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Irreduções (Parte 6), por Bruno Latour

retopictics
Retopictics: A Renegade Excavation (2001), por Julie Mehretu

Por Bruno Latour
Tradução: Lucas Faial Soneghet

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Esse post é a continuação da série Irreduções, cuja quinta parte pode ser encontrada nesse link.

3.2.3 Como impedimos de falar aqueles no nome de quem falamos?  Como é possível cimentar num bloco único todos aqueles que foram recrutados por pura sorte? Como pacificar os rebeldes e os dissidentes? Há uma entidade única em algum lugar que não tem que resolver esses problemas? A resposta é sempre a mesma, pois há somente uma fonte de força: unir forças (1.3.2). Mas como podemos unir os rebeldes? Encontrando outros aliados que forçam os primeiros a se manterem juntos, e assim por diante, até que um gradiente de coisas incertas eventualmente torna a primeira fila da aliança resistente e, assim, real (1.1.2).

  • A noção de sistema não nos serve de nada, porque um sistema é o resultado de uma bricolagem e não o ponto de partida do funcionamento (2.1.4). Para que um sistema exista, seriam necessárias unidades bem definidas – no entanto, elas são objeto de debate; funções bem definidas – no entanto, luta-se para defini-las; hierarquias bem estabelecidas – no entanto, a maioria dos atores não sabem se obedecem ou se comandam; e trocas equivalentes entre unidades e entre sistemas – no entanto, todos contestam as taxas e direções das trocas.

3.2.4 Ao se associar, todo ator tem uma escolha: se estender mais, arriscando dissidência e dissociação, ou reforçar consistência e durabilidade, às custas de não ir muito longe.

  • Totalidades só existem em redes estreitas (1.2.7). Quanto mais estreita a rede, mais eficaz é o referente interno que serve como pedra de toque para tomar as decisões sobre o que é idêntico e o que é diferente. Nesses lugares que se encontram, cristalizadas, algumas coerências belas, fanatismo, lógica formal, várias estupidezes obtusas, muitas espécies de loucura, e alguns infernos…

3.2.5 Um estado de forças é bem definido, mas por muitas forças que não concordam sobre nada e que só conseguem associar-se através de longas redes nas quais falam sem parar, sem nunca poderem se convocar ou se dominar. Juntas, enredadas uma na outra, mas incapazes de concordar sobre o que os liga, os opõe e os agrega, as redes estão, no entanto, a reforçar-se e a resistir, ano após ano, aos golpes do destino. Sólidas e frágeis, simples e misturadas, lisas e granuladas, as enteléquias costuram tapetes estranhos. É assim que os mundos vêm sendo definidos e identificados ao longo do tempo.

  • Não falo de “cultura”, porque essa palavra está reservada a somente uma das unidades recortadas pelo Ocidente para definir o ser humano. No entanto, as forças não podem ser divididas em “humanas” e “não-humanas”, exceto localmente e para fortalecer certas redes. Se não falo de “sociedade”, é porque as associações que defino são demasiado livres para se limitares àquelas prometidas pelo socius. Por fim, não falo de “natureza” porque aqueles que falam em nome de grupos sanguíneos, cromossomos, vapor de água, placas tectônicas ou peixes não podem ser distinguidos – exceto localmente e por um tempo – daqueles que falam em nome do sangue, dos mortos, das inundações, dos infernos e dos peixes. Eu lhes concederia o termo “inconsciente” se vocês estivessem livres o suficiente de costumes, de ritmos e de associações para fazer o mesmo.

3.3.1 Para se espalhar sem perder coerência, um actante precisa de aliados fiéis e ativos que aceitam o que ele os diz, se identificam com sua causa, cumprem com todas as funções definidas para eles, e o ajudam sem hesitação quando convocados. A busca por esse aliado ideal ocupa espaço e tempo daqueles que querem ser mais fortes que os outros (1.3.1). Assim que encontrar um aliado um pouco mais fiel, uma enteléquia pode forçar outro ator a se tornar ainda mais fiel. Ele cria um gradiente que força outros a tomar forma e não mudar por tanto tempo quanto puder mantê-lo (1.1.12).

  • Passamos nosso tempo procurando uma pedra para servir como bigorna, uma biocalibração para medir o nível de endorfina no sangue, uma língua de vaca para deixar um vírus penetrar no osso, uma lei para saciar o apetite de um lobby, um lobby para mudar uma lei… qualquer coisa mais dura para moldar algo mais macio. A palavra “técnico” é inutilizável porque tem sido usada há muito tempo para exorcizar certas relações de poder limitadas à chumbo e pontes.

3.3.2 O que fazer para evitar que as formas mudem assim que você vira as costas? Não vire as costas. Os poderes têm apenas um sonho: estar lá sempre e em toda parte, mesmo quando estão distantes ou desaparecem. Como permanecer presente quando outras forças as empurraram para um lado só (1.2.5)? Como elas podem estender a si mesmas quando tudo as localiza? Como eles podem estar ali e em outro lugar, agora e para sempre? Ah, o poder do mito do poder! Tudo é bom para garantir que a relação de forças presentes dure para além do instante em que essa força se retira.

