enlouquece-te a ti mesmo

Enlouquece-te a ti mesmo (3): sobre as palavras e as coisas na esquizofrenia, por Gabriel Peters

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Por Gabriel Peters (UFPE)

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Epistemologia insana

Os posts anteriores desta série defenderam a tese de que, se a teoria social é uma ferramenta intelectual valiosa para a compreensão da loucura, o estudo da loucura também pode levar, por seu turno, a um repensar crítico da teoria social, sobretudo no que toca às concepções de subjetividade que nela vigoram. Do ponto de vista metodológico, essa última estratégia poderia ser definida como uma “heurística da insanidade” ou, de modo mais provocativo (para não dizer radical-chique), uma “epistemologia insana”. A investigação de vivências insanas pode desempenhar, na teoria social, um papel similar ao da exploração da variedade de formas de experiência humana em disciplinas como a história e a antropologia. Ao evidenciarem a diversidade dos modos de agir, pensar e sentir que os seres humanos exibem nos âmbitos mais variados (da religiosidade à economia, da culinária à sexualidade), tais disciplinas servem como um antídoto à propensão do cientista social a tomar as características de seus contextos culturais nativos, sem mais, como naturais ou universais (p.ex., a religiosidade monoteísta ou a sexualidade monogâmica). Sem que seja preciso deslizar para a idealização romântica da esquizofrenia, varrendo para debaixo do tapete as extraordinárias dificuldades e sofrimentos por ela acarretados, pode-se afirmar que o exame de vivências esquizofrênicas também expande nosso senso da pluralidade de modos humanos de estar-no-mundo. Ademais, as interpretações mais sensíveis da loucura como experiência vivida costumam gerar um efeito similar àquele dos melhores estudos históricos e antropológicos: a revelação de que concepções e vivências de mundo que nos parecem bizarras e incompreensíveis a um primeiro olhar podem se mostrar, a uma visão mais paciente, não só inteligíveis como passíveis de identificação empática.   

Pois bem. Um dos domínios nos quais a pluralidade cultural do “bípede implume” foi amplamente documentada pelas ciências sociais é o das “formas de classificação” (Durkheim; Mauss, 2002) das entidades do mundo. A existência de modos “excêntricos” ou “anômalos” de classificar pessoas e objetos também foi, é interessante notar, frequentemente registrada entre os sintomas da esquizofrenia (Kuperberg; Caplan, 2003). Como parte das “desordens” cognitivas associadas à condição, tais classificações anômalas diferem de crenças delirantes ou percepções alucinatórias por envolverem não os conteúdos da cognição, mas os seus aspectos procedimentais, tais como o uso de conceitos, o raciocínio inferencial e a associação entre ideias (Ibid.: 445).

Ordem social, ordem simbólica e (in)segurança ontológica

Da fenomenologia de Schütz às praxiologias de Bourdieu e Giddens, diversas perspectivas teóricas sublinharam que a ordenação prática das relações sociais é possibilitada pela partilha de esquemas simbólicos de percepção do mundo. Com base nesses “esquemas de tipificação” (Schütz, 1979: 116), os agentes definem diferentes situações sociais e orientam sua conduta segundo as expectativas coletivas associadas a tais “definições de situação” (para usar o conceito clássico do sociólogo estadunidense William Thomas). Há, portanto, uma conexão intrínseca entre ordem social e ordem simbólica. Em outras palavras, os atores jamais poderiam co-ordenar suas ações em cenários sociais rotineiros se não os tornassem inteligíveis através de categorias cognitivas idênticas ou, pelo menos, suficientemente similares para todos os propósitos práticos. É o caso, por exemplo, dos esquemas de classificação que nos permitem interagir previsivelmente com alguém que jamais havíamos visto como, digamos, “cobrador de ônibus”, “caixa de supermercado” ou “delegado de polícia”. A participação “competente” (i.e., coletivamente reconhecida como competente) em determinado contexto social depende desse compartilhamento de formas de classificação de pessoas (p.ex., Fulano é padre, Sicrana é soldada), eventos (p.ex., uma missa, um desfile) e objetos (p.ex., uma batina, uma farda).

