Por Gabriel Peters
A (des)construção social de uma reputação
Sempre reeditado, traduzido para quase vinte línguas e objeto de um sem-número de citações, o livro A construção social da realidade [1966], de Peter Berger e Thomas Luckmann, também desencadeou uma boa dose de controvérsias e mal-entendidos (Vera, 2016: 3) . Por um lado, um índice do reconhecimento que a obra angariou é o fato de ter sido a quinta mais votada em uma enquete promovida pela Associação Internacional de Sociologia para escolher os livros mais importantes da disciplina no século XX[i]. Por outro lado, como o próprio Luckmann afirmou certa feita, é comum termos a impressão de que o livro é mais citado do que estudado atentamente.
Uma parte importante da ontologia social formulada por Berger e Luckmann diz respeito ao processo em que os produtos históricos da atividade humana ganham autonomia quanto aos seus produtores, passando a confrontá-los à maneira de forças exteriores e independentes. Ironicamente, o destino da expressão “construção social” nas ciências humanas das últimas décadas do século XX é um exemplo histórico dessa autonomização, graças à qual o termo ganhou conotações semânticas não tencionadas e mesmo abertamente repudiadas por seus autores. O principal dentre tais desvios semânticos foi, sem dúvida, sua associação com um relativismo pós-moderno segundo o qual não haveria qualquer realidade fora dos discursos e representações socialmente veiculados acerca do que é “realidade”. Ademais, ainda que o livro antecipasse as “teorias de síntese” voltadas à dialética entre objetividade e subjetividade no mundo social, sínteses que dariam fama às estrelas do “novo movimento teórico” (Alexander, 1987) dos anos 1970 e 1980, as discussões sobre a teoria social contemporânea não costumam situá-lo no mesmo nível de importância da teoria da prática de Bourdieu, da teoria da estruturação de Giddens ou da teoria da ação comunicativa de Habermas. Acho injusto.
Exteriorização, objetivação e interiorização: Berger, Luckmann e o “novo movimento teórico”
“É tão verdade serem as circunstâncias a fazerem os homens quanto a afirmação contrária” (Marx; Engels, 1974: 49)
Em 1966, portanto alguns anos antes que Giddens e Bourdieu oferecessem suas próprias sínteses teóricas, Berger e Luckmann já haviam recorrido ao raciocínio dialético de Marx para explicar como a sociedade pode existir simultaneamente como “significado subjetivo”, tal qual ensinou Weber, e “exterioridade objetiva”, tal qual ensinou Durkheim. Os atributos do edifício analítico de Berger e Luckmann que prefiguram o “novo movimento teórico” não se resumem à dialética entre ação individual e estruturas sociais. Eles também incluem: a) um modus operandi sintético de produção teórica, no qual diferentes abordagens são combinadas em um produto original, i.e., irredutível aos ingredientes intelectuais que participaram de sua construção; b) um foco sobre os esquemas cognitivos de apreensão do mundo e orientação da conduta, tidos como centrais ao laço entre conduta individual e ordem societária (Reckwitz, 2002); c) de modo correlato, uma visão do saber e da linguagem de senso comum não apenas como simples ferramentas de representação do mundo societário (i.e., da “construção” cognitiva da realidade), mas como instrumentos das próprias atividades históricas de (re)produção de tal mundo (i.e., da “construção” prática da realidade social).
Berger e Luckmann caracterizaram processos sócio-históricos em termos de uma dinâmica tríplice que envolve “exteriorização”, “objetivação” e “interiorização”. Articulando a antropologia marxiana do “trabalho” à tradição alemã da “antropologia filosófica” (Scheler, Gehlen, Plessner), a dupla sustenta que ser humano é projetar-se ou exteriorizar-se ativamente no mundo circundante, moldando-o com os poderes construtores de nossas mentes e corpos. O caráter historicamente cumulativo dessas empreitadas construtivas faz com que o mundo no qual novas gerações de indivíduos vêm a lume se identifique menos e menos com a natureza intocada e, em vez disso, mais e mais com um ambiente material e simbólico já trabalhado pelas iniciativas de gerações anteriores[ii]. Aquela cumulatividade histórica só pode existir, entretanto, quando acompanhada de dois outros processos: a objetivação dos resultados materiais e simbólicos das exteriorizações humanas (artefatos técnicos, representações do real, linguagens naturais, modos de organização da interação etc.), por meio da qual tais resultados se autonomizam frente aos seus criadores, tornando-se disponíveis às novas gerações; e a interiorização, por parte dessas novas gerações, desses produtos históricos legados pela atividade de seus antepassados, interiorização que habilita os novos atores a se exteriorizarem no mundo, reiniciando o ciclo.