3.3.3 Uma vez que uma força encontre aliados para fixar permanentemente as fileiras de outras forças, ela poderá ir mais longe. Ela pode ligar os aliados com laços tão duráveis que pode se retirar sem medo. Mesmo ausente, tudo se passa como se ela estivesse lá. No final, há apenas um conjunto de forças que se movem por ela e sem ela.

  • Esta montagem ou maquinação de forças em busca de poder recebeu entre nós o nome de “máquinas” ou “automatismos”. É um termo inconveniente, a) porque é feito para dominar todas as forças, embora seja apenas um de seus dispositivos; b) porque sempre somos enganados, quando falamos de máquinas, pela divisão que elas operam entre o duro e o mole, o voluntário e o involuntário; c) finalmente, porque assumimos que são artificiais, humanas ou materiais, enquanto sua natureza, sua origem, sua extensão e suas funções estão no desafio de forças que conspiram para construí-las.

3.3.3.1 É sempre uma questão de botar as forças umas contra as outras para ganhar poder. Então, atribuímos esse arranjo e o ganho de poder à última força presa por todas as outras.

  • O leitor agora entende porque usei os termos poder e força desde o começo. Não os usei como metáforas técnicas estendidas à filosofia. Pelo contrário, a força do autômato é obtida apenas raramente e localmente, e o poder só pode ser atribuído a ele com a condição de que esqueçamos de todas as outras forças em relação as quais ele é o último na fila. É, ao contrário, o motor roncando embaixo do capô, que é um dos possíveis deslocamentos da conspiração de fraquezas. A Diesel queria otimizar a eficiência dos corpos sociais assim como fez com os motores de combustão.  Não, foi o mesmo motor, a mesma pesquisa, a mesma otimização: comprimir, combinar, recuperar, renderizar…

3.3.3.2 Não há nada especial nestas maquinações, exceto esta injunção maquiavélica: reunir o maior número possível de aliados fiéis no interior e rejeitar, na medida do possível, aqueles dos quais duvidamos. Assim, realiza-se uma nova partilha entre os muito duros e os muito suaves, os muito fiéis e os muito infiéis.

  • Há aqueles que se deixam enganar por estar conversa de divisão entre “tecnologia” e “social”, sem perceber que “o social” pode ser o que sobra, como as aparas da mesa de um carpinteiro. Na verdade, qualquer planta pode ser lida como outro Príncipe: diga-me suas tolerâncias e eu te direi do que tens medo; que lado você escolheu e eu te direi quem você espera; que patente você evitou e eu direi quem você decidiu ignorar; quais equações você escolheu e eu direi quem você quer dominar (Coutozis, 1983).

3.3.4 Entretanto, as forças não podem jogar umas contra as outras (3.2.2). Não pode haver conspiração, nem encantamento, nem lógica, nem raciocínio, nem máquina que impeça os actantes mobilizados de girar e borbulhar em busca de outros objetivos e outras alianças. A máquina mais austera é mais populosa do que um bosque de hamadríades.

  • Leibniz estava errado de novo. Nas engrenagens do relógio também há lagos cheios de peixes e peixes cheio de lagos. Sempre encontraremos pessoas para dizer que máquinas são frias, suaves, desumanas ou estéreis. Mas olhe para a liga metálica mais pura: ela é traída por todos os lados também, como o resto de nossas alianças. Ocidentais sempre acreditam que motores são “puros” da mesma forma que argumentos são “lógicos” e palavras são “literais”. É isso que o velho capitão disse a Crusoé antes do naufrágio: “Cuidado com a pureza, ela é o vitríolo da alma.” (Tournier, 1967) (Interlúdios V e VI).

3.3.5 Para se expandir, um actante deve ser capaz de delegar a outros um programa que eles não podem trair (3.3.3), apesar do fato de que eles estão destinados a fazer justamente isso (3.3.4). Para resolver esta aporia, há somente um caminho: embora não haja nenhuma cadeia que seja sólida, uma pode fazer a outra se tornar mais forte. Assim que várias cadeias foram encenadas, essa encenação se torna realidade.

  • O poder é sempre uma impressão, uma vez que só existe fraqueza. Mas essa impressão é suficiente para concretizar diferentemente a forma das coisas, impressionando-as ou informando-as. Esse é o mistério que deve ser explicado.

3.3.6 Nós sempre entendemos erroneamente a força dos fortes. Ela é sempre atribuída a pureza de um actante, quando, na verdade, ela sempre se deve a encenação dos fracos.