O recurso do agente a estas tipificações partilhadas torna sua experiência do mundo social muito menos custosa no tocante a quanto as coisas, as pessoas e as situações por ele encontradas exigem de sua cognição e de seus afetos. Uma simples olhada a um cenário social como, digamos, a biblioteca em que acabamos de entrar se transformaria em uma massa desnorteadora de estímulos perceptuais caso não enquadrássemos, de maneira imediata e espontânea, essas dezenas de objetos particulares que vemos nas categorias gerais de “mesas” e “cadeiras”. As classificações que eu mobilizo na biblioteca estão articuladas, é claro, a um conhecimento sobre os modos socialmente apropriados de orientação da minha conduta nessa situação. Meu saber prático sobre o cenário em que me encontro também me ajuda a sustentar um estado emocional de relativa segurança e conforto diante do que posso esperar acontecer ali. Por exemplo, minha compreensão do ambiente social que me circunda me permite saber, de modo não apenas implícito, mas visceral e corpóreo, que um tiroteio seria ali uma ocorrência improvável.

Nesse sentido, meu uso de categorias de classificação partilhadas não apenas me serve de orientação cognitiva e prática no meu trânsito pelo mundo social, mas também contribui para despertar em mim uma sensação existencial de “segurança ontológica”, i.e., de confiança no caráter relativamente compreensível, seguro e previsível do contexto em que estou imerso. As conexões entre a cognição e a “(in)competência” prática, assim como entre a cognição e a experiência emocional do mundo circundante como (in)seguro, já sugerem por que classificações cognitivas que desviam das classificações socialmente partilhadas podem impor preços existenciais significativos aos seus usuários. Exemplos de consequências práticas de tais desvios são amiúde encontrados, é claro, nas experiências de estrangeiros que não dominam os códigos de etiqueta e os instrumentos de comunicação vigentes em uma sociedade: um indivíduo resolve pedir carona na estrada de um país estrangeiro fazendo um gesto com o polegar estendido, sem se dar conta de que ele corresponde a um sinal agressivamente obsceno naquela cultura (o equivalente funcional de se levantar apenas o dedo médio da mão no Ocidente); um estudante do país A, que segue a etiqueta de que jamais se deve recusar a comida oferecida por um anfitrião, vai a um jantar na casa de um estudante do país B, cuja cultura dita que um anfitrião tem a obrigação de oferecer ao convidado a chance de repetir o prato até que ele responda que não deseja mais repetir. Depois de algum tempo, o educado estudante do país A acaba colapsando no chão de tanto comer (Laraia, 1986: 72).

Quando o modus cognoscendi de indivíduos com esquizofrenia deixa de funcionar segundo o que é esperado nos contextos em que eles foram socializados e atuam, tais indivíduos tornam-se, por assim dizer, estrangeiros em sua própria terra. 

 O concreto, o abstrato e o “?????”

Dentre os “desvios” cognitivos registrados na literatura sobre a esquizofrenia, vários deles dizem respeito precisamente a classificações das entidades e eventos do mundo. Ao longo de toda a história da psiquiatria no século XX, diversos autores buscaram subsumir essas formas anômalas de classificação associadas à esquizofrenia em alguma espécie de desordem cognitiva central. Desde o psiquiatra Kurt Goldstein, uma das principais teorias que seguiram essa via concluiu que tal desordem seria o “pensamento concretista”. Segundo esta interpretação, embora o indivíduo esquizofrênico pudesse perceber, por exemplo, esta ou aquela mesa particular, ele seria incapaz de pensar no conceito abstrato de “mesa” de modo divorciado de qualquer mesa específica (1940: 73-74). Em termos práticos, a sensibilidade excessiva do indivíduo aos estímulos sensoriais mais diversos seria acompanhada de uma dificuldade em “abstrair” os aspectos irrelevantes (isto é, socialmente tidos como irrelevantes) de uma situação. De modo correlato, a suscetibilidade a variados gatilhos sensoriais levaria a déficits na “atenção seletiva” que permite que nos concentremos sobre certos elementos de uma situação (p.ex., as ideias expressas no livro diante de nós na situação de estudo; a fala do médico durante a consulta) em detrimento de outros que nos seriam irrelevantes (p.ex., as tosses, espirros e fungadas de outros estudantes na biblioteca em que estou estudando; a mancha no sapato do médico com quem me consulto).