Ao tornarem-se objetivadas, as exteriorizações da atividade corpórea e mental dos seres humanos tornam-se capazes, portanto, de adquirir uma “longa duração” (Braudel) que ultrapassa as vidas de quaisquer indivíduos particulares. Tamanha força e persistência histórica faz com que estas exteriorizações tendam a ser vivenciadas pelos indivíduos como realidades objetivas e independentes de suas ações – pensemos nos dias da semana, no sistema capitalista ou na língua portuguesa. Há, entretanto, um componente enganoso de reificação nessa experiência: por mais que as exteriorizações objetivadas da atividade humana, como sistemas políticos ou visões religiosas de mundo, sejam vivenciadas pelo membro ordinário da sociedade como realidades completamente exteriores e independentes, elas só continuam a existir historicamente, em última instância, devido às condutas de múltiplos indivíduos como ele – isto é, dotados dos interesses e das habilidades necessárias para manter aquelas exteriorizações em movimento histórico.
Como convém a sociólogos treinados na metodologia weberiana, o retrato sequencial dos momentos de “exteriorização”, “objetivação” e “interiorização” constitui um artifício heurístico para organizar nossa compreensão da inter-relação histórica entre atores individuais e estruturas coletivas. Qualquer período selecionado na história de sociedades concretas apresentará, na prática, uma mistura empírica dos três elementos. Longe de significar um ciclo de mera repetição, ademais, a dinâmica retratada por Berger e Luckmann também está aberta à mudança em cada uma das suas fases, mesmo que tal mudança venha misturada com doses de reprodução. Vejamos um exemplo: a ciência como corpo de conhecimento coletivo. Ao escrever seus Princípios matemáticos da filosofia natural, Isaac Newton (1643-1727) exteriorizou suas ideias físico-matemáticas em um livro: uma ferramenta de objetivação (i.e., de transformação em objeto) do que se passava em sua subjetividade. A forma objetivada do trabalho científico do físico inglês foi tanto material (p.ex., o papel e a tinta dos livros) quanto semiótica (p.ex., signos matemáticos e linguísticos cujo significado é socialmente convencionado). Foi esse caráter duplo de objetivação material e semiótica que tornou seu trabalho disponível para estudo e aprendizado por físicos nascidos bem após a morte de Newton. Graças a seu processo de formação científica, isto é, da interiorização de parte do conhecimento legado por gerações pregressas de pesquisadores, as gerações subsequentes de cientistas não precisam refazer todo o percurso cognitivo de antecessores como Newton, mas podem partir de onde tais antecessores “pararam” e sair em busca de novos conhecimentos. Quando tal trabalho, ancorado “nos ombros de gigantes” como Newton, chega a novos saberes e “enxerga mais longe”, tais saberes são, então, exteriorizados…daí objetivados…daí interiorizados por novas gerações…e assim por diante.
Uma vez mais, o esquema dos três processos é suficientemente flexível para se adequar à complexidade de casos sócio-históricos. Por exemplo, longe de significarem um fiat lux vindo do nada, as primeiras exteriorizações de Newton, por impressionantes que fossem na sua criatividade intelectual, já dependeram de uma dose significativa de interiorização prévia do conhecimento físico-matemático herdado pelo seu cenário sócio-histórico. Para dar outra ilustração daquela complexidade: longe de significar a aceitação total do conjunto das ideias newtonianas, a objetivação da sua contribuição na forma de um conhecimento coletivo, propriedade de uma comunidade de pesquisadores, implicou um trabalho significativo de filtragem e refinamento histórico – por exemplo, a imensa maioria dos físicos não “interioriza” as ideias newtonianas pelo estudo direto de sua obra, mas tão-só da fatia dela que foi integrada, por outros professores e pesquisadores, aos manuais usados na formação em física (Kuhn, 1975).