Interlúdio V: Onde aprendemos com grande prazer que não existe tal coisa como um Mundo Moderno

Os brancos não estavam certos. Eles não eram os mais fortes. Quando eles chegam na ilha, seus canhões só foram disparados espasmodicamente e não eram nem um pouco úteis diante de flechas envenenadas. Seus motores quebravam frequentemente e precisavam ser consertados todo dia numa enxurrada de graxa e xingamentos. O Livro Sagrado dos seus pastores permaneceu silencioso como o túmulo. As drogas dos seus médicos agiram de forma tão errática que seus efeitos mal podiam ser distinguidos dos efeitos das drogas mais simples. Seus livros da lei estavam cheios de contradições no momento em que foram aplicadas a linhagens ou atóis. Todo dia, funcionários civis esperavam ser transferidos ou levados pela febre amarela. Seus geógrafos erraram sobre os nomes que eles davam a lugares familiares. Seus etnólogos fizeram papel de ridículo o tempo todo por causa de seus erros e confusões. Seus mercadores não sabiam o valor de nada e valorizavam penduricalhos, totens, porcos selvagens e cajus igualmente. Não, eles não eram mais fortes, os brancos não iniciados, destruídos pela febre e fedendo a peixe ou carne podre, de acordo com os nativos.

Mesmo assim eles conseguiram tornar a ilha arcaica, primitiva, pagã, mágica, pré-comercial, pré-lógica, pré qualquer coisa que pensarmos. E eles, os brancos, se tornaram assim o “mundo moderno”.

Isso nos leva a questão que é perguntada nas margens de todo país devastado: como um grupo de descrentes, fracos, ilógicos e vulgares conseguiram conquistas as multidões coesas e bem politizadas? A resposta é simples. Eles foram mais fortes que os mais fortes porque chegaram juntos. Não, melhor ainda. Eles chegaram separadamente, cada um em sua ordem e cada um com sua pureza, como uma outra praga do Egito.

Os padres falavam somente da Bíblia, e a isso e somente a isso, atribuíram o sucesso de sua missão. Os administradores, com suas regras e regulamentos, atribuíram seu sucesso a missão civilizadora de seu país. Os geógrafos falaram somente da ciência e do seu avanço. Os mercadores atribuíram todas as virtudes de sua arte ao ouro, a troca e ao mercado de ação de Londres. Os soldados simplesmente obedeceram a ordens, atribuindo o sentido de tudo que fizeram a Pátria. Os engenheiros atribuíram a eficácia de suas máquinas ao progresso.

Cada um deles achava estar numa ordem separada dos outros e forte em sua própria força. É por isso que discutiam tanto e desconfiavam uns dos outros. Em seus relatórios, os administradores denunciavam a ganância do mercador. O estudioso achou o proselitismo dos padres escandaloso, ao passo que estes pregaram dos púlpitos contra a crueldade dos administradores e o ateísmo dos estudiosos. Os etnólogos desprezavam todos, enquanto extraíam seus segredos e arrastavam suas genealogias e mitos um por um dos nativos. Todos acreditavam ser fortes por causa de sua pureza – e muitos, na verdade, eram boas pessoas que só pensavam em fé, na bandeira, na ciência ou na bolsa de valores.

Mesmo assim – e eles sabiam bem disso – era só por causa dos outros que eles conseguiam sequer ficar na ilha. Já que os padres eram muito fracos para fazer Deus sair da Bíblia, eles precisavam de soldados e mercadores para encher suas igrejas. Já que os mercadores não poderiam forçar a venda dos totens com a força do ouro somente, eles recrutaram padres e cientistas para reduzir os preços. Já que cientistas eram muito fracos para dominar a ilha somente pela ciência, eles dependiam de rondas e tarefas, dos carregadores e intérpretes emprestados pelos administradores.

Cada grupo então emprestava sua força aos outros sem admitir, e assim afirmavam reter sua pureza. Cada um seguia atribuindo sua força a seus deuses domésticos – outro, convicções íntimas, justiça, rigor científico, racionalidade, máquinas, livros de contabilidade ou cadernos. Se eles tivessem vindo um de cada vez, eles seriam sobrecarregados pelos habitantes da ilha. Se eles tivessem vindo completamente unidos, compartilhando as mesmas crenças e os mesmos deuses e misturando todas as fontes de potência como os conquistadores do passado, eles teriam sido mais facilmente derrotados, já que uma ferida sobre um, seria uma ferida sobre todos. Mas eles vieram juntos, cada um separado e isolado em sua virtude, mas todos apoiados pelo todo. Com esta tela, infinitamente frágil, eles paralisaram todos os outros mundos, pescaram todas as ilhas e singularidades, sufocaram todas as redes e tecidos por algum tempo. Aqueles que “inventaram o mundo moderno” não eram os mais fortes ou os mais corretos, e ainda não são hoje (Interlúdio VI).

CONTINUA NA PARTE 7

Referência:

LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. Harvard University Press, 1993.
LATOUR, Bruno. Les microbes, guerre et paix: Irreductions. AM Métailié, 1984.

 

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