Por Patrícia da Silva Santos (UNICAMP)[1]
Georg Simmel era um mestre em buscar nas coisas feitas pelos homens os traços reveladores de sua pertinência à determinada forma de organização social. Em certa passagem, aparece uma leitura da forma redonda dos pratos na sociedade moderna como a que melhor delimita o individualismo que aí prevalece. O arredondamento mantém o conteúdo dos pratos concentrados em si mesmos – em “épocas primitivas”, ao contrário, todos se alimentavam em uma tigela coletiva (em geral, oval ou quadrada, como a demonstrar, formalmente, que opera de modo menos “ciumento” em relação ao conteúdo)[2]. Em outro lugar, aparece também a forma arredondada das moedas, simbolizando “o ritmo do movimento que o dinheiro comunica à transação” e a praticamente todas as relações humanas[3]. O arsenal de imagens simmelianas similares é extenso e não cabe aqui elencá-lo exaustivamente.
As coisas humanas são, portanto, depositárias de relações sociais; elas expressam sempre uma dissolução do social em suas formas, seus usos ou, até mesmo, sua inutilidade. A sociedade se inscreve continuamente em seus prédios, estilos, músicas, filmes, romances, danças – por isso que essas coisas e formas estão em transformação constante, obedecendo à regência histórico-social. Contudo, ressalto o que não pode ser desconsiderado na análise desses processos sociais de moldagem: não apenas no conteúdo há um teor social, mas também no modo como braços e pernas se articulam para formar um passo simétrico, matemático; na forma como as melodias se interconectam em repetição constante, prendendo o ouvinte a um círculo vicioso; na sequência de pictogramas urdidos de forma a expor uma totalidade onde ela já se rompeu; no caráter intransparente das modernas fachadas de espelhos; no aspecto mítico da linguagem conservadora, sempre a serviço de restaurar poderes irracionais no seio da razão – ou seja, forma e conteúdo (se é que podemos separá-los) são passíveis de interpretação sociológica.
Esses últimos exemplos enumerados de maneira pouco sistemática – e muitos outros – estão presentes no tipo de leitura do mundo social que um aluno dileto de Georg Simmel articulou para desenvolver uma crítica da sociedade capitalista que tinha como cerne da reflexão o que aparece bem aí diante dos nossos olhos, naquilo que ele chamava despretensiosamente de “superfície”. Siegfried Kracauer (1889-1966), nas suas centenas de pequenos textos, ornados com espírito literário, mas embasados, palavra por palavra, em um fundo de reflexão intelectual primorosamente mensurado (ainda que nem sempre explicitado), apresenta uma forma de crítica social que poucas vezes expõe de modo imediato as estruturas basilares da sociedade capitalista – também porque considera que essa exposição não é a forma mais efetiva do pensamento crítico contemporâneo – porém, revela a atualização cotidiana deste modo de produção com a mesma maestria com que Simmel lançava suas “sondas” nos pontos da superfície da vida social para alcançar as ressonâncias que aí se configuravam. À diferença de Simmel, contudo, Kracauer dotou sua leitura da superfície de um materialismo inequívoco – incluindo uma interpretação de Karl Marx relativamente distinta daquela levada a cabo por muitos intelectuais contemporâneos seus, demasiadamente preocupados com o movimento das estruturas.
As preocupações de Kracauer estavam delimitadas principalmente por um problema específico: o capitalismo e seu caráter de “fenômeno cultural” – ou seja, como fenômeno que superou os portões das fábricas e se imiscuiu nas mais diversas relações sociais. Destarte, olhando menos para as possíveis formas de organização da classe trabalhadora e a possibilidade de revolução, Kracauer, já na Alemanha da década de 1920, ocupou-se de entender a maneira como o capitalismo disseminava sua lógica para além da esfera produtiva, passando de simples “sistema econômico” a uma “constituição espiritual total”[4].
