Por Gabriel Peters
Agência e estrutura em uma “ontologia de potenciais”
Em contraste com as ambições infladas de tantos esforços teóricos do passado, Giddens (2003: 385) confere à “teoria” nas ciências sociais um papel modesto: a sensibilização cognitiva da pesquisa empírica para dimensões relevantes da vida social. Os instrumentos analíticos da teoria da estruturação munem a pesquisadora com questões de trabalho que a auxiliam no seu acesso a um contexto social particular – questões como, digamos, “quais são as ‘regras e recursos’ partilhados que os atores têm de empregar para agir eficazmente nesse contexto?”. A teoria da estruturação também oferece pistas acerca de onde podem ser achadas as respostas a tais indagações – por exemplo, ela informa à investigadora que os saberes mobilizados pelos atores em suas ações não estão restritos ao que eles podem exprimir discursivamente, mas também incluem as habilidades situadas na sua “consciência prática” (Ibid.: 440). Como as ilustrações já deixam entrever, o suporte intelectual que a teoria da estruturação pretende legar à pesquisa empírica envolve menos a formulação de generalizações causais (“se x, então y”) do que um conjunto de ferramentas conceituais: “Na ciência social,…os esquemas conceituais que ordenam e informam processos de investigação da vida social são, em grande parte, o que é e para que serve a teoria” (GIDDENS, Ibid.: IX).
A concepção giddensiana da “teoria” como um instrumento sensibilizador de investigações empíricas implica uma diretriz intelectual: as caracterizações abstratas das entidades e processos constitutivos do mundo social devem possuir “flexibilidade ontológica” (SIBEON, 2004: 13), isto é, devem manter-se abertas à variedade de processos empíricos. Em uma reflexão inteligente sobre o status epistemológico da abordagem de Giddens, Ira Cohen notou, com efeito, que o melhor modo de descrevê-la é como “uma ontologia de potenciais” (1999: 401-402). Nos posts anteriores desta série, vimos que essa ontologia da vida social tem no seu núcleo o teorema da interdeterminação entre agência e estrutura. À luz da ideia de ontologia de potenciais, esse teorema postula que sempre há alguma interdependência histórica entre ação e estrutura, mas que as formas concretas assumidas por essa interdependência em diferentes contextos sócio-históricos são tremendamente variadas.
Giddens admite sem embaraço que condições sócio-históricas distintas oferecem possibilidades discrepantes de influência da estrutura sobre a agência e da agência sobre a estrutura. Dito de outro modo, os níveis de “voluntarismo” e “determinismo” na relação entre os atores humanos e seus ambientes socioestruturais não podem ser estabelecidos a priori por um “malabarismo com conceitos abstratos” (GIDDENS, 2003: 258). Os graus de influência recíproca entre agência e estrutura em cenários coletivos concretos consistem em um problema empírico, o qual só pode, portanto, ser respondido em investigações substantivas daqueles diferentes cenários. Como uma abordagem a serviço de pesquisas empíricas de contextos societários particulares, a teoria da estruturação estabelece, no entanto, um “mínimo ontológico”: tanto a agência quanto a estrutura são co-constitutivas das práticas históricas que mantêm em existência os sistemas sociais. Nesse sentido, mesmo a conduta do mais poderoso agente ocorre em um ambiente socioestrutural de restrições e oportunidades que condicionam sua agência. A contraparte também é verdadeira: qualquer que seja o nível de coerção estrutural imposta à conduta de um agente, seu poder de agência dá a ele alguma possibilidade de “agir de modo diferente” diante daquela coerção (GIDDENS, 1989: 258).
