entrou em colapso nestes anos: a da “economia social de mercado” à prova de crise, que garantiria um progresso constante das condições de vida. Com esta lenda, a estabilidade política a longo prazo da República Federal também é condenada à morte”. (Mandel 1974, p. 5)
Nesse quadro, o surgimento do NPD foi comparado, na época, à emergência do partido nazista durante a República de Weimar. “Igualmente preocupados ou realmente afetados pela crise econômica de 1968, os assalariados mais velhos, os funcionários públicos e, sobretudo, os trabalhadores autônomos deslocaram-se significativamente para a direita, tal como ocorrera no período de Weimar”. (Jaerisch 1975, p. 36) Adorno, por seu lado, havia tentado marcar as diferenças entre os dois períodos, tendo alertado para o perigo da esquematização (Adorno 2020, p. 59). Seja como for, a ascensão eleitoral da extrema-direita, combinada à primeira crise econômica depois de um longo período de estabilidade política, deu um novo fôlego às pesquisas do IfS sobre o autoritarismo.
Em algumas poucas ocasiões, particularmente na conferência dada aos estudantes socialistas da Áustria, em Viena, no dia 5 de abril de 1967, Adorno chamou a atenção para a ameaça que o NPD representava. Nessa palestra, intitulada Aspectos do novo radicalismo de direita, recentemente publicada também no Brasil (Adorno 2020), o autor chama a atenção para as condições sociais, psíquicas e políticas de retorno eleitoral do fascismo. Na véspera, Adorno havia apresentado ao mesmo público um de seus únicos textos em coautoria e o único em colaboração com uma mulher: Ursula Jaerisch. Notas sobre o conflito social hoje, publicado apenas em 1968, abordava as tendências fascistas da sociabilidade de maneira oblíqua, a saber, através da análise de conflitos “pseudoprivados” e de situações de riso coletivo (Adorno & Jaerisch 2021). A partir de casos aparentemente irrelevantes do ponto de vista sociológico, Adorno e Jaerisch extraíram elementos análogos às variáveis identificadas em PA, tais como o convencionalismo, a formação de “in-groups” em oposição aos a “out-groups”, o anti-intelectualismo, o ressentimento e até a toughness que, de uma maneira ou de outra, apareceram nos protocolos produzidos pelos estudantes. Esses elementos foram reunidos nas Notas. Assim, tanto em função de sua gênese, como da compreensão de algumas dimensões não explícitas de seu conteúdo, Aspectos e Notas são textos a serem lidos lado a lado.
Mais tarde, Jaerisch viria a se concentrar na análise de materiais publicados e discursos proferidos em comícios do NPD, e num extenso catálogo de slogans e jargões a partir dos quais os pesquisadores do IfS elaboraram os questionários da pesquisa. As frases a que os entrevistadores deveriam reagir não eram exatamente as encontradas no material do NPD, mas fortemente inspirada nelas. A escala F havia sido concebida a partir da hipótese de que o fortalecimento da extrema-direita se fundamenta em linhas ideológicas que, por sua vez, repercutem em mecanismos social-psicológicos de maneira persistente. Ao longo da pesquisa, entretanto, Jaerisch constatou que havia um problema: o caráter específico de classe do significado conferido às frases, bem como os valores que estas expressam eram elipsados pela metodologia da pesquisa, de modo que apareciam como sendo neutros, ou seja, como se fossem compartilhados, com o mesmo valor, por todos os estratos sociais.
Ao explicitar essa falha do método, Jaerisch coloca em questão o “autoritarismo da classe trabalhadora”, derivada, em parte, da realização de pesquisas de opinião sobre a aceitabilidade dos valores democráticos em diversos países, correlatas à escala F. As autoras se referem, ora direta, ora indiretamente à controversa tese de Seymour Lipset, segundo a qual havia maior predisposição antidemocrática nos estratos populacionais de baixa renda. Fazendo referência à Personalidade Autoritária (Lipset, p. 104) – embora esta não tenha sido aplicada às classes baixas – Lipset afirma que essas camadas teriam mais predisposição ao autoritarismo por reunir diversas condições que o favoreceriam: baixa escolaridade, pouco engajamento político, insegurança econômica e educação familiar marcada pela rigidez e disciplina.
