Por Adelia Miglievich (UFES)
Apresentação
Questionando certo tipo de produção intelectual que subestimou a autorreflexão sobre os contextos cultural e político nos quais emerge, destacando, noutra direção, que experiências mormente tomadas como universais não são menos locais – em verdade, todas, sem exceção, são glocais (APPADURAI, 1998) -, ganha notoriedade a reescrita pós-colonial. Esta nada tem de paroquialista e provinciana, ao contrário, propõe o aprendizado e a vivência de outras línguas, sensibilidades, cosmovisões a render parâmetros analíticos não convencionais, inspirando, inintencionalmente, novas modelagens teóricas também na sociologia.
Fazer teoria é um esforço de abstração, de imaginação, comunicar-se além delas. As ideias não são simplesmente determinadas pela experiência; podemos ter ideias fora da própria experiência. Mas precisamos reconhecer também que a experiência tem uma forma e se não refletirmos bastante sobre os limites da própria experiência (e a necessidade de se fazer um deslocamento conceitual, uma tradução, para dar conta de experiências que pessoalmente não tivemos), provavelmente vamos falar a partir do continente da própria experiência, de uma maneira bastante acrítica. (HALL, 2009, p. 17)
A atenção a outros mundos possíveis, a temporalidades que se mesclam escapando aos binômios nada críveis como razão x emoção (aliás, o que é a razoabilidade e o bom-senso se não a racionalidade dita “pura” enfim associada à sensibilidade?); moderno x primitivo ou civilização x barbárie (quem são os primitivos e bárbaros em tempos de fronteiras tênues como linhas traçadas na areia?); masculino x feminino, dentre outros. Assim, alargar a percepção das possibilidades de (co)existência é desafiar, também, a sociologia, que nasceu datada e localizada geopoliticamente, a fim de que, hoje, menos etnocêntrica, possa contribuir em revelar a realidade como esta teria sido sempre, ou seja, híbrida.
Desconstruir o discurso colonial recorrente nas práticas e no ordenamento das sociedades ontem e hoje é uma de suas tarefas. Trata-se de problematizar suas ambiguidades que permitiram a proliferação das fantasias contendo a fobia e o desejo do dominador, pulsões contraditórias, a maltratar os colonizados e a enlouquecer os colonizadores: os “aterrorizantes estereótipos de selvageria, canibalismo, luxúria e anarquia (…)” (BHABHA, 2007, p. 114).
Oxalá, falar sobre o pós-colonial, sem receios, ajude a minimizar a rejeição, tantas vezes, por simples desconhecimento, de que este ainda é alvo entre os que, no Brasil, propõem novas agendas para a sociologia.
Críticas e réplicas: estudando Suart Hall
Na prática, a crítica pós-colonial ganhou notoriedade com os assim chamados intelectuais diaspóricos que, na vida e no ofício, experimentaram e experimentam a “dupla inscrição”. Híbridos, por excelência, estes fortalecem o argumento de que a ciência, como artefato humano, é um poderoso instrumento para dar visibilidade ou invisibilizar aspectos de um mundo que é diverso, plural, conflitivo e desigual. Fato é que um significativo número dos autodesignados intelectuais pós-coloniais estabeleceram-se nas universidades do Norte e passaram a publicar, principalmente, em inglês. Talvez, tenha sido o único modo encontrado para serem lidos além de sua comunidade nacional original. Aqui se trata de relações poder que definem a língua da ciência[1].