A capacidade de “agir de modo diferente”
O autor inglês tem ciência, é claro, das alusões frequentes a coerções estruturais que não “deixam escolha” aos atores – por exemplo, uma pessoa em situação de privação material extrema “não teria escolha” a não ser vasculhar o lixo em busca de comida, assim como um indivíduo com uma arma apontada para o seu rosto “não teria escolha” a não ser dar sua carteira ao assaltante que o ameaça. Ao afirmar que os agentes humanos possuem o poder de agir diferentemente mesmo em tais cenários, Giddens não pretende, naturalmente, negar a enorme força das coerções que pesam sobre eles. Em termos ontológicos, o que ele tenciona é diferenciar os atos situados de tais agentes, como o vasculhar do lixo em busca de alimento ou a entrega dos pertences ao assaltante, de fenômenos puramente mecânicos observáveis no mundo físico (p.ex., a queda de um objeto inanimado solto no ar). As situações da pessoa que procura comida no lixo e da pessoa que obedece à ordem do assaltante já pressupõem uma dimensão de realidade inexistente em efeitos puramente mecânicos: uma subjetividade dotada de necessidades e vontades internas, como, nesses casos, a compreensibilíssima intenção de continuar a viver, seja saciando a fome, seja evitando um tiro no rosto.
Giddens menciona “um homem…obrigado, pelos deveres da sua profissão, a permanecer no seu escritório em um dia ensolarado” (1993: 82) como outro exemplo de conduta que, embora submetida a óbvios constrangimentos estruturais, depende ainda assim da “colaboração” do agente, que poderia agir diferentemente frente àqueles constrangimentos (p.ex., mandar seu chefe à m*&¨%da e sair para curtir o sol). Uma vez mais, não se trata, para o autor britânico, de negar o peso dos fatores que coagem os atos do funcionário, como as obrigações legais do emprego ou as necessidades materiais atendidas pelo seu salário, mas de diferenciar aqueles fatores de influências mecânicas irresistíveis. Interessantemente, Giddens contrasta tal conduta motivada por obrigações profissionais, portanto condicionada por coações que não invalidam a capacidade de agência do ator, à situação de um homem “obrigado a ficar em casa por ter quebrado suas pernas” (Ibid.: 82-83). Para além desse exemplo jogado de passagem, o autor britânico não chega a tratar, no entanto, de cenários em que os indivíduos se encontram radicalmente à mercê de forças externas, incluindo-se aí o controle de outras pessoas, como nos casos de tortura ou estupro. Poder-se-ia dizer que, nesses contextos de violência extrema, a própria condição de “agente” das vítimas é atacada e violada. Para Axel Honneth, essa violação da própria autonomia é parte, aliás, do que torna essas formas de violência inseparavelmente físicas e psicológicas, uma vez que elas combinam a agressão à integridade corpórea da vítima ao infligir da horrível vivência “de se estar, sem defesa, à mercê de outro sujeito” (HONNETH, 1992: 191).
O modelo estratificado da ação: monitoramento, racionalização e motivação
Já sublinhamos que a teoria da estruturação oferece uma ontologia radicalmente processual da vida social. Em compasso com esta perspectiva, Giddens (1979: 40) afirma que o conceito de “ação” não deve se referir a iniciativas localizadas, mas a um fluxo contínuo de intervenções pelas quais agentes produzem efeitos no mundo. No sentido mais básico, agir significa influenciar um estado de coisas, “fazer alguma diferença” em um curso de eventos. Assim, ainda que o autor confira uma importância significativa à dimensão intencional da ação humana, ele discorda de vários filósofos para os quais alguém só “age” quando o que faz é intencional. Embora os principais interlocutores de Giddens quanto a este ponto sejam “filósofos da ação” na tradição analítica (p.ex., Donald Davidson), a ideia de que a ação pressupõe a intencionalidade foi bem exposta na filosofia continental por Jean-Paul Sartre, que ilustrou sua tese com exemplos explosivos:
“Convém observar…que uma ação é por princípio intencional. O fumante desastrado que, por negligência, fez explodir uma fábrica de pólvora não agiu. Ao contrário, o operário que, encarregado de dinamitar uma pedreira, obedeceu às ordens dadas, agiu quando provocou a explosão prevista: sabia, com efeito, o que fazia, ou, se preferirmos, realizava intencionalmente um projeto consciente” (SARTRE, 1997: 536).