Um exemplo notável de sua diferença em relação a autores marxistas dessa época é o paralelo bastante sintomático que podemos fazer entre o singular História e consciência de classes[5], de Georg Lukács (1923), e Os empregados[6] (1929), publicado por Kracauer. De acordo com nosso autor, as concepções de totalidade ou de “personalidade integral” (recorrentemente articuladas pelo húngaro na obra citada) revelariam uma “sistematização formal fixada no idealismo”. Por seu turno, Kracauer prefere centrar sua preocupação no grupo de trabalhadores pertencentes ao que chama de “nova classe média” ou ao grupo de trabalhadores ligados a atividades mais burocráticas e de baixo rendimento (secretárias, recepcionistas, telefonistas, vendedores etc.) – esse grupo oferecia a ele a possibilidade de observar o espraiamento das relações capitalistas para os espaços menos tangíveis da vida social. Em uma espécie de pesquisa participante, que incluía visitas a cinemas, a bares e a associações frequentados por esse tipo de trabalhador, Kracauer buscou apreender o modo como as relações sociais mais sutis da sociedade contemporânea estão impregnadas por conteúdos vinculados ao capitalismo. Não faço jus ao pensador formulando assim, de maneira tão peremptória, as articulações que ele desenvolve judiciosamente. Vale lembrar aqui, contudo, a sua descrição de uma das personagens que encontra nessas suas perambulações pelos espaços sociais frequentados pelos empregados: “Característico dela é que, no salão de dança ou no café do subúrbio, não pode ouvir uma peça de música, sem de imediato cantarolar os hits correspondentes. Mas não é ela que conhece todos os hits, mas sim os hits que a conhecem, a apanham e a abatem suavemente. Ela permanece em um estado de completa anestesia.”[7] Nessa imagem-hipérbole, aparece a ideia de uma cultura organizada como indústria, composta de conteúdos que rendem os sujeitos à sua lógica própria – vale lembrar que a concepção de “indústria cultural”, desenvolvida anos mais tarde por Theodor Adorno e Max Horkheimer, deve muito ao pensamento kracaueriano.
Porém, se os indivíduos contemporâneos precisam tanto de distração, não é sua culpa. A censura pura e simples dirigida a tal necessidade seria prepotência pequeno-burguesa. “O que se perde, precisa ser recuperado”[8]. Talvez a grande preocupação de Kracauer seja justamente essa: articular as tentativas de recuperação dos trabalhadores daquele tempo sem sentido que eles perderam no trabalho (esse trabalho “que ocupa seu dia, sem preenchê-lo”[9]). Enquanto muitos estavam preocupados justamente com a forma como se arquitetam essas relações de trabalho, Kracauer olha para a ressonância de tais relações em outras instâncias da vida social – daí a atenção que ele volta para os assim chamados “fenômenos de superfície”.
Por isso, povoam seus escritos os passos coordenados pelas bailarinas de um grupo de danças, cujas pernas e braços compõem um ornamento racional que corresponde à funcionalidade fordista imperante nas fábricas e escritórios – uma racionalidade mecânica que escorreu para os demais domínios da vida; nesses textos, também estão os enredos cinematográficos baseados em ascensão social fácil, que desde o início já se ocupavam em disseminar os valores de meritocracia, disciplina e esforço pessoal – nesse sentido, a figura de Kracauer também é a de um precursor da assim chamada sociologia do cinema; os livros de sucesso e seus conteúdos “mitológicos”, que se esforçavam por arquitetar um sentido ao mundo desencantado da sociedade capitalista; e muitos outros fenômenos típicos do “exótico do cotidiano”. Pois, para Kracauer, esse é o nexo a ser inquirido para se compreender o caráter abstrato do pensamento atual, para evidenciar o aspecto “turvo” da razão capitalista.
Na sociologia da cultura articulada pelo autor – se ainda pudermos falar em especialidades no caso de um pensamento tão pouco afeito a sistematizações –, a técnica ocupa espaço fundamental. Todas as suas interpretações acerca de manifestações culturais procuram inquirir a sua pertinência histórica destacando suas relações com o capitalismo, o progresso técnico e as consequências desses dois últimos processos para a forma como os homens produzem sentido – ou ainda, a falta de sentido. Fotografia, cinema, música, dança e toda e qualquer manifestações cultural são formatadas por “um grau de desenvolvimento específico da vida prático-material”[10] vinculado à sociedade capitalista.