Vários estudos focados em vários aspectos da vida e cultura da classe trabalhadora têm enfatizado diferentes componentes de uma perspectiva pouco sofisticada. Maior sugestionabilidade, ausência de senso de passado e futuro, incapacidade de ter uma visão complexa, dificuldade de abstração da experiência concreta e falta de imaginação foram apontados como produtos característicos de baixo status social. (Lipset 1959, p. 492)
Como vemos, para fundamentar sua crença no autoritarismo da classe trabalhadora, Lipset se vale dos resultados questionáveis de “vários estudos” acerca da linguagem, capacidade de imaginação e consciência histórica das classes baixas. Para Jaerisch, a caracterização autoritária da psique das camadas baixas aponta para um problema de método: se é verdade que há uma maior aceitação de expressões, jargões e formulações fascistóides por essa classe, isso não implica, necessariamente, que essas tendam mais a ter atitudes autoritárias. Quando os trabalhadores se organizam para uma ação coletiva, como uma greve, eles renunciam muitas de suas representações xenofóbicas, por exemplo, em favor de um vínculo solidário. Conforme a autora, uma tal ação coletiva é dificilmente imaginável pelas classes médias, formadas pelos valores individualistas burgueses. Ademais, como Jaerisch lembra em sua tese, o fascismo histórico surge quando a pequena burguesia, em busca de uma resposta própria para a crise, reage ao movimento proletário revolucionário.
Como resultado do fracasso da revolução proletária, as classes médias se distanciaram do movimento proletário como possível aliado e, aparentemente buscaram suas próprias soluções políticas, durante uma situação de crise do capitalismo, voltando-se contra as organizações do proletariado, que se tinham mostrado muito fracas ou incapazes de vincular os interesses, pelo menos de uma determinada parte da classe média, aos seus próprios interesses. (Jaerisch 1975, p. 174)
Em consonância com Miller e Riessman, Jaerisch afirma que a concepção da escala F é problemática por se mostrar limitada na sua aplicação à classe trabalhadora – algo que, como vimos, já havia sido reconhecido pelos pesquisadores de PA. Tanto o tipo autoritário clássico, como o tipo democrático são marcados por certos valores determinados pela classe social:
Enquanto contratipo ao autoritário, um tipo de caráter democrático evidentemente específico, no que se refere à classe, foi hipostasiado na Personalidade Autoritária. O fato de que este apresenta os traços da individualidade burguesa pode ser demonstrado pelos critérios individuais incorporados ao conceito teórico de caráter democrático e não preconceituoso (Jaerisch 1975, p. 13).
Posto isso, Jaerisch indica possíveis causas materiais para as discrepâncias entre as classes apresentadas nas pesquisas. O fato de que algumas pessoas entrevistadas tenham se manifestado de maneira parcial sobre o nazismo – afirmando ter “havido coisas boas (rodovias, pleno emprego) e más (ditadura, guerra)” – pode ser explicado, segundo a socióloga, pela separação postulada pela democracia liberal entre as esferas econômica e política (Jaerisch 1975, p. 121). Ela aponta, assim, para uma componente objetiva dessa espécie de confusão ideológica.
Em relação à ausência de uma consciência de culpa com relação à adesão popular ao nazismo, Jaerisch argumenta que, entre os membros da classe trabalhadora, estavam muitos daqueles que mais sofreram as consequências nefastas da guerra, donde a dificuldade de se identificar com o agressor. A isso somavam-se a maior insegurança econômica experimentada por esse setor social e a concorrência direta com os trabalhadores estrangeiros como causas para o preconceito mais acentuado em relação aos migrantes (Jaerisch 1975, p. 122).