Para Giddens, diferentemente de Sartre, há “ação” sempre que um agente influencia um curso de eventos, independentemente de tal influência corresponder ou não à sua intencionalidade. No caso em mira, na medida em que a explosão da fábrica de pólvora não teria ocorrido não fosse pela intervenção do fumante desastrado (e ainda que a explosão tenha dependido também de outros fatores), pode-se dizer que o pobre fumante efetivamente “agiu”, tanto quanto agiu o operário encarregado da explosão da pedreira. Giddens não está rechaçando, absurdamente, a existência de quaisquer diferenças relevantes entre condutas intencionais e não intencionais, apenas afirmando que influenciar ou “fazer diferença” na produção de um estado de coisas já é agir.
Conquanto o foco essencial da teoria da estruturação seja a ação humana, Giddens notou que desvencilhar o conceito de ação das noções de intencionalidade e deliberação consciente abre espaço para a consideração de agentes não humanos nas ciências sociais. Com efeito, na primeira formulação do estruturacionismo, ele define “ação” como “o fluxo de…intervenções causais de seres corpóreos no processo contínuo de eventos-no-mundo” (1993: 82; grifos meus). Do ponto de vista lógico, tal definição da ação se aplicaria, portanto, a quaisquer entidades corpóreas que produzem consequências nos mundos social e natural: as bactérias que provocam uma infecção em uma pessoa, o cachorro que morde outra, o semáforo que influencia o movimento dos carros, o iphone que me informa o caminho para a festa etc. Seja como for, a despeito das possibilidades abertas pelo seu conceito ampliado de ação, Giddens não explorou sistematicamente o tema dos “atores não humanos” que se tornaria tão influente na teoria social atual, sobretudo através do eixo Tarde-Deleuze-Latour.
Se o conceito de “ação” refere-se a um fluxo contínuo de intervenções do agente no mundo, “atos” são recortes específicos desse fluxo que são realizados pelo próprio ator ou por um observador da sua conduta: “Fulana passou a tarde estudando na biblioteca”, “Beltrana foi para uma consulta ao seu cardiologista” etc. A caracterização de segmentos do fluxo da ação como “atos” implica, costumeira mas não necessariamente, a atribuição de finalidades particulares a cada um deles: Fulana foi à biblioteca para estudar porque pretende ser aprovada em um concurso público, Beltrana consultou o cardiologista com a intenção de avaliar seu estado de saúde etc. Para o autor da teoria da estruturação, a característica crônica da ação humana não é, no entanto, a existência de propósitos bem definidos na mente dos atores, mas o monitoramento reflexivo que tais atores realizam quanto ao que fazem, às reações dos agentes com os quais interagem e aos contextos nos quais se veem imersos (Ibid.: 57). Ao qualificar tal monitoramento como “reflexivo”, Giddens não quis dizer que ele sempre envolve a reflexão explícita, mas, sim, que ele se assenta na capacidade humana de auto-objetivação, ou seja, na capacidade do agente em tomar a si mesmo como objeto de conhecimento. Na maior parte do tempo, essa automonitoração não passa pelo raciocínio explícito, mas pode permanecer em âmbito tácito, sendo levada a cabo pela “consciência prática” do agente (2003: 440). No post anterior dessa série, demos como exemplo de operação da “consciência prática” o monitoramento implícito de quão fisicamente próximos estamos de nosso interlocutor em uma interação face a face. Enquanto nossa “consciência discursiva” está concentrada sobre o assunto da conversa, mantemos um senso tácito quanto à nossa própria posição na cena, quanto à conduta de nosso interlocutor (p.ex., fisionomias de agrado ou desagrado) e quanto ao cenário circundante (p.ex., se há ou não alguém se aproximando de nós para participar da conversa).