Ainda que tal visão sobre o pensamento concretista recaia facilmente em um discurso de “déficit cognitivo”, as dificuldades experimentadas por pacientes de esquizofrenia podem se revelar, a um olhar atento, bem mais complexas. Para dar apenas um exemplo: o que parece simples defeito cognitivo de foco pode derivar de uma capacidade sensorial ampliada e, por conseguinte, mais sensível e irritadiça. Em situações em que o estranhamento de si afeta a experiência do próprio corpo, alguns setores da vivência corporal do indivíduo se impõem continuamente (e irritantemente) à sua atenção, perturbando sua concentração sobre o que acontece à sua volta. Por exemplo, um indivíduo que não consegue parar de prestar atenção ao abrir e fechar periódico das suas pálpebras (Sass, 1992: 228) terá sua atenção a atividades cotidianas continuamente perturbada. O que a psiquiatria poderia classificar sem mais como “déficit de atenção seletiva” resulta, pelo menos em certos casos, do que é, na verdade, uma maneira idiossincrática, socialmente rara, de alocar a atenção (seja essa alocação intencional ou vivida como uma interrupção não escolhida). 

De todo modo, embora existam indubitavelmente casos de pensamento concretista na esquizofrenia, as peculiaridades do raciocínio esquizofrênico estão longe de poderem ser reduzidas a ele. Para começo de conversa, alguns casos envolvem não o hiperconcretismo, mas o seu reverso, isto é, uma tendência à hiperabstração. Veja-se o exemplo dessas respostas a testes feitos com pacientes diagnosticados como esquizofrênicos:

Laranja e Banana – “produtos da natureza”.

Casaco e Vestido – “itens que mantém a modéstia humana”.

Mosca e Árvore – “coisas que ocupam espaço no nosso mundo”.

Mesa e Cadeira – “objetos no universo” (Sass, 1992: 125).

Impressionados com respostas como estas, alguns psiquiatras (p.ex., Cameron, 1939) abandonaram a tese do pensamento concretista e zarparam logo para o outro extremo: a ideia de que a hiperabstração ou “hiperinclusividade” conceitual seria o traço central dos sintomas de ordem cognitiva na esquizofrenia. Uma vez mais, no entanto, uma série de casos de esquizofrenia escapava a esse modelo, de resto complicado pelo fato de que, por vezes, os mesmos indivíduos oscilam entre modos concretistas e modos abstratos de pensamento. Ainda mais importante: algumas das classificações empregadas por pacientes com esquizofrenia, embora destoem dos hábitos classificatórios vigentes no seu meio social, não são peculiares em função de quaisquer excessos concretistas ou abstracionistas. O escape às maneiras habitualmente partilhadas de classificação leva indivíduos esquizofrênicos, com frequência, à apreensão de similaridades não óbvias entre coisas distintas, como indicam respostas criativas que eles dão em testes psicométricos. Por exemplo, diante da pergunta “O que um lápis e um sapato têm em comum?”, um paciente respondeu sagazmente que “ambos deixam rastros” (Ibid.: 126).

Noutros casos, a sensação de estranhamento que os procedimentos classificatórios de pacientes com esquizofrenia despertam é similar à nossa resposta à classificação dos animais na famosa enciclopédia chinesa imaginada por Jorge Luís Borges, que tanto fez rir (e inspirar) Michel Foucault (2002: IX). Segundo a dita enciclopédia, os animais se dividem em:  

a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe se parecem com moscas” (Ibid.).       

A estranheza dessa classificação não se reduz apenas aos animais listados, assim como não deriva de algum desvio imediatamente identificável em relação a nossas maneiras habituais de classificar animais, como o hiperconcretismo (p.ex., “meu cachorro Rex”, “meu gato Ziggy”) ou a hiperabstração (p.ex., “animais que ocupam espaço no mundo”, “animais que estão no Sistema Solar”). Nosso espanto diante da lista de Borges emana da dificuldade de imaginarmos qual seria o critério a partir do qual aqueles animais podem ser inseridos na mesma classificação. Nas palavras de Foucault:

No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos, o que…nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar nisso. Que coisa, pois, é impossível pensar, e de que impossibilidade se trata? A cada uma destas singulares rubricas [os elementos classificados] podemos dar um sentido preciso e um conteúdo determinável; (…)O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente a série…que liga a todas as outras cada uma dessas categorias” (Ibid.: IX-X; grifos meus).

