Luc Boltanski (EHESS, França)[1]
Tradução Diogo Silva Corrêa
A escolha de Noé
Gaia está morrendo. Uma grande catástrofe nos ameaça. Se nós nada fazemos, a terra será inundada. Um novo dilúvio? Bruno Latour, tomando o modelo de Noé, constrói a Arca na qual humanos e não humanos poderão encontrar abrigo e desenhar os contornos de um mundo por vir. A arca é vasta (500 páginas), mas ainda assim suficiente para incorporar tudo o que era guardado no seio de Gaia. É preciso escolher, selecionar. Para Noé, era fácil. Ele dispunha de um repertorio de espécies originais, estáveis, protegidas de metamorfoses imprevisíveis (essa hipótese pagã que horrorizava os Hebreus) pela vontade de um deus criador. Duas espécimes de cada espécie, e pronto. A reprodução estava assegurada.
Para Bruno Latour, o problema é mais complicado. Na ontologia que lhe serviu para renovar a sociologia das ciências, não há origem nem original, mas transformações. Nenhuma transcendência, mas um “plano de imanência”. Não há ideias puras, nem categorias estabelecidas por toda eternidade, mas construções, mediações e repetições obtidas ao preço de diferenças e de deslocamentos. A priori, tudo pode ser traduzido, ser enunciado de outro modo, se associar de modo a compor essas longas cadeias heterogêneas – em sua linguagem, as redes –, das quais dependem não apenas os objetos técnicos do nosso ambiente cotidiano, mas até mesmo a forma de nossa própria humanidade. Ora, as redes não têm fim. Ao segui-las, corremos o risco de fazer entrar na arca, pouco a pouco, todos os seres, visíveis ou invisíveis, que compõem Gaia. O mapa se confundirá com o território e a barca, sobrecarregada, naufragará.
Uma das inovações de Enquête sur les modes d’existence, no que diz respeito aos trabalhos de Bruno Latour, os quais há mais de trinta anos não cessaram de se situar no centro dos debates sociológicos e filosóficos, reside em sua intenção de fazer coexistir duas lógicas tidas como até então profundamente antagônicas. Seja, de um lado, aquela que nós acabamos de evocar – frequentemente acusada de ‘relativismo’; seja, de outro, aquela que acredita municiar nossos julgamentos ao ancorá-los em verdades estabelecidas, valores –, e que é frequentemente taxada de “moralista”. Por que resgatar esses valores, outrora tão denegridos? Porque, uma vez identificados, eles nos dirão enfim o que colocar em nossa arca. Como desenterrá-los? Procurando aquilo que a que nós – os “modernos”, os “Ocidentais” –, somos verdadeiramente vinculados. Em outras palavras, fazendo uma ‘antropologia dos modernos’.
Mas como temperar esse “relativismo”, que foi a arma principal da qual as ciências sociais dos quarenta últimos anos – e Bruno Latour com elas – se serviram para reformular as grandes divisões (entre masculino e feminino, humanos e não humanos, intencional e maquinal, etc.), sem recar no absolutismo, nem reabilitar a transcendência? Ou ainda, como conservar sem sucumbir ao conservadorismo? Essa restauração limitada apoia-se em uma ontologia pluralista. A história monolítica da Razão se substituirá pelas aventuras de uma pluralidade limitada de boas razões de agir. Cada uma dentre elas repousa sobre valores particulares; sobre um modo próprio de fazer a divisão entre o verdadeiro e o falso, e uma maneira própria de desenhar os contorno de um modo de existência específico. Ao cruzar esses modos, as redes se colorem de tintas diferentes. E, contudo, essas razões se ignoram ou se criticam. Bruno Latour pretende, assim, desenhar os contornos desses modos ao restituir a dignidade de cada um deles. Essa gramática universal nos ajudará a nos encontramos na nossa alegre anarquia das redes. Porém, pode ser que nossa época se inquiete menos com a alegria do que com a recolocação da ordem.
Uma passageira clandestina
No imponente edifício que desenvolve esse livro maior, um ponto problemático diz respeito à crítica. Essa orientação, a qual é contudo permitido se vincular, não aparece entre os valores discernidos. Ou sobretudo ela é, ao mesmo tempo, ausente e onipresente; recusada e praticada. Recusada, em primeiro lugar. O principal erro dos modernos é o de se entregarem à critica e de desfrutarem dela. Eles não cessam de desvelar as crenças e as ilusões de todos e de ver em todos os lugares fetiches, e isso porque desconhecem o tipo veridição que convêm a cada modo. Não seria os ofuscam a “irracionalidade” do religioso ou que denunciam o capitalismo aqueles a que Bruno Latour se vincula quando os dissolve, mergulhando-os em seu composto sutil de redes e de valores. Depois do dilúvio, sugere Bruno Latour, haverá bem um outro mundo possível, um mundo melhor e mesmo, talvez, o melhor dos mundos possíveis. Mas, ele será melhor sobretudo porque nós teremos nos livrado do veneno da crítica.
Contudo, essa irritação para com a crítica não impede Bruno Latour de praticá-la alegremente. Para desvelar as ilusões dos modernos, ele não cessa de opor o que eles fazem na prática e o que eles afirmam fazer em teoria. Ora, a evidenciação desse desnível entre o oficial e o oficioso, entre o que faz a mão esquerda e o que pretende fazer a mão direita, constitui o impulso principal que, muito geralmente, anima as operações críticas.
Diga-se de passagem, é essa orientação fortemente crítica que confere ao livro um de seus apontamentos mais originais. Colocada sob os auspícios de uma antropologia descritiva, ele desenvolve um projeto pedagógico. Os modernos, perdidos na trama complexa das redes e dos valores, são tomados pelo “embaraço da fala”, e por isso desembocam frequentemente na violência. Ensiná-los a se exprimir com facilidade, isto é, a se deslocar entre as diferentes categorias e os diferentes modos de existências, é engajá-los em uma outra via. A da diplomacia e, é o que nós esperamos, da paz perpetua. Poucos grandes livros recentes reabriram com uma tal verve a brecha crítica aberta pelo Iluminismo.
Ao fazer uma inspeção em sua arca, Noé descobre então uma passageira clandestina: a crítica. Ele havia a ela recusado a entrada e, contudo, ela está lá. Um animal curioso. Um corpo curioso. Ele interroga-se. Sabe-se o que quer, o que pode esse corpo? Ele coloca a arca em perigo ou a sua eterna e inocente indignação não contribui, ela também, para assegurar a sobrevivência da arca?
[1] Artigo publicado originalmente no Jornal Le Monde no dia 21.09.2012
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