Um aspecto importante desse monitoramento é a compreensão do agente quanto aos vínculos entre suas intenções, suas condutas efetivas e os efeitos que estas produzem no mundo. O entendimento da adequação entre intenções e atos, bem como entre atos e seus efeitos no mundo, constitui o que Giddens chama de racionalização da ação (1979: 56). Embora a racionalização da ação possa operar de modo tácito, ela é a fonte cognitiva na qual os agentes se baseiam quando precisam explicar a outros as razões daquilo que fizeram ou fazem. Os agentes leigos se mostram bem informados a respeito de seus contextos sociais, portanto, não apenas na manutenção prática das rotinas da vida social, mas também quando são levados a explicar discursivamente o que fazem. Isto acontece, por exemplo, quando um indivíduo cuja conduta é considerada enigmática em face das rotinas aceitas é indagado por outras pessoas acerca dela e oferece uma justificação para o que pareceu problemático: “não respondi ao seu cumprimento naquele dia não porque quisesse ofendê-lo, mas porque não lhe vi”; “eu estava fazendo aqueles movimentos bizarros para o pessoal quando você entrou na sala porque estava descrevendo a cena de um ritual de dança num episódio novo de um seriado que estou assistindo”, e assim por diante.
Por fim, o conceito de “motivação da ação” refere-se aos desejos e vontades que impulsionam os atores a intervir no mundo societário (1993: 104). Os motivos que propelem a conduta são diversos no seu alcance e podem estar “encaixados” uns dentro dos outros à maneira de bonecas russas. Por exemplo, Sicrana tem como objetivo de longo prazo tornar-se psicóloga clínica, projeto de vida que informa, por sua vez, diversos de seus objetivos de médio prazo (p.ex., ser aprovada na disciplina Y, obrigatória na graduação em psicologia) e de curto prazo (p.ex., ir à biblioteca para estudar para a prova de sexta-feira). A despeito da importância de tais motores conscientes da conduta humana, Giddens sustenta, como veremos logo abaixo, que algumas das motivações dessa conduta são de caráter inconsciente.
O modelo estratificado da personalidade: consciência discursiva, consciência prática e inconsciente
Giddens desenvolve o que chama de “modelo estratificado” (1979: 123) da personalidade do agente humano. Segundo tal modelo, a subjetividade do ator envolve os domínios da “consciência discursiva”, da “consciência prática” e do “inconsciente”. A consciência discursiva abarca o estoque de conhecimentos que o agente é capaz de exprimir no discurso, o que frequentemente acontece, como dissemos, em resposta a interrogações de outros atores quanto a alguma interrupção nas práticas rotineiras da vida social. A consciência prática engloba, por seu turno, o conjunto dos saberes que os agentes empregam em suas condutas de maneira tácita e não discursiva. A ilustração predileta de Giddens é a das regras de linguagem que mobilizamos em conversas ordinárias: conhecemos tais regras na medida em que somos capazes de utilizá-las na prática, sem que elas precisem estar presentes em nossa consciência como diretrizes explícitas. O próprio cenário cotidiano da conversação demanda diversos outros saberes práticos que os atores mobilizam tacitamente em suas condutas, como o “rodízio” de fala e escuta, a manutenção da proximidade espacial adequada em relação ao interlocutor e assim por diante. Os saberes e competências tácitos que Giddens identifica pela noção de “consciência prática” são similares àqueles que Bourdieu tencionou captar com seu conceito de habitus. Não obstante, o sociólogo francês é bem mais cético do que o teórico britânico quanto à possibilidade de que os princípios do habitus sejam compreendidos de modo explícito e discursivo pelos agentes leigos – ainda que a sociologia reflexiva ofereça algum otimismo da vontade como contraparte desse pessimismo do intelecto. Em contraste com o significativo hiato entre habitus e reflexão postulado por Bourdieu, Giddens pensa a fronteira entre consciência prática e consciência discursiva como permeável e flutuante. Por exemplo, tal como a estudiosa da sintaxe adquire um conhecimento explícito de regras que ela já aplicava implicitamente em seus usos da língua, a socióloga que lê Goffman obtém um saber discursivo sobre “rituais de interação” que ela já praticava, de modo tácito, diante de estranhos em lugares públicos. Referindo-se ao domínio que a filosofia anglo-saxã havia vasculhado através de noções como “conhecimento tácito” (Polanyi) e “know-how” (Ryle), a ideia de “consciência prática” contrasta com a noção forte de inconsciente postulada no estruturalismo francês (p.ex., em Lévi-Strauss, Lacan, Althusser ou no Foucault de As palavras e as coisas):
“O monitoramento reflexivo da ação se baseia em um ‘conhecimento tácito’ que só pode ser expresso no discurso…de modo parcial e imperfeito. Tal conhecimento, de caráter sobretudo prático e contextual, não é inconsciente em qualquer dos sentidos em que este termo é empregado na literatura estruturalista.(…) Os estoques de conhecimento aplicados na produção e reprodução da vida social como uma atividade habilidosa são, em larga medida, ‘inconscientes’ no sentido de que os atores sociais só podem, normalmente, oferecer um relato fragmentário do que ‘sabem’ se instados a fazê-lo; mas não são inconscientes no sentido dado ao termo por autores estruturalistas” (Giddens, 1979: 40).
