Indicação de Frédéric Vandenberghe
Habermas, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio.São Paulo, Editora Tempo Brasileiro, 2002 [1973].
No IESP-UERJ temos um curso bem puxado que se chama “Estudos exemplares”. Nele, os professores escolhem uma obra e os alunos fazem uma resenha dela. Neste ano escolhi Habermas: Crise de legitimação no capitalismo tardio de 1973. Não foi uma boa escolha, não porque o livro é execrável, datado ou irrelevante, mas porque, como sempre, a prosa do Habermaster é difícil e densa (e a única tradução disponível para o português, de qualidade nada boa, a dificulta ainda mais). A leitura pressupõe um conhecimento enciclopédico que não é mais de nosso tempo. A tese central do livro é que a contradição básica do capitalismo tardio é a apropriação privada da riqueza pública. Posto que esta apropriação constitui uma supressão do interesse geral, ela não poderia ser justificada se uma discussão pública ocorresse e, portanto, para que ela ocorra, ela retira a legitimidade da política.
O esquema do livro, de inspiração parsoniana, é elegante e simples: com a intervenção do estado na economia, a crise econômica pode ser resolvida ou, melhor, deslocada para o sistema político, no qual ela reaparece como uma crise de administração. Sem apoio da população, a desorganização do Estado pode conduzir a uma crise de legitimação. Se a crise de legitimação não for resolvida, ela pode se transformar numa crise de motivação e induzir a patologias sociais e psicológicas. De repente, o mundo perde o seu sentido. Como disse Gramsci (que Habermas nunca cita): “Nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Para resolver o problema, há apenas duas soluções: domesticar o capitalismo e passar ao socialismo ou desconectar o sistema político das exigências de legitimação e instaurar uma tecnocracia.
Habermas antecipou o antropoceno, mas não mencionou a possibilidade de um golpe do estado como terceira via criativa que salve o capitalismo rentista, instaure uma tecnocracia, controle a mídia, juridifique a política e reprima os protestos. Nesta altura, talvez a perspectiva de Luhmann seja a mais realista: “Quase tudo é possível; porém, quase nada posso mudar”. Ou, numa versão brasileira. Tudo pode mudar em 30 minutos. Mas quando você volta 30 anos depois, você descobre que nada mudou. Feliz ano novo!
Indicação de André Magnelli
Que o mundo não vai nada bem, todo mundo sabe. Que 2016 foi um ano tido por quase todos como de ruim a terrível, passando pelo péssimo, é um fato consumado. Infelizmente, há também pouquíssima esperança de que 2017 seja algo melhor, pois temos no horizonte a tomada de posse de Donald Trump e seu ministério dos horrores no comando da superpotência mundial, a ascensão da extrema direita em uma Europa em crise permanente, as guerras, conflitos e refugiados do Oriente Médio e norte da África diante de um mundo impotente e, last but not least, a crise e incerteza econômica e política de nosso caótico Brasil.
Sim, é fato, tais crises são sentidas na pele por todos e há um anseio bem difundido por superá-las. Mas quase nunca o sentimento de que há uma crise corresponde a um adequado diagnóstico do problema, nem também repercute, necessariamente, em vias adequadas de solução. Afinal, um inadequado entendimento do que ocorre pode nos levar a uma espiral ascendente de crise, violência e incompreensão. Até porque, diante da incerteza do futuro, é comum reavivarmos fantasmas do passado que, assombrando-nos novamente, não trazem mais consigo os sobrehumanos poderes dos quais esperamos.
Precisamos, portanto, compreender o que nos acontece, não somente para dar sentido aos acontecimentos, mas sobretudo para manter nossa capacidade de agir e transformar o mundo. Para tanto, a teoria social oferece-nos excelentes serviços. Afinal, não somente de agência, estrutura e processo vivem os teóricos sociais. A teoria social é, sobretudo, uma ontologia do tempo presente e, para tanto, ela se impõe o desafio de interpretar criticamente o presente a fim de orientar uma práxis emancipatória. Desta forma, ela recusa produzir um saber a ser utilizado para a manutenção e reprodução de modos ilegítimos de poder e dominação e o orienta em prol das promessas de autonomia individual e social advindas na história com o Esclarecimento e a invenção das democracias.