Pais e pedras

Os modos pelos quais certos indivíduos com esquizofrenia categorizam as coisas do mundo parecem, às pessoas sintonizadas com o “conformismo cognitivo” (Durkheim, 1996: XXIV) do seu ambiente sociocultural, tão estranhos quanto a enciclopédia chinesa de Borges. Instado a definir o conceito de “pai”, por exemplo, um paciente diagnosticado como psicótico começou por uma resposta convencional, mas daí enveredou por caminhos inusitados:

Pais são as pessoas que te criam. Qualquer coisa que te crie pode ser um pai. Pais podem ser qualquer coisa, material, vegetal ou mineral, que te ensinou alguma coisa. Pais seriam o mundo das coisas que estão vivas, que estão lá. Pedras, uma pessoa pode olhar para uma pedra e aprender alguma coisa com ela, então ela seria um pai” (Sass, 1992: 152).

Antes de enveredar por um caminho inaudito de ampliação semântica, o paciente revela conhecer o significado habitual, socialmente partilhado, da palavra “pai”. Isto indica que o que está em jogo é menos um déficit de capacidades cognitivas “brutas” do que um conjunto peculiar de orientações cognitivas em relação ao mundo e à linguagem (Stanovich, 2002). Se esta distinção importantíssima é frequentemente perdida de vista por uma psiquiatria mais simplória, vale dizer que a singularidade das orientações cognitivas de pacientes esquizofrênicos é frequentemente vivida por eles como não escolhida. Em outras palavras, trata-se menos de uma “rebelião” intencional contra as amarras sociocognitivas do hábito e da tradição, como rezaria uma concepção “festiva” da loucura, do que de uma espécie de compulsão interna (p.ex., o indivíduo não consegue resistir a tomar as categorias da linguagem ordinária de modo mais fluido e flexível do que o fazem as pessoas “normais”). Dado que a partilha de classificações simbólicas é o que torna possível a organização prática das interações no mundo social (p.ex., para a maior parte das pessoas, a ideia de que uma pedra possa ser um “pai” é simplesmente impensável), a maneira idiossincrática pela qual um indivíduo esquizofrênico apreende o mundo costuma dificultar suas relações com outras pessoas. Dar sentido a uma situação social de maneira idiossincrática significa frequentemente orientar-se, na prática, também de maneiras idiossincráticas.

Ao classificar diferentes situações sociais em “tipos” reconhecidos por outros (p.ex., uma transação econômica, um pedido de informação geográfica entre estranhos), o agente “normal” se vê de posse de um horizonte de expectativas em relação a ocorrências prováveis e improváveis naquelas situações. Como vimos, tal senso do que é provável e improvável em um cenário social não é uma pura representação intelectual, mas um componente visceral de nossa experiência de tal cenário como relativamente seguro ou ameaçador. No sentido puramente sociológico da expressão, o grau de “normalidade” de um indivíduo pode ser aferido pela extensão em que sua definição subjetiva dos ambientes em que ele se encontra (p.ex., “isto é uma aula”, “isto é uma missa” etc.) corresponde à definição socialmente hegemônica desses mesmos ambientes. Em contraste, conforme o indivíduo com esquizofrenia deixa de recorrer aos esquemas de classificação de pessoas, coisas e situações operantes na sua coletividade, o mundo que o circunda passa a ser vivido como bem menos previsível do que o é para o ator “normal”. O efeito dessa ausência de um senso preciso quanto ao que pode ou não acontecer em tal ou qual situação é, naturalmente, um incremento intenso de sua ansiedade.