Diferentemente do que ocorre na relação entre a consciência prática e a consciência discursiva, a barreira da “repressão”, no sentido psicanalítico do termo, se interpõe entre ambas e o “inconsciente”. Giddens concebe o conceito de “inconsciente”, em princípio, em uma acepção próxima à de Freud: um domínio da psique que abarca impulsos afetivos e cognições que estão completamente subtraídos à consciência ou que aparecem nesta apenas de maneira “codificada” ou “distorcida” – por exemplo, em sintomas neuróticos, atos falhos e sonhos. O uso de insights psicanalíticos na teoria da estruturação é, entretanto, bastante seletivo. Vista de perto, a concepção giddensiana de inconsciente é, na verdade, mais aparentada à “psicologia do ego” do neofreudiano Erik Erikson do que das teorias originais do próprio Freud. Através da influência não apenas de Erikson, mas também de psicólogos como Winnicott, Sullivan e Laing, Giddens conecta a reprodução rotineira da ordem social a um ansioso anseio do agente humano por “segurança ontológica”, isto é, por uma vivência do mundo e de si próprio como realidades inteligíveis e bem-fundadas. Vejamos isto mais de perto.
Como ensinou Frédéric Vandenberghe, toda teoria social pressupõe uma “antropologia filosófica”, isto é, uma concepção mais geral do que significa ser humano. Se a sociologia de Bourdieu, por exemplo, toma o ser humano como “habitado por uma necessidade de justificação” que apenas a sociedade pode saciar, a teoria da estruturação concebe o anthropos, por sua feita, como uma criatura que, sendo ao mesmo tempo inteligente e ansiosa, tem de abrir caminho em um mundo incerto e carregado de riscos. A contraparte positiva de tal ansiedade é, para Giddens, um senso subjetivo de “confiança” no caráter ordenado, inteligível e seguro dos cenários materiais e sociais em que o ator está imerso.
Segundo Giddens, desde a mais tenra infância, um “sistema de segurança básica” (2003: 66) vai sendo tecido na psique dos agentes de modo mais ou menos bem-sucedido. Um anelo inconsciente por “segurança ontológica” (Ibid.: 444), isto é, por uma vivência do mundo e de si mesmo como realidades solidamente estabelecidas, acompanha os atores humanos por toda a sua vida. Tomando cuidado para não reduzir a explicação da ordem social a essa motivação psicológica, Giddens afirma que o investimento prático dos agentes na continuidade das rotinas do mundo societário deriva muito de sua força deste anseio existencial por segurança ontológica. Segundo o pensador inglês, evidências em apoio a essa visão são fornecidas pelos “experimentos de ruptura” (1963) levados a cabo por Garfinkel e seus colaboradores.
O raciocínio teórico por trás dos famosos experimentos de Garfinkel pode ser descrito como uma “heurística da desordem”: a tese de que o melhor modo de compreender os mecanismos de manutenção da ordem social é através do estudo de situações em que tal ordem é rompida ou perturbada. Garfinkel e seus experimentadores estavam de posse, assim, de uma justificativa cientificamente respeitável para a prática de uma variedade de pegadinhas: passar por cima das regras do “jogo da velha”, começar uma conversa dizendo “tchau” em vez de “oi”, solicitar definições precisas de termos da linguagem ordinária etc. O que impressionou Giddens em tais experimentos foi o fato de que as convenções sociais violadas pela gangue etnometodológica pareciam desimportantes e triviais, mas geraram, nas suas “vítimas”, reações com alto nível de espanto, perplexidade e indignação. Para o autor britânico, tais reações sinalizam que a rotinização da existência social, sustentada por aquelas convenções aparentemente anódinas, cumpre um papel central na contenção de tensões psíquicas que, de outro modo, lançariam os agentes em um vórtice de ansiedade e desorientação.