O assentimento a tais sentenças pelos estratos mais baixos dos assalariados não deve ser interpretado como expressão de uma ideologia particular; ao contrário, seu conteúdo corresponde a experiências concretas de vida, à necessidade de ter que se submeter à disciplina e à ordem no local de trabalho, ao longo da vida, para poder se reproduzir. (Jaerisch 1975, p. 129)
Em outras palavras, tanto para Jaerisch, como para Freyhold, não é razoável concluir que a classe trabalhadora é essencialmente autoritária apenas porque os truques fascistas mimetizam alguns dos códigos, valores e modos de sociabilidade identificados nas camadas mais baixas. Em primeiro lugar, porque se trata mesmo de truques – e sua eficácia reside justamente nessa capacidade de iludir. Além disso, tais conclusões derivam de uma seleção arbitrária de traços do tipo fascista, de um lado, e da sociabilidade das classes baixas, de outro. Lipset ignorou, deliberadamente ou não, as variáveis identificadas na sociabilidade dessas classes que conotam uma tendência democrática, como o pendor à cooperação, a valorização do mínimo esforço para a obtenção de um máximo bem (recusa ao trabalho?) e o antielitismo. Em terceiro lugar, o autor negligencia certos valores antidemocráticos que caracterizam as classes médias, como o convencionalismo, a competição, a preocupação exagerada com o status individual, a submissão à autoridade, o esnobismo (Freyhold 1971, p. 77; cf. Miller & Riessman 1961, p. 272). Em quarto lugar, Freyhold argumenta que a alta pontuação das classes baixas seria explicada muito mais pela diferença de escolaridade (portanto não por uma condição psicológica), que seria a causa de uma menor capacidade dos entrevistados de identificar certos jargões correntes na época de Hitler.
No que se refere às opiniões propriamente políticas dos entrevistados, Jaerisch destaca que o tipo “não preconceituoso”, ou “democrata”, apesar de mais interessado em política – como já havia sublinhado Freyhold – tende a assumir posições tipicamente reformistas, senão conformistas.
Assim, aqueles que seriam classificados como não preconceituosos mostram ceticismo e críticas em relação aos sindicatos, algo que, para os autores, foi inesperado, mas não surpreende, dada a situação de classe dos entrevistados. Em vão pode-se procurar por sinais de atividade política entre eles. Se quisermos definir o tipo sem preconceitos ou “democrático” nas categorias políticas, na melhor das hipóteses a favor de reformas sociais no sentido do New Deal. Apesar de toda a ênfase na desigualdade econômica e social e da influência dos interesses capitalistas monopolistas, o dado sistema democrático burguês forma o quadro político de referência neste estudo do Instituto. (Jaerisch 1975, p. 177).
Assim, a escala F, tal como foi aplicada na Alemanha, assume implicitamente, como critério do tipo não autoritário, a afirmação do status quo, além de valores e visões de mundo próprias à classe média – a qual, em sua posição social, vê na democracia liberal um sistema satisfatório, uma vez que garante seu status e seus privilégios. Por esse prisma, o ceticismo e a apatia da classe trabalhadora em relação às instituições democráticas só podem aparecem como potencialmente autoritários. Em sua tese, Jaerisch procurou mostrar que uma tal distorção da realidade histórica e sociológica advém de uma deformação da própria metodologia empregada na aplicação da escala F, induzida por certa noção de neutralidade científica.
Resumo
Após retorno de seus principais integrantes do exílio nos Estados Unidos, o IfS deu início às pesquisas acerca do potencial de reorganização das forças reacionárias na sociedade alemã do pós-guerra. As teses de doutorado das sociólogas Jaerisch e Freyhold dão mostra disso, na medida em que são as duas publicações do IfS que analisam os resultados da aplicação da escala F na Alemanha durante toda a década de 1960. No que se refere à pesquisa de Jaerisch sobre a recepção da propaganda do NPD, trata-se de uma crítica à aplicação da escala F sem especificação de classe. Jaerisch insiste que, se os “autoritários” da pesquisa são sobretudo membros da classe trabalhadora e os “não autoritários” provêm principalmente dos setores médios, isso se deve ao fato de que as frases do questionário são marcadas por expressões, valores e códigos próprios à classe média. Além disso, as duas autoras entendem que a correlação estabelecida por Seymour Lipset entre o grau de autoritarismo e a renda é arbitrária. Essa tese ignora, de um lado, elementos identificados à camada popular que conotam tendências democráticas e, de outro, deixa de lado aspectos da visão típica da classe média que implicam uma atitude autoritária ou de simples afirmação do status quo.
Notas:
[1] Doutoranda em filosofia social pela Universidade de Humboldt de Berlim.
Bibliografia
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Para citar este texto: AFSHAR, Yasmin. A pesquisa sobre o autoritarismo em Frankfurt nos anos 1960: Michaela von Freyhold e Ursula Jaerisch às voltas da escala F. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 20 de dezembro de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/12/20/a-pesquisa-sobre-o-autoritarismo-em-frankfurt-nos-anos-1960-michaela-von-freyhold-e-ursula-jaerisch-as-voltas-da-escala-f-por-yasmin-afshar/
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