De artefatos técnicos (p.ex., a mala com rodas) a línguas naturais (p.ex., o português do Brasil), da mensagem religiosa em textos bíblicos (p.ex., o Antigo Testamento) até figuras míticas do folclore (p.ex., a mula sem cabeça), considerações similares se aplicariam.
O que cabe em uma construção?
A abordagem de Berger e Luckmann combina, no fim das contas, dois veios da noção de “construção”. O primeiro é schütziano, consistindo na ideia de que as representações que os agentes fazem da realidade não são meramente acessórias à vida social. Elas fornecem, em vez disso, os próprios instrumentos pelos quais o mundo societário é imbuído de sentido e organizado, na prática, pelos mesmos agentes. Em conexão com a sociologia do conhecimento, Berger e Luckmann enfatizam, assim, que a realidade não é percebida pelos seres humanos de modo direto e não mediado, mas sim através das categorias de sentido oriundas de seu meio social. Por exemplo, quando olho pela janela nesse instante e vejo árvores, pessoas, carros, prédios, cachorros e nuvens, estou percebendo o mundo espontaneamente segundo categorias ou “tipificações” que não inventei, mas que interiorizei do meu cenário sociocultural. Em conexão com a fenomenologia social de Schütz, Berger e Luckmann acentuam, ainda, que tais atribuições de significado oferecem aos atores as próprias orientações de conduta que eles mobilizarão em diferentes situações sociais: do pedido ao garçom em um restaurante ao pagamento ao cobrador no ônibus, a ordenação prática das condutas sociais depende de uma ordem intersubjetiva de significados partilhados (p.ex., tipificações de situações interacionais como “comer em restaurante” ou “usar transporte público” e tipificações de papéis sociais como “garçom”, “cobrador”, “cliente”, “usuário” etc.), graças aos quais os agentes envolvidos co-ordenam suas ações.
Além desse sentido de construção sociocognitiva, no entanto, Berger e Luckmann também trabalham com uma acepção processual do termo, associada a uma visão de estruturas e instituições sociais que procura escapar à sua naturalização ou fetichização, realçando, em vez disso, seu caráter histórico e sua dependência da agência humana. De origem hegeliano-marxista, essa visão sustenta que estruturas e instituições devem ser compreendidas como construções históricas, isto é, como produtos contínuos da atividade humana, em contraposição a entidades e mecanismos naturais cuja existência independeria da agência e da vida social do anthropos (p.ex., a lei da gravitação universal ou o Aconcágua). Remontando aos esforços de Marx em demonstrar a historicidade de condições sociais de existência ideologicamente representadas como naturais e necessárias, tal concepção de “construção social” abarca, portanto, não apenas ideias e representações do mundo, mas também os produtos materiais da práxis humana ao longo da história (edificações, artefatos tecnológicos etc.). Reagindo às interpretações relativistas da noção de construção social, o próprio Luckmann veio a sublinhar esse sentido também materialista da expressão, que certamente não é redutível às interpretações “textualistas” (Reckwitz, 2002) e “discursivistas” que ela veio a adquirir em suas utilizações “pós-modernas” (i.e., na identificação de “construção social de x” exclusivamente à “construção discursiva de x”).
Sociologia do conhecimento?