Passando do pitoresco ao trágico, Giddens também ilustra a importância da rotinização do contexto social para a segurança ontológica dos agentes, nos seus parâmetros mais básicos (p.ex., senso de controle dos próprios movimentos corporais, de continuidade do próprio self no tempo etc.), pelo estudo da brutal des-rotinização a que foram submetidos prisioneiros dos campos de concentração nazistas (Giddens: 1979: 125-126; nesse domínio, as principais fontes de Giddens são os escritos, ao mesmo tempo analíticos e autobiográficos, de Bruno Betelheim).
Conclusão
Em compasso com sua definição da teoria social como inerentemente interdisciplinar, o estruturacionismo de Giddens dialoga, desde cedo, com as disciplinas mais variadas: a sociologia (Schütz, Garfinkel, Goffman, Parsons, Merton), a filosofia nas suas variedades “analítica” (Wittgenstein, Winch) e “continental” (Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Habermas, Foucault, Derrida), a linguística (Saussure, Jakobson, Chomsky), a antropologia (Lévi-Strauss), a psicologia (Freud, Erikson, Winnicott, Lacan, Laing), a geografia (Hägerstrand), entre outras. O talento de Giddens para a arte da síntese transparece, como era de se esperar, nos seus “modelos estratificados” da ação e da personalidade do ator. Sua concepção do agente humano pode ser, com efeito, interpretada à luz dos movimentos duplos de incorporação-e-crítica que são típicos do seu modo de elaboração teórica.
Por um lado, com base na filosofia analítica da ação e nas microssociologias interpretativas, Giddens defende que o ator não é um “idiota cultural” (Garfinkel) completamente manipulado por forças coletivas que ele não compreende nem controla. Os atos mais ordinários no mundo social são performances competentes que dependem do emprego de um vasto repertório de habilidades cognitivas e práticas. Boa parte desse conhecimento mobilizado na conduta social é de caráter tácito e não discursivo, mas a vida social cotidiana também mostra que os agentes leigos se revelam frequentemente aptos a explicar discursivamente, quando perguntados, as razões do que fazem.
A filosofia analítica da ação e as microssociologias interpretativas acertam em sublinhar que a conduta social ordinária depende de competências cognitivas e práticas, mas não apresentam, por outro lado, qualquer relato mais detalhado acerca das fontes de tais competências. Nesse ponto, defende Giddens, uma lição do estruturalismo revela-se relevante: a subjetividade não pode ser tida como um dado autoevidente a partir dos quais outros fenômenos devem então ser explicados (p.ex., a interação social), mas tem de ser abordada ela própria como um resultado, isto é, como uma realidade moldada por condições particulares (p.ex., a participação em um sistema simbólico). Além disso, como reza o teorema do “descentramento do sujeito”, as dimensões da subjetividade não formam uma entidade monolítica ou harmonicamente integrada, mas possuem graus variáveis de tensão ou mesmo contradição entre si. Como indicado pelo seu uso do conceito de inconsciente, Giddens obviamente também não toma a subjetividade do agente como co-extensiva à sua consciência. No seu pensamento, a sensibilidade estruturalista serve, portanto, para corrigir a falta de atenção das teorias da ação às condições sociais de constituição da subjetividade, dentre as quais se destaca o aprendizado da linguagem.
Ao mesmo tempo, ele sustenta que o caráter linguisticamente moldado da subjetividade não implica, de maneira alguma, a dissolução objetivista do agente em sistemas de signos ou no “jogo [impessoal] das estruturas” (Derrida). Criticamente filtradas através de outras abordagens, os ensinamentos do estruturalismo e do pós-estruturalismo servem a Giddens como uma ferramenta de reconstrução – mais do que de desconstrução – da concepção de agente humano na teoria social.
Referências:
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