Eis que a provocação de Dirlik (1997) de que seria um contrassenso a ocupação pelos pós-coloniais de cátedras em universidades dos países centrais pareceu frágil aos olhos de Stuart Hall que preferiu responder considerações críticas que julgou mais relevantes (ninguém perguntou as motivações que o levaram a deixar a Jamaica e a ela não conseguir retornar até que seus pais já fossem falecidos). Hall acolhe a preocupação, noutra perspectiva, de Anne McClintock acerca do pós-colonialismo que poderia induzir, nas palavras da última, a uma equivocada ideia de “suspensão arrebatada da História” (HALL, 2009, p. 96). No mesmo texto, também leva a sério a acusação de Ella Shoat à ênfase na hibridez e nos trânsitos pós-coloniais, podendo estes provocar perigosamente um tipo de conservadorismo que obscureceria as distinções nítidas entre colonizadores e colonizados. Retoma o diálogo com Dirlik (HALL, 2009) quando de sua certeira observação acerca de uma tendência ao menosprezo dos pós-coloniais pela análise da estruturação capitalista do mundo moderno, de maneira a se tornar um novo culturalismo.
Hall responde todas as críticas. Em primeiro lugar, recusa a interpretação do pós do pós-colonial como periodização cronológica, substituindo-a pelo sentido epistemológico do prefixo que sugere a atitude de “olhar além”, promovendo leituras inéditas da alteridade, vista como artifício para a produção de subalternidades e para sua reprodução mediante os neocolonialismos. Em que pese também temer o conservadorismo, não crê que isso se deva ao pós-colonial, ao contrário. Sua adesão à différance derridiana[2] impõe problematizações que jamais faria um típico “conservador”. Stuart Hall assinala que a dicotomia (moderna) entre algozes e vítimas dá-se numa complexa e móvel rede de antagonismos, alianças, distanciamentos, aproximações entre sujeitos que se constituem indefinidamente (jamais estarão “acabados”) na instabilidade de suas posições. Nota que o pós-colonial possibilita que se pense, por exemplo, nas intervenções das potências mundiais no Oriente Médio e seus paradoxos, na miséria de um mundo cujo mercado bélico é o mais lucrativo de todos os tempos, nos terrorismos, nas guerras, nos genocídios e no extraordinário número de refugiados no planeta, realidades não tão inteligíveis para a sociologia sem a atenção às fronteiras, aos deslocamentos, às fissuras do projeto moderno, às enunciações fraturadas, à cegueira ao “outro”, então, estereotipado, à produção, portanto, da alteridade como subalternidade.
No que concerne à virada linguística e cultural, Hall faz o mea culpa e lamenta que o ganho trazido pelo pós-estruturalismo não tenha sido ainda utilizado em proveito da discussão contemporânea das novas formas de acumulação de capital e no exame das novas subjetividades nascidas a partir das transformações objetivas no mundo do trabalho. O autor afirma que cabe exigir dos pós-coloniais que focalizem as mutações no capitalismo global, os variados modos de divisão internacional do trabalho, as novas tecnologias de informação global, a transnacionalização da produção, convencido de que o olhar pós-colonial tem o que acrescentar a tais análises (HALL, 2009). Recusa a ideia de que haja algum obstáculo epistemológico para que a crítica pós-colonial não caminhe ao lado da crítica do capital. Vê potencialidades no diálogo com a teoria da economia-mundo e dos sistemas históricos. Nalgum momento, atribui esta dissociação ao fato de que há muito mais pós-colonias entre críticos culturais e literários, semiólogos e linguistas do que entre os cientistas sociais.
O pós-colonial é pós-moderno?
O ganês Kwane Anthony Appiah, ao discorrer sobre o pós-colonial, ensina que este, influenciado pela virada linguística, tem, em sua especificidade, algo a ensinar ao genérico pós-moderno, uma vez que sua crítica à razão iluminista não se motivara por dilemas teóricos com Hegel ou Weber, mas expressava a resistência concreta ao massacre de seus povos. Nesse sentido, Mundibe, Soyinka, Achebe, Farrah, Gordimer, Labou Tansi e tantos outros fizeram da contestação pós-colonial, diferentemente do pós-moderno ocidental, uma concreta, urgente e consequente advertência “em nome das vítimas sofredoras de ‘mais de trinta repúblicas’” (APPIAH, 1997, p. 216). O pós-colonial afasta-se, assim, de qualquer pós-moderno celebratório de matizes individualistas. Nele, há projetos coletivos em questão. Trata-se de povos que buscam se legitimar como partícipes simétricos de um inédito “universal ético, em nome do humanismo”: outro humanismo, provisório, historicamente contingente, anti-essencialista, nem por isso, menos exigente em sua preocupação vigorosa de “evitar a crueldade e a dor” (APPIAH, 1997, p. 216).