Os dois autores modularam sua reflexão sobre a “construção social da realidade”, a qual também era desde logo uma análise da construção da realidade social, como uma expansão, inspirada na fenomenologia de Schütz, da subdisciplina então conhecida como “sociologia do conhecimento”. Para Berger e Luckmann, em vez de se circunscrever às construções sistemáticas da filosofia, do pensamento político, da religião, da ciência, da arte etc., a “sociologia do conhecimento” deveria pesquisar tudo aquilo que opera como “conhecimento” em contextos sociais, inclusive – na verdade, diriam os autores, sobretudo – as crenças e modos de raciocínio que formam o “senso comum” de tal ou qual sociedade. O fato de Berger e Luckmann haverem escolhido, para A construção social da realidade, o subtítulo pomposo “um tratado de sociologia do conhecimento”, além de sugerir um tom de gravidade intelectual “germânica” que não combina com a prosa despojada dos dois autores[iii], pode ter predisposto alguns leitores a tomarem o livro como contribuição a uma subárea temática da sociologia, mais do que à teoria social como tal (Berger; Luckmann, 1985: 33). A bem da verdade, a proposta de ampliação da sociologia do conhecimento pode ser lida, com o benefício do olhar retrospectivo, como uma versão particular do que Reckwitz (2002) chamou de guinada “culturalista” na teoria social. O cerne dessa guinada consiste em elencar esquemas cognitivos de interpretação do mundo e orientação prática da ação como mediações decisivas entre conduta individual e ordem societária:
“…o conhecimento situa-se no coração da dialética fundamental da sociedade. ‘Programa’ os canais pelos quais a exteriorização produz um mundo objetivo. Objetiva este mundo por meio da linguagem e do aparelho cognoscitivo baseado na linguagem, isto é, ordena-o em objetos que serão apreendidos como realidade. É em seguida interiorizado como verdade objetivamente válida no curso da socialização. Desta maneira, o conhecimento relativo à sociedade é uma realização no duplo sentido da palavra. No sentido de apreender a realidade social objetivada e no sentido de produzir continuamente esta realidade” (Berger; Luckmann, 1985: 94).
O” duplo sentido” a que se referem Berger e Luckmann é tanto inspirado em uma interpretação lukácsiana da dialética marxista[iv] como uma antecipação do que uma linguagem mais atual denominaria de performatividade do saber: “to realize”, em inglês, significa tanto “realizar” (a construção no sentido histórico, processual, prático) quanto “dar-se conta de” (a construção no sentido ideacional, cognitivo, schütziano).
Ainda que sublinhasse que o senso do que é real e irreal entre os seres humanos depende fortemente de seus reforços coletivos, a obra de Berger e Luckmann não endossava uma posição antirrealista ou relativista segundo a qual existiriam tantas realidades quantas fossem as representações da realidade. Na verdade, tal impressão foi produzida, para lamento de Berger e Luckmann, pelo destino posterior da expressão “construção social de…”. Nesse destino, deu-se um enfraquecimento daquele veio materialista da ideia de “construção”, passível de abrigar não apenas construções simbólicas (p.ex., idiomas, mitos e ideologias políticas), mas também produtos físicos duráveis da atividade humana (p.ex., a malha urbana de uma cidade, um parque industrial). Conforme passou a ser veiculada em uma atmosfera intelectual permeada por motivos “pós-estruturalistas” e “pós-modernos”, a ideia de “construção social” passou a ser identificada somente a construções textuais ou discursivas, dando ensejo a versões daquele antirrealismo relativista segundo o qual, não havendo mundo fora de um “texto” (“discurso”, “jogo de linguagem” etc.), existiriam tantos mundos quantos fossem os “textos” (“discursos”, “jogos de linguagem” etc.).
A realidade da construção social
O acento de Berger e Luckmann recai sobre o fato de que o senso de realidade mantido pelo indivíduo, ao longo de sua trajetória experiencial pelo mundo, é enormemente dependente de suportes coletivos através dos quais ele se sente justificado em continuar acreditando no que acredita. Nossas concepções quanto ao que é real ou irreal, não somente no mundo societário, mas no próprio universo material e objetivo, se ancoram em tais confirmações coletivas; i.e., no fato de que aquelas concepções são partilhadas pelos demais membros relevantes de nosso contexto social. Uma ilustração singela dessa ancoragem coletiva do nosso senso individual de realidade é oferecida pelos cenários em que testamos a veracidade de nossas impressões subjetivas do mundo pela comparação com as impressões de outros. Se percebo algo que parece discrepar de minha imagem habitual da realidade (p.ex., ouço um comentário advindo de uma voz que não é nem minha nem de qualquer das outras pessoas presentes no mesmo aposento), a primeira providência a tomar para saber se minha percepção corresponde a algo de real consiste em perguntar às demais pessoas presentes se elas perceberam o mesmo que eu (p.ex., no caso, se alguma delas fez e/ou ouviu o mesmo comentário que eu ouvi). Ainda que, no mais das vezes, tomemos nossa experiência sensória do mundo material como um contato direto com as coisas mesmas, nossa dependência de um senso intersubjetivamente partilhado de realidade se evidencia em tais momentos: se nenhuma das pessoas presentes ouviu o comentário, concluo eu, deve haver algo errado com as minhas faculdades cognitivas e perceptuais, não com as deles.