Diante da missão de sugerir leituras para 2017, me vieram à mente, então, três indicações: a proposta de reconstrução da sociologia clássica por Caillé e Vandenberghe, a teoria e história da democracia de Rosanvallon e, por fim, as recentes publicações pela UNESP dos “pequenos escritos políticos” de Habermas.
Caillé, Alain; Vandenberghe, Frédéric. Pour une Nouvelle Sociologie Classique. Paris: Le Bord de l’Eau, 2016.
A primeira forma de contribuição é no nível da reconstrução teórica. Não é somente o mundo que está fragmentado: o pensamento o está igualmente. Se nosso século XXI pode ser visto como tendo iniciado com o colapso do totalitarismo comunista em 1989-1991, ele também pode ser visto como movido por um mito substituto: o do neoliberalismo. Se o totalitarismo foi um triunfo do todo sobre as partes, de seu lado, o neoliberalismo é uma espécie de “parcelitarismo”, porque faz triunfar as partes sobre o todo, a fragmentação sobre a coesão. Como disse o filósofo francês Marcel Gauchet, temos que perceber que tal vaga não se restringe, de forma alguma, às questões de gestão econômica e de modelo de Estado, pois ela penetra na própria cabeça das pessoas, inculcando a convicção de que a máquina coletiva pode marchar completamente sozinha, e que, de resto, não há grande coisa a fazer e nada a compreender. Neste sentido, os intelectuais, estes bichos estranhos dedicados a um esforço de compreensão do conjunto da realidade, poderiam então entrar em luto e começar a escrever os seus epitáfios.
Contudo, no sentido inverso da maré jusante do pensamento e da maré montante da mercantilização, utilitarização e fragmentação de todas as coisas e pessoas, dois dos principais teóricos da atualidade, o fellow “Fred” Vandenberghe e o militante do dom Alain Caillé, aparecem como resistentes irredutíveis. E acabaram de unir seus esforços publicando um “livro-manifesto” em prol da reconstrução da sociologia clássica. Ao identificarem uma quádrupla fragmentação das ciências sociais, eles defendem que nos inspiremos na forma pela qual os clássicos fizeram sociologia e retomemos o momento de síntese próprio da teoria social ou, para falarmos de modo mais antigo preferido por Caillé, da “sociologia geral”. Mas vale ressaltar que eles não propõem um simples retorno ao que faziam Marx, Durkheim, Weber, Simmel ou Tarde. Ao contrário, a nova síntese porvir deve estar, para eles, conectada com as aquisições normativas da filosofia moral e política contemporâneas, bem como com as aquisições descritivas, explicativas e interpretativas obtidas com as atuais pesquisas sociológicas e antropológicas. Ela parte, além disso, das distintas elaborações teóricas contemporâneas, como as teorias do dom, do care, do político e do reconhecimento, que convergem todas para um mesmo paradigma: o da “intersubjetividade” e da “interdependência”. Paradigma que, na dimensão da práxis transformativa, foi transformado, pelos mesmos autores e muitos outros (como Edgar Morin, Paulo Henrique Martins, etc.) em um “manifesto convivialista”, cuja “declaração de interdependência”, comentada por intelectuais brasileiros e de leitura mais do que recomendada, foi recentemente publicada.
Recusando-se, assim, a serem esterilizados por uma má compreensão do que é “neutralidade axiológica”, eles nos lembram da razão pela qual os clássicos conseguiram chegar a um elevado nível de relevância teórica a ponto de transcenderem o seu próprio tempo e responderem a nossas próprias questões: é que eles se orientaram, de distintas formas, por um ideal normativo comum, o da democracia. A respeito disso, os autores afirmam, sem titubear, que “a democracia tornou-se o horizonte inultrapassável de nosso tempo”; e por isso, se as ciências sociais querem se manter relevantes, elas têm que ser capazes, antes de tudo, de pensar a democracia, mas igualmente de defender e promovê-la. O que pode ser feito seguindo o horizonte moral, proposto por Vandenberghe inspirado em Paul Ricoeur, de uma “vida boa com e pelos outros em instituições justas (e ecologicamente sustentáveis)”.