Noutro espectro, Edward Said – nascido palestino em Jerusalém, cidadão norte-americano por herança do pai que lutou na I Grande Guerra pela Força Expedicionária Americana – expõe o estereótipo do “árabe” em Orientalismo. O Oriente como reinvenção do Ocidente (2007[1978]), tido como obra fundante da crítica pós-colonial. Na obra, explora a falácia das ideias-força “ocidente” e “oriente”, falsas sinonímias de civilização e barbárie. Redescobre os mitos compilados e reforçados em uma vasta literatura designada “orientalismo” que ainda compõem os currículos de universidades e as estantes das bibliotecas do “mundo ocidental”, e inspira um rico mercado midiático, ao inventar o “outro” (Oriente) na exata medida em que furta deste os atributos humanos, obscurecendo-os.
No início do século XIX, as teses do atraso, degeneração e desigualdade orientais em relação ao Ocidente associavam-se muito facilmente a ideias de sobre as bases biológicas da desigualdade racial […]. A essas ideias era acrescentado um darwinismo de segunda categoria, que parecia acentuar a validade “científica” da divisão das raças em adiantadas e atrasadas, ou europeias-arianas e orientais-africanas. Dessa forma, toda a questão do imperialismo, assim como era debatida no final do século XIX tanto por pró-imperialistas como por anti-imperialistas, levava adiante a tipologia binária das raças, culturas e sociedades adiantadas e atrasadas (subjugadas) (SAID, 2007, p. 280).
Frantz Fanon, ícone do pós-colonial, martiniquense, diaspórico, revolucionário em Argélia – psiquiatra que atuou e descobriu a insuficiência da clínica em contexto de dominação colonial, quando a alienação experimentada pela pessoa era sintoma de uma estrutura social adoecida, na qual todos estavam condenados à “despessoalização” (desumanização) –, escreveu em Pele negra, máscaras brancas (2008 [1952]) sobre a neurose do racismo a atingir negros e brancos. Em linguagem psicanalítica, Fanon revelou o regime do delírio nas relações cotidianas entre colonizador e colonizado, em que um é chamado à existência pelo olhar do outro, maniqueísta, que não dá espaço às vidas reais. Suspendem-se as relações pelas representações redutoras da dicotomia que escraviza negros e brancos, respectivamente, em suas supostas inferioridade e superioridade. Acerca do medo que preside a relação, Fanon remete ao caso do negro e de sua corporeidade em um mundo de brancos:
Depois tivemos de enfrentar o olhar branco. Um peso inusitado nos oprimiu. O mundo verdadeiro invadia o nosso pedaço. No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas. Sei que, se quiser fumar, terei de estender o braço direito e pegar o pacote de cigarros que se encontra na outra extremidade da mesa. Os fósforos estão na gaveta da esquerda, é preciso recuar um pouco. Faço todos esses gestos não por hábito, mas por um conhecimento implícito. Lenta construção de meu eu enquanto corpo, no seio de um mundo espacial e temporal, tal parece ser o esquema. Este não se impõe a mim, é mais uma estruturação definitiva do eu e do mundo – definitiva, pois entre meu corpo e o mundo se estabelece uma dialética efetiva. (FANON, 2008, p. 104)
Que sejam pós-modernos os três nomes acima citados. Mais relevante é notar que subvertem o pós-moderno desde sua condição subalternizada até se reencontrarem no apelo ético irrefutável ao humanismo crítico, por isso, ampliado, a conter outras civilizações e gentes, a reivindicar para estas o direito à dignidade humana e à autenticidade.