Conectando sua sociologia do conhecimento à preocupação fenomenológica com “realidades múltiplas”, Berger e Luckmann mostram que a sociedade dispõe de instrumentos cosmológicos e práticos para lidar com experiências de esferas que parecem escapar à “realidade suprema” da vida cotidiana. Dos sonhos às alucinações, do mergulho em narrativas ficcionais a estados emocionais percebidos como estranhos pelos próprios indivíduos que os vivenciam, as experiências de escape à “realidade suprema” são explicadas e como que neutralizadas, no seu potencial perturbador, pela própria cosmologia coletiva que sustenta um senso partilhado do real. Assim, para continuar com o exemplo da escuta de vozes, a experiência pode ser interpretada, digamos, como comunicação mediúnica com espíritos desencarnados em um contexto social e como um sintoma de psicose em outro. Tais enquadramentos cognitivos distintos correspondem, é claro, a dispositivos práticos também distintos pelos quais o “problema” é enfrentado em diferentes coletividades – p.ex., através de um ritual xamânico (com base na ideia de que as vozes advêm de espíritos ou divindades), da consulta a um psicanalista (com base na ideia de que a psicose é explicável em termos de conflitos inconscientes na psique do sujeito) ou da terapia medicamentosa conduzida por um psiquiatra (com base na ideia de que a psicose é explicável em termos de disfunções neuroquímicas do cérebro).
Pelo menos na maior parte do tempo, as concepções partilhadas de mundo não são tidas pelos membros da sociedade como uma forma entre outras de conceber o real, mas como evidências obtidas do acesso direto à realidade tal qual ela é. Como Wittgenstein afirmou em sua reflexão sobre a certeza (1969: 18), as imagens de mundo que os membros de uma “forma de vida” social adquirem através da participação nela não são sustentadas porque eles foram persuadidos de sua validade mediante argumentação ou demonstração empírica. Tais imagens de mundo oferecem, em vez disso, os próprios pressupostos tácitos, tomados como absolutamente autoevidentes, com base nos quais as pessoas distinguem entre o verdadeiro e o falso. Nas palavras de Berger em seu convite despretensiosamente sábio à sociologia:
“…a sociedade fornece…nossa lógica e o acervo de informação (ou desinformação) que constitui nosso ‘conhecimento’. Raríssimas pessoas, e mesmo essas apenas em relação a fragmentos dessa cosmovisão, estão em condições de reavaliar aquilo que lhes foi assim imposto. Na verdade, não sentem nenhuma necessidade de reavaliação porque a cosmovisão em que foram socializados lhes parece óbvia. Uma vez que ela também será considerada assim por quase todos os membros de sua própria sociedade, essa cosmovisão ratifica-se, valida-se. Sua ‘prova’ está na experiência reiterada de outros…que também a tomam como coisa natural, assentada” (Berger, 1999: 132).