Rosanvallon, Pierre. Le Bon Gouvernement. Paris: PUF, 2015.
A segunda forma de contribuição está no esforço de compreender, teórica e historicamente, as mutações das democracias contemporâneas. As múltiplas crises de nosso tempo podem ser remetidas, provavelmente, a uma crise fundamental: a crise das democracias, no mundo e no Brasil. Muito foi dito no nosso país, ao longo de 2016, sobre a questão da legitimidade na democracia. Assistimos a uma polarização política entre os defensores da tese do “impeachment” e os da tese do “golpe”. Diga-se, com franqueza, que não faltaram maus argumentos de ambos os lados e que o debate na esfera pública, por razões cínicas ou sinceras, passaram muitas vezes ao largo do problema fundamental: a saber, o que é democracia e quais são as suas formas de legitimação.
Este problema de atualidade vertiginosa depende, a meu ver, de uma adequada teoria da democracia que seja fundamentada historicamente. Ou seja, precisamos de uma teoria que não se reduza à questão do que deve ser a democracia, mas sim que, de forma mais fundamental, reconstrua e se fundamente nas experiências democráticas, que são cheias de aprendizados, assim como de erros, ao longo da história moderna. Para tanto, podemos ler um dos principais teóricos e intérpretes contemporâneos da democracia: Pierre Rosanvallon. Ele escreveu na última década uma incontornável tetralogia sobre as mutações das democracias contemporâneas: depois de Contra-democracia (2006), Legitimidade Democrática (2008) e Sociedade dos Iguais (2011), ele acabou de publicar o último da série, O Bom Governo (2015) (todos eles felizmente traduzidos para o espanhol). Os quatro livros têm em comum uma constatação fundamental: a de que as democracias do final do século XX e início do XXI não se deixam reduzir às fundamentais formas eleitorais de representação e que a legitimação democrática e os modos de representação da soberania popular eram, e o são ainda mais hoje, muito complexos e plurais.
A este respeito, o último livro é um brilhante esforço de suprimir uma lacuna das teorias democráticas: a de uma necessária teoria do poder executivo, ou do poder governamental. A grande maioria das teorias democráticas tomaram como padrão as formas de poder legislativo ou as do judiciário. Quando o poder governamental foi tratado positivamente, ele o foi de forma reduzida: ou, tal como nos candidatos a Maquiavel, pelos conselhos ao príncipe em como dissimular diante das massas; ou, tal como nas visões tecnocráticas, pela concepção de um poder a ser submetido à ciência e a agentes tecnicamente treinados. Falta-nos, assim, uma teoria positiva desta modalidade de poder de vontade, ação e execução. A teoria social mais próxima disso foi a de Weber, quando tratou da democracia plebiscitária e das tensões entre a burocracia, o parlamento e o político. Fora ela, temos a chave fascista de Carl Schmitt, que transformou o poder executivo em um Führer que decide no estado de exceção.
Tais questões, que aparentemente são muito abstratas e que somente interessariam aos teóricos sociais ou aos historiadores, são centrais para pensar as nossas democracias. Isso porque, se foi perceptível, nos últimos anos, que ocorreu uma ascensão das autoridades de vigilância, dos juízes e dos tribunais (o que foi muito estudado e debatido a partir da noção de “judicialização”), nós temos um processo geral e global menos estudado e debatido de presidencialização e personalização das democracias. Importa-nos então compreender a natureza deste poder e do processo de seu fortalecimento. O autor mostra, com detalhes, como ele deixa de ser aquele poder de encarnação da vontade popular una (tal como presente no Füher nazista ou no egocrata comunista) e se torna, cada vez mais, submetido a mecanismos sutis e intangíveis de presença, de reconhecimento, de reputação e de interação entre representantes e representados.