Para falar em considerações finais
O pós-colonial, ao desconstruir os discursos e as instituições da modernidade ocidental, não refuta exatamente as “energias utópicas”, se não as potencializa a partir das ex-colônias que vêm subverter as relações de mando e obediência ainda hoje existentes, quebrando e mesclando coleções organizadas e sistemas culturais, desterritorializando processos simbólicos, fazendo nascer e expandir os gêneros “impuros”, redefinindo temporalidades, atores e espectadores (BHABHA, 2007).
A crítica pós-colonial, que reúne dos estudos subalternos aos estudos culturais[3], aponta para um mundo de insurgências, enfrentamentos, irrupções, conflitos. Seu tema emerge de movimentos reais, deslocamentos, diásporas, experiências e narrativas migratórias, zonas de indecidibilidade também no que se refere aos trânsitos entre gêneros, “raça”, etnia e quaisquer pretensões de uma identidade fixa que, enfim, demonstram uma cultura planetária que é sempre oscilante.
A questão pós-colonial impõe reorganizar a memória de outro modo. Como diz Bhabha (2007, p. 101), porém, “relembrar nunca é um ato tranquilo de introspecção. É um doloroso se relembrar, uma reagregação do passado desmembrado para compreender o trauma do presente”. Se, ainda assim, conhecer é preciso, não se poderá negar que a ciência é, também, um campo de disputa política entre seus atores, apostas e crenças acerca do que vale a pena ser conhecido, “como” e “até onde”. Há que se dizer que a crítica pós-colonial parte desta constatação e, não por outro motivo, vê sentido em se falar nas colonialidades presentes na conversação científica.
Referências:
APPADURAI, Arjun. Disjunção e diferença na economia global. In: FEATHERSTONE, Mike (coord.). Cultura Global: Nacionalismo, globalização e modernidade 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
APPIAH, Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007.
DIRLIK, Arif. A aura pós-colonial: a crítica terceiro-mundista na era do capitalismo global. Novos Estudos Cebrap, 49, nov. 1997, p. 7-32.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite. In: ______. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009 (Coleção Humanitas).
MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M. & PRAZERES, L. L G. dos. A produção da subalternidade sob a ótica pós-colonial (e decolonial): algumas leituras. Temáticas, Campinas, 23, (45/46): 25-52, fev./dez. 2015.
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
[1] Devemos lembrar, mais próximo de nós, que as revistas brasileiras que ambicionam o selo de qualidade scielo têm, agora, que, a cada número, garantir 30% de seus artigos em inglês, crivo para o reconhecimento de sua internacionalização.
[2] Seguindo a proposta derridiana, a diferença não é o oposto da semelhança, mas é différance (com “a” para lhe dar outra conotação), isto é, identidades simultâneas, plurais e parciais que se manifestam em fluxos ininterruptos, colocando em xeque qualquer essência ou fundamento rígido e imutável que, até então, sustentava o discurso do sujeito moderno, negando seus conceitos hifenizados, sua condição híbrida de nascença, permitindo-nos falar em diferenças nas semelhanças e semelhanças nas diferenças, somos todos muitos, somos também instáveis e incompletos. Cf. MIGLIEVICH-RIBEIRO, A. M & PRAZERES, Lílian L. G. dos, 2015, p. 25-52.
[3] É preciso ainda mencionar que, mais de um século antes de se falar em “pós-colonial” a partir das experiências de libertação em África e em Ásia, as guerras independentistas na América Hispânica se processaram e, nesse contexto, podemos dizer que as primeiras narrativas a confrontar a metanarrativa da modernidade nasciam em solo latino-americano. Nessa senda, o atual movimento intelectual conhecido como Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade promove um trançado que faz o pensamento crítico latino-americano dialogar com os mais recentes insights do pós-estruturalismo francês, dos estudos culturais britânicos e dos estudos subalternos indianos que julgo salutar. Assumo a boa dívida de ainda falar desta “antropofagia” aqui no Blog do Sociofilo.
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