Destarte, o que torna seu pensamento tão atual é a articulação da já mencionada forma de crítica ao capitalismo, que tenta penetrar nos meandros mais sutis dos tentáculos desse modo de produção, a uma análise da cultura que toma a tecnologia como um de seus eixos fundamentais. Afinal, como devemos pensar hoje a influência da internet no modo como os homens produzem sentido ou, em outras palavras, no modo como se configura nossa cultura? O que significam as listas de best-sellers repletas de livros de autoajuda e de conteúdos míticos em uma sociedade posterior ao desencantamento do mundo? O que informam sobre nossa sociedade a street dance, a música eletrônica ou a obsessão pelos celulares de última geração? Kracauer diria que todas essas formações devem ser pensadas como inscrições do momento histórico-social contemporâneo. Nesse sentido, qualquer interpretação cultural feita de um ponto de vista sociológico deveria levar em conta o estágio de desenvolvimento da “vida prático-material”. Simples? Certo que não. É por isso, justamente, que o crítico escolheu interpretar a sociedade por meio das sinuosidades de sua superfície. Ao fazê-lo, foi um dos primeiros a traduzir para o âmbito da cultura conceitos sociológicos que estavam, até então, associados a fenômenos mais concretos, por certo, mas que já não davam conta de explicar o mundo social – precisamente por causa da pretensão de alcançar uma explicação total. A via escolhida por Kracauer abre mão de tal pretensão em favor da tentativa, tateante, de interpretar os contornos da “superfície” – isso porque, se pudermos estabelecer uma matriz epistemológica para o procedimento pouco sistemático desenvolvido pelo autor ao longo das suas centenas de ensaios, ela necessariamente passaria pela ideia de que “o conteúdo fundamental da época e seus movimentos despercebidos iluminam-se reciprocamente”[11].
Notas:
[1] Doutora em Sociologia (USP), pós-doutoranda e professora colaboradora (UNICAMP), bolsista da FAPESP. O texto consiste em uma breve apresentação do pensamento de Siegfried Kracauer, autor que analisei na minha tese de doutorado, realizada com financiamento das agências de fomento CAPES e DAAD e publicada em livro sob o título Sociologia e superfície. (Patrícia da Silva Santos. Sociologia e superfície. Uma leitura dos escritos de Siegfried Kracauer até 1933. São Paulo: ed. Unifesp, 2016).
[2] G. Simmel. “Soziologie der Mahlzeit” [Sociologia da refeição] [1910], em Gesamtausgabe, vol. 12. Frankfurt am Main, S. Fischer, 2001, vol. 12, p. 146.
[3] G. Simmel. Philosophie des Geldes [Filosofia do Dinheiro] [1900]. Köln, Anaconda Verlag, 2009, p. 823.
[4] S. Kracauer. “Georg Simmel. Ein Beitrag zur Deutung des Geistigen Lebens unserer Zeit” [1919], em Werke 9.2. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, p. 245.
[5] G. Lukács. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Tradução Rodnei Nascimento).
[6] S. Kracauer. “Die Angestellten” [Os empregados] [1929], em Werke 1. Frankfurt: Suhrkamp, 2006.
[7] Idem, p. 268.
[8] S. Kracauer. “Kult der Zerstreuung” [Culto da distração] [1926], em Werke 6.1. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, p. 210. Esse artigo consta na coletânea O ornamento da massa, que conta com tradução brasileira: S. Kracauer. “Culto da distração”, em O ornamento da massa. São Paulo, Cosacnaify, 2009, p. 345. (Tradução Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holz).
[9] Ibidem.
[10] S. Kracauer. “Die Photographie” [1927], em Werke 5.2. Berlim: Suhrkamp, 2011. Também consta na edição mencionada na nota anterior: S. Kracauer. “A fotografia”, em O ornamento da massa. Op. cit., p. 78.
[11] S. Kracauer. “Das Ornament der Masse”, em Werke 5.2. Op.cit., p. 612. Edição brasileira: S. Kracauer. “O ornamento da massa”, em O ornamento da massa. Op. cit., p. 91.
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