Tal processo tem certamente o perigo de derivas iliberais e populistas (vide a vitória de Donald Trump). Contudo, ele faz surgir, muito mais positivamente, algumas regras de legitimação de um “bom governo”, como obedecendo aos critérios de legibilidade, responsividade, veracidade e integridade. Infelizmente, na querela brasileira do “impeachment ou golpe”, tal dimensão da legitimação democrática passou completamente desapercebida, pois o que prevaleceu foram os critérios judicial – o do “crime de responsabilidade” – e/ou eleitoral – os “milhões de votos”. Neste sentido, Rosanvallon contribui sobremaneira para compreender nossa crise, até porque, sendo nossa democracia presidencialista, torna-se ainda mais necessário pensar os critérios de legitimação do poder executivo. Ao lê-lo, poderemos ver que a personalização das democracias não é um mero resultado de um sociedade midiática. Mais fundamentalmente, ela corresponde a demandas funcionais. E elas possuem, inclusive, um possível horizonte de emancipação, em direção ao que ele denomina de uma “segunda revolução democrática”, que, após a primeira revolução da democracia eleitoral e parlamentar, faria emergir uma madura democracia de confiança, de apropriação e de exercício.
Habermas, Jürgen. O Ocidente Dividido. São Paulo: Editora UNESP, 2016 [2004]; Na Esteira da Tecnocracia. São Paulo: Editora UNESP, 2014 [2013].
Por último, no nível da interpretação dos acontecimentos políticos, indico a leitura de dois dos mais recentes “pequenos escritos políticos” de Jürgen Habermas traduzidos para o português.
Assim como os teóricos sociais não vivem apenas de agência e estrutura, Habermas não vive apenas de pragmática universal e teoria do agir comunicativo. Há toda uma faceta subestimada da obra habermasiana, que é a sua persistente capacidade, exercida desde 1950, de interpretar os acontecimentos políticos ao calor da hora sob o fardo da falibilidade do intelectual e de sua responsabilidade diante da esfera pública democrática.
Para conhecer tal aspecto da obra habermasiana e ser adestrado pelo que há de melhor do pensamento político do nosso tempo, indico a leitura de dois escritos: um mais antigo, O Ocidente Dividido (2004), que reúne textos e entrevistas de logo após os atentados de 2001 (de 2002 a 2004); e outro bem recente, Na Esteira da Tecnocracia, que compila escritos posteriores à crise dos subprimes (2009-2013). Essas são leituras mais do que necessárias em um contexto internacional de provável retomada do unilateralismo americano e de crise da União Europeia, que é uma situação que demanda, mais do que nunca, que interpretemos de modo realista os acontecimentos, mas sem perdermos o horizonte normativo de um direito cosmopolita e de uma solidariedade pós-nacional, únicos capazes talvez de desfazer o nó górdio das crises globais.
Indicação de Diogo Silva Corrêa
Collins, Randall. Interaction Ritual Chains. Princeton University Press, 2004.
Nenhuma teoria é capaz de dar conta da totalidade da experiência humana. Teorias são sempre incompletas e, quando não dominadas pela hubris, deliberamente parciais. No entanto, isso não quer dizer que elas sejam incompletas e parciais sempre do mesmo modo. Por isso, podemos estabelecer dois tipos de incompletude. Um primeiro que se calca em uma forma de conhecimento que se pretende uma fotografia do mundo tal como ele é. Claro, sabe-se que é impossível dar conta da totalidade do mundo, mas, ainda assim, tenta-se mitigar essa impossibilidade utilizando-se de métodos de objetivação e de totalização. O escopo aqui é assumir a incompletude, mas, justamente por reconhecê-la, buscar algo que seja representativo da realidade pesquisada como um todo. Esse estilo é bastante utilizado, como se sabe, na produção do universo de probabilidades e de diversas modalidades de predição – a estatística, na sociologia, é sem dúvida um de seus dispositivos diletos. Tal modo de produção de conhecimento pode ser aproximado, nesse sentido, de uma ideia clássica de ciência.