As definições partilhadas de uma situação também diminuem o seu grau de complexidade para nossa cognição, já que nos orientam a respeito dos aspectos situacionais mais relevantes para nossos propósitos. Em outras palavras, aquelas definições funcionam como critérios de seleção cognitiva dos aspectos do cenário nos quais concentraremos nosso foco, seleção sem a qual nos sentiríamos cognitivamente assoberbados pela multiplicidade de estímulos situacionais. Ao enquadrar uma situação social em um tipo associado a receitas de conduta (p.ex., “estou em uma aula”), já tenho um critério para distinguir entre o que é, para minha atenção, mais relevante (p.ex., os rostos dos alunos aos quais me dirijo como professor) e menos relevante (p.ex., a parede da sala ao fundo). Quando tais critérios para separar o relevante do irrelevante em uma situação social são partilhados por outros, além de frequentemente reiterados na prática, nossa mente passa a utilizá-los de modo espontâneo. Para a maioria dos professores, por exemplo, dirigir o foco explícito de sua atenção aos rostos dos alunos com quem falam, em vez do teto ou das paredes laterais da sala, não é algo que deriva de uma decisão consciente e explícita. Trata-se, em vez disso, de um procedimento habitual que aqueles professores tomam como absolutamente autoevidente. O recurso habitual a tipificações socialmente partilhadas reduz, nesse sentido, nosso dispêndio de energia mental. Como disseram Berger e Luckmann em um dos melhores livros de sociologia do século XX:

No que se refere aos significados atribuídos pelo homem à sua atividade, o hábito torna desnecessário que cada situação seja definida de novo, etapa por etapa. Uma grande multiplicidade de situações pode reunir-se sob suas pré-definições. A atividade a ser empreendida nessas situações pode então ser antecipada. (…) Logo que A e B entram em ação comum,…cada qual será capaz de predizer as ações do outro. (…) Isto liberta ambos os indivíduos de uma considerável quantidade de tensão. Poupam tempo e esforço não apenas em qualquer tarefa externa em que estejam empenhados separados ou conjuntamente, mas em termos de suas respectivas economias psicológicas. Sua vida conjunta define-se agora por uma esfera ampliada de rotinas supostas naturais e certas. Muitas ações são possíveis num nível baixo de atenção. Cada ação de um deles não é mais uma fonte de espanto e perigo potencial para o outro” (1985: 78; 81-82).

Uma luz contínua e ofuscante

São precisamente estes artifícios de “economia psicológica” de tempo e energia, assim como de neutralização da ansiedade, que passam a faltar ao indivíduo com esquizofrenia que se distancia dos modos habituais de classificação vigentes no seu meio. Na ausência de um critério nítido, tido como óbvio, para distinguir entre os aspectos relevantes e irrelevantes das situações que ele encontra, sua cognição se vê assoberbada por uma quantidade potencialmente infinita de estímulos cognitivos. No maravilhoso livro Autobiografia de uma garota esquizofrênica (1951), a autora, que se apresenta como “Renee”, compara essa percepção do real à exposição a uma luz contínua e ofuscante. Um modo de compreender essa caracterização é tomando como um “jogo de luz e sombra” o funcionamento dos critérios socialmente partilhados que usamos para distinguir o mais relevante do menos relevante em nosso mundo vivido. Dirigir o foco explícito a um aspecto da situação é nele projetar luz, por assim dizer, colocando o restante da situação na sombra ou na penumbra. Sem estes critérios, no entanto, o mundo torna-se inteiramente “iluminado”, perpassado por “uma luz implacável que cega, sem deixar nenhum lugar para a sombra” (Sechehaye, 1951: 44). A exposição ininterrupta à luz forte é, como se sabe, uma técnica de tortura frequentemente utilizada em prisões, de modo que é compreensível que Renee reporte a experiência como  terrivelmente angustiante (Ibid.).

“Agorafobia metafísica” e hiper-reflexão

Sem um senso seguro quanto às ocorrências (im)prováveis em tal ou qual situação, a consciência do indivíduo se vê diante de tamanha multiplicidade de possibilidades que o resultado é uma vertigem existencial, uma sensação ansiosa que Peter Berger descreveu como “agorafobia metafísica” (1972: 75). A desorientação cognitiva e a hesitação prática que resultam dessa experiência levam observadores externos a classificar o indivíduo com esquizofrenia como socialmente incompetente. Suas dificuldades práticas não resultam, entretanto, de pouca atividade mental, mas, ao contrário, precisamente do fato de que aspectos do mundo que tomamos como autoevidentes são por ele vividos como problemáticos e, por isso, conscientemente considerados. Tais dificuldades nos revelam às avessas a montanha de dimensões de nossas ações rotineiras que entregamos à inércia do hábito e da tradição. Caso contrário, seríamos condenados a uma espécie de paralisia da análise (analysis paralysis) a cada passo que déssemos no mundo social, o que é frequentemente o que acontece com pacientes de esquizofrenia. Esta postura problematizadora diante do mundo, a qual impede o abandono de si às operações do hábito, é inteligentemente descrita por uma paciente chamada Anne como “perda da autoevidência natural”:

Anne…descreve a si própria como não possuindo algo banal, porém verdadeiramente fundamental, algo que, na experiência normal, ela diz, é ‘sempre já’ assumido e ‘vem antes’ de tudo o que as pessoas notam. (…) Anne também fala…da falta de um senso de repouso inerente ao fato de se ter uma ‘posição estável’ ou ‘ponto de vista’ sobre a vida e seus desafios. (…) Anne tem constantemente a sensação de estar começando tudo de novo. Ela experimenta um humor de alienação-e-fascínio quase surrealista em que tudo a surpreende como ‘estranho’, ‘engraçado’ ou novo de algum modo. (…) Anne sente-se…como se…‘eu estivesse observando, de fora, em algum lugar, todo o movimento do mundo’. Isto torna difícil para ela levar a cabo muitas das ações da vida cotidiana de modo fluido e eficiente. Em vez disso, ela é hesitante, estranha e incerta” (Sass, 2004: 306).

O fato de que algo (p.ex., o apertar das mãos como cumprimento social) nos pareça estranho, absurdo, arbitrário ou engraçado nos encoraja a refletir a respeito dele. Quando descobrimos que esse algo, estranho para nós, não é nem um pouco estranho para ninguém mais, ele não se torna menos, mas mais problemático. Como ocorre por vezes nos círculos infernais de hiper-reflexão, o fato de que Anne se interrogue sobre coisas que as demais pessoas no seu meio social tomam por naturais e autoevidentes torna aquelas coisas ainda mais enigmáticas, o que as traz continuamente à sua atenção consciente, o que reforça seu senso de estranheza, e assim por diante…        

Anne fala sobre ‘ficar presa’ em questões e problemas óbvios dos quais as pessoas saudáveis simplesmente passam ao largo. Enquanto outras pessoas, sem esforço, desenvolvem…uma…habitual… ‘maneira de pensar’ que orienta e canaliza sua ação e pensamento, Anne explica que, para ela, ‘tudo é um objeto de pensamento’. Na verdade, ela é incapaz de parar de pensar e questionar os fatos ou axiomas mais comuns da vida cotidiana, e se vê colocando questões que ela mesma reconhece como sem sentido ou banais” (Ibid.: 307).

Uma vez mais, o estudo da esquizofrenia nos coloca diante de uma mistura de “capacidades” e “incapacidades”, de lucidez e de cegueira, que nos impede de deslizar seja para um discurso psiquiátrico simplório que só vê nela o déficit, seja para um discurso romântico (igualmente simplório) que a pinta como alegre libertação das amarras psíquicas da normose.

Volto ao tema depois.

Referências bibliográficas

BERGER, P. Perspectivas sociológicas. Petrópolis: Vozes, 1972.

BERGER, P. ; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.

CAMERON, N. “Schizophrenic thinking in a problem-solving situation”. The British Journal of Psychiatry, Sep 1939, 85 (358), pp.1012-1035.

DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

DURKHEIM, E.; MAUSS, M. Algumas formas primitivas de classificação. In: RODRIGUES, J.A. Durkheim: sociologia. São Paulo, Ática, 2000.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GOLDSTEIN, K. Human nature in the light of psychopathology. New York, Schocken Books, 1940.

KUPERBERG, G.R.; CAPLAN, D. “Language dysfunction in schizophrenia”. (https://www.researchgate.net/profile/Gary_Ginsberg2/publication/14427257_Language_dysfunction_in_schizophrenia/links/545895cc0cf2cf5164825016/Language-dysfunction-in-schizophrenia.pdf).

LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986.

SASS, L. Madness and modernism: insanity in the light of modern art, literature, and thought. New York: Basic Books, 1992.

SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

SECHEHAYE, M. Autobiography of a schizophrenic girl. New York: New American Library, 1951.

STANOVICH, K. “Rationality, intelligence, and levels of analysis in cognitive science”. In:  STERNBERG, R. Why smart people can be so stupid. New Haven/London: Yale University Press, 2002.

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