A realidade para além da construção social
Isto dito, Berger e Luckmann já haviam buscado se resguardar de interpretações relativistas de seu argumento quanto à construção social da realidade, ao distinguirem entre a sociologia do conhecimento e a epistemologia das ciências sociais; ou, dito de modo mais preciso, entre um retrato substantivo de como opera a cognição humana, de um lado, e uma tentativa de fundamentação epistêmica da validade do conhecimento científico-social, de outro. Na breve revisão crítica que dedicam à história da sociologia do conhecimento, eles notam que as implicações do primeiro empreendimento para o segundo dominaram os debates em torno das ideias que Mannheim articulou em Ideologia e utopia. O problema fundamental consistia na questão da (in)compatibilidade entre: a) a afirmação sociológica de que os pontos de vista sobre o mundo social são condicionados pelo posicionamento do pesquisador em tal mundo (p.ex., de classe, raça, gênero, etnicidade, sexualidade etc.), de um lado; b) a pretensão do mesmo pesquisador em oferecer um retrato objetivo e global do universo societário em que ele está imerso, de outro. Se os pontos de vista sobre o mundo social são reconhecidos como parciais e situados, na medida em que derivam de posições particulares nesse mundo, a busca de um conhecimento sociológico objetivo, capaz de transcender aquelas parcialidades, não seria um objetivo impossível? Não há espaço para discutirmos as múltiplas respostas a tal questão no presente texto (tenho uma reflexão mais detalhada sobre o tema aqui). O que importa é notar que Berger e Luckmann buscam escapar a este debate por meio de uma separação nítida entre sociologia do conhecimento e epistemologia das ciências sociais:
“Incluir as questões epistemológicas concernentes à validade do conhecimento sociológico na sociologia do conhecimento é, de certo modo, o mesmo que procurar empurrar um ônibus em que estamos viajando. Sem dúvida, a sociologia do conhecimento, como todas as disciplinas empíricas que acumulam indícios referentes à relatividade e determinação do pensamento humano, conduz a questões epistemológicas a respeito da própria sociologia, assim como de qualquer outro corpo científico de conhecimento. (…) Está longe de nós o desejo de repelir estas questões. Tudo quanto desejaríamos afirmar aqui é que estas questões não são por si mesmas parte da disciplina empírica da sociologia. Pertencem propriamente à metodologia das ciências sociais, empreendimento que pertence à filosofia e é por definição diferente da sociologia, que na verdade é objeto de suas indagações. A sociologia do conhecimento, juntamente com outros criadores de dificuldades epistemológicas entre as ciências empíricas, ‘alimentará’ de problemas esta investigação metodológica. Não pode resolver estes problemas em seu próprio quadro de referência” (Berger; Luckmann, 1985: 28).
O destino posterior da expressão “construção social de…” revelou, talvez, que Berger e Luckmann não podiam escapar tão facilmente do confronto com as implicações epistemológicas de um argumento que mostrava o quanto o senso humano da realidade depende de representações socialmente partilhadas. Ainda que os dois autores considerassem essa tese substantiva compatível com uma epistemologia realista, as apropriações posteriores da expressão tenderam a reduzir a noção de “construção social”, como vimos, àquela de “construção discursiva” ou “textual”, atrelando-a implícita ou explicitamente à ideia pós-estruturalista de que não há “fora do texto”. Embora o livro conferisse um acento fundamental à sociedade tal como simbolicamente representada pelos seus membros, o conceito de “construção social” ali trabalhado também se inspirava, vimos também, nas noções materialistas de práxis e trabalho oriundas de certa tradição marxista. Não se tratava, portanto, de circunscrever a vida social ao plano das “ideias” e “representações”, mas de enfatizar sua historicidade e processualidade, isto é, o fato de que instituições sociais só existem enquanto produzidas e reproduzidas pela atividade humana. Longe de reduzir a sociedade a “texto”, portanto, o livro acentuava, como fariam as praxiologias de Bourdieu e Giddens posteriormente, a dialética histórica entre o “texto” e o “fora do texto”, i.e., entre cultura e prática.
Notas
[i] Na ordem, os quatro livros que receberam mais votos: Economia e sociedade (Max Weber); A imaginação sociológica (C. Wright Mills); Teoria social e estrutura social (Robert Merton); A ética protestante e o espírito do capitalismo (Max Weber). Logo após o livro de Berger e Luckmann – em sexto, sétimo e oitavo lugares respectivamente -, vieram: A distinção (Pierre Bourdieu); O processo civilizador (Norbert Elias); Teoria da ação comunicativa (Jürgen Habermas).
[ii] Como destacaram Geertz (1989, cap.2) e os defensores da “hipótese do cérebro social” (Nettle, 2009) – uma feliz e rara convergência entre antropologia cultural e psicologia evolucionária, diga-se de passagem -, a própria configuração biológica do cérebro humano se deu sob influência das pressões seletivas exercidas pelos ambientes de nossos ancestrais evolutivos (como o homo habilis e o homo erectus), ambientes já marcados por interações sociais complexas, bem como por algum uso de artefatos técnicos e de ferramentas simbólicas de comunicação.