O segundo tipo, por sua vez, está muito mais próximo da pintura artística do que da fotografia científica: ao invés de esforçar-se para capturar um retrato fidedigno do real tal como ele é, ele investe de modo deliberadamente parcial e desmesurado em apenas um de seus elementos fundamentais. No lugar de um conhecimento por representatividade e totalização, busca-se um conhecimento por recorte e depuração. Afeto, linguagem, cultura, símbolo, signos, etc, trata-se sempre, ao menos em um primeiro momento, de abstrair tudo do universo, exceto o elemento do qual se deseja tratar. Ainda que outros elementos possam posteriormente entrar em questão, tudo o mais deriva ou é entendido a partir desse primeiro elemento inicial depurado. Nesse segundo estilo de produção de conhecimento, sabe-se que o real não se reduz ao elemento depurado; mas, ao mesmo tempo, sabe-se que é impossível falar da experiência do real sem que o elemento para o qual se chama a atenção seja levado em consideração.
A minha indicação, aqui, atem-se ao que é representativo do segundo ponto, mais precisamente ao que, na sociologia, mais tem se aproximado da virada afetiva (cf. as viradas nas ciências humanas).
Por que, então, indico o ainda pouco conhecido livro de Randall Collins, Interaction Ritual Chains, publicado há apenas 12 anos? Nele, Collins faz uma sociologia sui generis. Ao invés de partir das categorias tradicionais da sociologia, o autor estadunidense parte de uma intuição fundamental e a leva até às últimas consequências. A intuição original collinsiana explora a ideia de que a realidade – e a realidade humana inclusive – se estratifica por forças, energias e potências. Segundo Collins, nós somos menos definíveis como entidades biológicas ou entidades extensivas dotadas de fronteiras visíveis do que como fluxos moventes e intensivos capazes de absorver, emanar e ressoar forças e energias. Ele abre, com isso, à sociologia o plano intensivo no qual as fronteiras nunca estão rigidamente demarcadas, mas sempre diferenciando-se por gradações e, nas bordas, em permanente troca e mistura. Nesta perspectiva, a cada interação somos sempre mais ou menos intensamente transformados. Toda situação em que entramos, toda interação da qual participamos altera, em intensidades variadas, nossa potência de agir ou nossa capacidade de existir. Não saímos jamais os mesmos de qualquer que sejam as situações e as interações, ainda que por vezes essas mudanças ou transformações sejam infinitesimais e mínimas o suficiente para serem imperceptíveis – por vezes tornando-se apenas perceptíveis apenas nos agregados dos acúmulos temporais.
As situações e os encontros, para Collins, sempre nos carregam, recarregam ou descarregam de energias – o que ele abstrai sobre o nome genérico de energia emocional. A energia emocional é aquilo que fenomenologicamente e do ponto de vista da posição pronominal da primeira pessoa se manifesta como confiança e excitação; do ponto de vista das terceira e da segunda pessoa, como admiração, prestígio e reconhecimento. O elemento fundamental é que, com o tempo, essas experiências vão produzindo sobre esses fluxos varíaveis e moventes que nós, os indivíduos, somos, uma espécie de bateria ou acúmulo de cargas energéticas que nos dispõem a entrar diferentemente nos encontros e situações vindouras. Cada indivíduo adentra em uma dada situação, portanto, dotado de uma carga energética ou simplesmente energia emocional cuja fonte são as experiências e encontros pregressas que alteraram positiva ou negativamente sua capacidade de agir ou de existir.
Assim, a partir de uma combinação particular da efervescência coletiva de Émile Durkheim e do rituais interação de Erving Goffman, Collins traz para a análise sociológica uma nova caixa de ferramentas conceitual. Conceitos novos que nos tornam mais sensíveis para elementos comumente ignorados pela análise sociológica, tais como as modulações intensivas de afetos e energias daqueles que pesquisamos. Com isso, ele contribui para uma virada afetiva na sociologia que pode corresponder igualmente a uma virada afetiva de nosso olhar e de nossa própria sensibilidade. É neste sentido que coloco Randall Collins na posição de um clássico que deve ser lido por todo sociólogo, e que deveria se tornar referência obrigatória nos cursos de introdução à sociologia. Pois ainda que o próprio Collins, ao que parece, não faça nem tenha a pretensão de fazer uma teoria representativa do mundo social tal como ele é, ao lê-lo tem-se a impressão de que parte do real é que insiste em se ver representado naquilo que ele descreve.
Indicação de Gabriel Peters
Becker, Ernest. A Negação da Morte – Uma Abordagem Psicológica Sobre a Finitude Humana. São Paulo, Record, 2007.
Um olhar panorâmico sobre os diferentes retratos do ser humano revelará que poucos traços desse “bípede implume” são de apreensão tão difícil quanto sua conjugação ambígua de matéria e espírito. “Parte anjo, parte besta” (Montaigne/Pascal), “síntese do físico e do espiritual” (Kierkegaard), o anthropos é uma criatura mortal feita de carne e vísceras, mas que possui, ao mesmo tempo, faculdades imaginativas graças às quais pode vivenciar “realidades virtuais”, isto é, domínios de experiência que transcendem os limites espaço-temporais da sua existência corpórea. A expansão da imaginação humana para âmbitos de experiência virtual pode se revestir das mais diversas formas, como o contato religioso com uma divindade invisível, o mergulho em uma narrativa ficcional ou um raciocínio puramente matemático. Seja qual for a intensidade de tais experiências, no entanto, a transcendência em relação à esfera da carne, dos sentidos e da finitude se revelará parcial: o jovem que fantasia em ser um artista de sucesso tropeçará numa pedra, o filósofo imerso em conexões conceituais rarefeitas será atacado por uma dor de barriga, o rei cujo trono ostenta todos os símbolos da sua grandeza está ainda assim, como diz Montaigne, sentado sobre o próprio traseiro; e cada um deles, mais cedo ou mais tarde, morrerá.
A morte irrevogável é obviamente um destino que o anthropos partilha com as demais formas de vida. No entanto, é nesse âmbito que as aptidões do ser humano para o saber reflexivo e conceitual o expõem ao que tudo indica ser uma modalidade biologicamente nova de angústia. O caráter maciçamente localista e presentista da subjetividade animal a poupa de sensações como o terror de Pascal diante das imensidões silenciosas do espaço sideral ou o assombro de Schopenhauer ao pensar sua vida como intervalo ínfimo entre duas eternidades em que ele não existe. Naturalmente, animais não humanos podem vivenciar pânico, desespero e agonia intensos diante de ameaças de ferimento físico e morte. Entretanto, a possibilidade sem precedentes que a espécie humana traz ao mundo é a da experiência de uma vida inteira, mesmo na ausência de quaisquer ameaças imediatas, com a consciência angustiosa de que a morte é o destino último de si. William James se referiu a essa sensação ao evocar a caveira que abre seu sorriso sinistro nos dias mais felizes e ensolarados, envenenando nossas pretensões de alegria e expansão.
Em A negação da morte, Ernest Becker considera nossos esforços criativos para reprimir ou contornar a aparição dessa caveira como chave de interpretação da condição humana. O livro de Becker é o cume de um percurso intelectual que se destaca pela articulação de insights colhidos das mais diversas disciplinas e correntes de pensamento. Transitando fluentemente da psiquiatria à pedagogia, da etologia à antropologia cultural, o autor também se revelou à vontade na mescla de perspectivas tão variadas quanto a psicanálise freudiana, o pragmatismo de Dewey e a teologia de inspiração kierkegaardiana. A empresa de Becker foi, ademais, animada por uma contínua preocupação com o sofrimento humano, além de vazada em uma prosa cuja elegância é rara nos meios sociocientíficos.