[iii] Freitas (2017) descascou implacavelmente a pretensão, afirmada por Berger e Luckmann no livro, de oferecerem um “raciocínio teórico sistemático”.
[iv] Os acenos ao marxismo em A construção social da realidade dariam lugar a referências cada vez mais cáusticas nos estágios posteriores da carreira de Berger (por exemplo, nas suas reflexões maduras sobre pluralismo religioso), certamente em conexão com sua participação em círculos conservadores na política estadunidense (Hamlin, 2016).
Referências
ALEXANDER, J. “O novo movimento teórico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 2, 1987.
BERGER, P. Perspectivas sociológicas. Petrópolis: Vozes, 1972.
BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.
FREITAS, R.S. “Uma cilada chamada ‘raciocínio teórico sistemático’”. Novos Estudos Cebrap, v.36, n.2, p.145-156, 2017.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Civilização Brasileira, 1974.
NETTLE, D. The evolution of creative writing. In: KAUFMAN, J.; KAUFMAN, S.B. The psychology of creative writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
PETERS, G. “Como se Deus não existisse”: da secularização ao pluralismo na sociologia da religião de Peter Berger. Sociologias, v.21, n.50, p.296-311, 2019.
RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory,v.5, n.2, p. 243-263, 2002.
VERA, H. “Rebuilding a classic: The social construction of reality at 50”. Cultural sociology, v.10, n.1, p. 3-20, 2016.
WITTGENSTEIN, L. On certainty. Oxford: Basil Blackwell, 1969.
Para citar este texto: PETERS, Gabriel. As armadilhas de um título: nota sobre “A construção social da realidade”, de Peter Berger e Thomas Luckmann. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 19 de julho de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/07/19/bergereluckmann/
Boa discussão, mas há sempre um recurso polêmico, de se reduzir as discussões “pós-estruturalistas”, “pós-modernas” ou em termos de “discurso”, como se todas fossem ingenuamente relativistas e pensassem tudo como texto. Aí o argumento fica empobrecido e impede um debate crítico com outras posições, também críticas, de incorporação desses autores “pós”. Uma pena …
Caro Marcos,
Como sempre, é ótimo contar com sua leitura e comentário! Acho que você tem razão sobre certa tendência a leituras simplificadoras dos modos pelos quais autores tidos por “pós-estruturalistas” ou “pós-modernos”, como Foucault e Derrida, problematizam a relação entre discurso (ou texto) e verdade. Não entrei nessa discussão porque ela me levaria para muito longe de um tamanho razoável de post, hehehe, mas um argumento de combate a imagens de Berger e Luckmann como relativistas pós-modernos poderia se estender para as simplificações inerentes à imagem mesma do “relativismo pós-moderno”. Há, em primeiro lugar, as diferenças entre os autores comumente jogados nessa rubrica – com, digamos, o hipertextualismo do jovem Derrida contrastando com a genealogia de Foucault, que já é desde sempre um modo de interconectar o “texto” ao “fora do texto”. De todo modo, o desafio maior me parece ser o de combinar uma análise robusta de “regimes de verdade” como construções sócio-históricas (p.ex., hoje, o regime das bolhas informacionais) com uma postura epistemológica que não seja completamente agnóstica, em última instância, quanto à distinção entre verdade e falsidade (p.ex., em relação a questões como a mudança climática ou os efeitos da cloroquina). Tinha pensado em inserir um parágrafo sobre “The social construction of what?”, do Ian Hacking (não por acaso, leitor atentíssimo de Foucault), como exemplo de caminho nuançado nesse sentido, mas desisti porque a discussão merecia outro texto.
Abraço,
Gabriel
Oi, Gabriel, na verdade, eu me expressei mal. A tendência de reduzir os assim chamados pós-modernos a espantalhos teóricos não estava no seu texto. É mais um certo rumor que percorre a teoria social e que me lembrei ao ler sua discussão. E porque estava lendo também simultaneamente novas interpretações sobre o “não-debate” entre Habermas/Foucault”, acabei cruzando tudo. Problemas que acontecem hoje quando lemos tudo em modo hiperlink … rs … mas parabéns novamente pelo blog, são excelentes as publicações. Abraços!
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