A negação da morte foi premiado com o Pulitzer em 1974. A premiação foi anunciada dois meses após o falecimento do autor, que morreu antes mesmo de completar cinquenta anos. A despeito da honraria conferida a essa obra em particular, o legado de Becker para a teoria social ainda não obteve, creio eu, a apreciação que merece. Até onde posso ver, dentre as figuras de proa na sociologia contemporânea, apenas Zygmunt Bauman demonstra alguma intimidade intelectual com a reflexão do autor estadunidense, a julgar não somente por menções abertas, mas também por referências implícitas. Com efeito, o livro de Bauman Mortality, immortality and other life strategies (1992), milagrosamente ainda não traduzido para o português, pode ser lido como um desdobramento da obra premiada de Becker. Tal qual o texto de Bauman, o livro de Becker não oferece uma análise sociológica dos atos e rituais coletivos envolvidos na lida com a morte, mas algo mais ambicioso: uma explicação “tanatológica” de aspectos da vida social que parecem, em princípio, desconectados do problema da finitude. Em outras palavras, Becker mostra, com sagacidade, como o senso humano da própria mortalidade impacta o surgimento e a operação das mais variadas práticas, instituições e crenças socioculturais. Trata-se de um fecho heroico para a obra de um pensador que devotou sua vida a refletir sobre as questões que mais importam para nós: o sentido da vida, a loucura, o mal, a morte e o que significa, afinal de contas, ser humano.
Indicação de Rodrigo de Assis
Araujo, Kathya. El miedo a los subordinados: una teoría de la autoridad. Santiago: LOM Ediciones, 2016. 240 p.
Em seu mais novo livro, El miedo a los subordinados: una teoría de la autoridad (2016), Kathya Araujo demonstra o quão frutífero e profundo é o tipo de conhecimento promovido pelo uso criativo das ferramentas teóricas e metodológicas de que as ciências sociais dispõem em seu estado atual. Avançando sobre problemas anteriormente anunciados em trabalhos como ¿Se acata pero no se cumple? (2009), Habitar lo social (2009) e Desafíos comuns (2012) – este último escrito em coautoria com Danilo Martuccelli –, a socióloga peruana desenvolve e refina, no seu recente trabalho, alguns dos princípios constitutivos da sua perspectiva sociológica, notadamente aos que se referem às questões próprias das relações entre os indivíduos e as normas e aos processos de individuação e de configuração dos sujeitos. Em El miedo a los subordinados, a autora lança seu olhar sobre o problema da autoridade. O seu interesse está direcionado à dinâmica social concreta, ou seja, em torno das consequências dos exercícios de autoridade no âmbito das relações e das práticas sociais efetivas. Assim, tendo a sociedade chilena como universo de pesquisa, o que está em seu horizonte é a maneira como a autoridade adentra no processo de estabelecimento coletivo das modalidades de gestão das hierarquias sociais que moldam a sociabilidade que dá sustento à vida cotidiana em uma estrutura social moderna. Nesse sentido, embora a autora esteja claramente preocupada com questões teóricas de grande monta, de maneira alguma seu texto deve ser lido como um empreendimento de teoria social. O livro é resultado de um esforço verdadeiramente sociológico que, como tal, desenvolve seus desdobramentos mais abstratos com base na condução de uma investigação empírica rigorosa que, tendo uma configuração societária dotada de uma história particular, tem a potencia de nos trazer elementos teóricos para iluminar a nossa reflexão sobre a permanência e emergência de práticas autoritárias em sociedades diversas. Portanto, El miedo a los subordinados é livro fundamental para aguçar a imaginação sociológica dos cientistas sociais brasileiras que buscam melhor compreender o estado atual da Brasil, em que vemos avançar forças antidemocráticas e autoritárias tanto no âmbito das instituições quanto nas mais sensíveis interações cotidianas.
Indicação de Rodrigo Cantu
Centeno, Miguel Angel. Sangre y deuda. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2014.
Dentre os movimentos obrigatórios de um curso de ciências sociais sobre o Estado estão as abordagens pluralista, marxista e institucionalista. Quando examinamos a dinâmica histórica da formação do Estado, contamos com contribuições consolidadas do pluralismo e do marxismo para o exame do caso latino-americano. De um lado, os trabalhos sobre a incorporação política de classes subalternas em países do subcontinente que se industrializaram são uma importante expressão da análise funcionalista sobre a introdução de elementos pluralistas no mundo político. De outro lado, marxismo e ramificações dependentistas nos ensinam como as assimetrias tecnológicas e militares mundiais produzem uma morfologia social periférica, associada a um estado excludente e autoritário. O institucionalismo histórico – ou seu congênere: a sociologia histórica – ainda não se enraíza da mesma forma nas análises latino-americanas sobre a construção do Estado. O livro Sangre y deuda de Miguel Ángel Centeno preenche com muita folga essa lacuna e desponta como referência incontornável sobre o tema.
A menção especial a Charles Tilly nos agradecimentos do livro sugere sua influência no empreendimento de Centeno. A contenda de Tilly com as abordagens marxistas, encontrada em Capital, coerção e Estados europeus, e sua cruzada contra a teoria da modernização em Big Structures, Large Processes, Huge Comparisons apontam o que a abordagem institucionalista ilumina de original (e quais aspectos ela escolhe ignorar). A pegada institucionalista abandona os mecanismos gerais de integração ou de dominação em sociedades ou sistemas. No seu lugar, aborda como as pessoas agem em determinadas estruturas históricas e locais de incentivos, de valores e de afetos e, assim, transformam essas estruturas que delineiam suas interações futuras. Essa intuição não é exatamente nova e já está presente desde o início do século XX em certas variantes do interacionismo; mas o programa de Tilly, abraçado igualmente por Centeno, a estende ao nível braudeliano das estruturas de longa duração. Essas são as diretrizes de Tilly em seus vários escritos que examinam a construção do Estado por meio da história da violência organizada e da contestação.
Centeno transpõe esse programa de maneira exemplar para examinar a formação do Estado na América Latina, num contraste permanente com o caso europeu. Na Europa, o Estado se constitui como uma organização que monopoliza a coerção e que, em determinado momento, estende sua legitimidade ao se abrir politicamente e ao incorporar demandas mais amplas de suas populações. Na América Latina, a monopolização da coerção é parcial, a legitimidade é questionável e a ação estatal permanece excludente.
Como chegamos a um resultado tão distinto? Na Europa, o Estado emerge como uma organização que, depois do século XV, se estrutura fiscal e burocraticamente para enfrentar os desafios da guerra, uma operação crescentemente mais complexa, letal e custosa. Na América Latina, as independências acontecem em um contexto de destruição do aparato administrativo prévio e de uma reduzida possibilidade de competição no tabuleiro internacional sob o domínio da Inglaterra. Os monarcas europeus são caudilhos que eliminam violentamente seus concorrentes em determinado território. Os governos centrais dos países latino-americanos independentes não possuem os recursos para eliminar concorrentes, como evidenciado nos conflitos entre Buenos Aires e as províncias argentinas e os as revoltas do período regencial no Império do Brasil. O reflexo externo dessa situação interna é a ausência de recursos para guerras internacionais, que são infrequentes e limitadas.
As autocracias europeias precisam então fazer concessões às elites e, posteriormente, a classes subalternas, para mobilizar capital econômico e humano contra a concorrência militar externa. Criação de parlamentos, expansão da democracia eleitoral, garantias cidadãs e direitos sociais são alguns dos produtos desse processo. Sem a guerra externa como motor da consolidação organizacional, nossos Estados não tiveram o ingrediente para seu fortalecimento e nossas sociedades não conheceram esse trampolim para a abertura da arena política e para o estabelecimento de direitos civis, políticos e sociais.
Esses elementos comparativos compõem a tese central desse livro que examina a formação do Estado latino-americano sob a ótica da história da violência organizada e da contestação. Uma primeira ressalva que se pode fazer ao trabalho de Centeno, enquanto crítica externa, é que seu enfoque não convence ao sugerir que a guerra e o militarismo seriam a variável independente mais importante para a explicação do Estado latino-americano. A guerra na América Latina foi infrequente, limitada e não colocou em operação o mecanismo que formou o Estado europeu, por que o Estado não tinha recursos. Esse argumento leva à razão da falta de recursos. As características das economias coloniais da região, inseridas de forma subordinada num capitalismo de extensão mundial, certamente são um fator crucial para entender a falta de meios estatais no século XIX. Aqui, ponto para as perspectivas mundo-sistêmicas. Algumas observações críticas internas podem igualmente ser feitas. Uma virtude da abordagem institucionalista de Tilly sobre a formação dos Estados europeus está na consideração da variedade de trajetórias desse processo. Centeno, entretanto, dedica pouca atenção à variedade de trajetórias de formação dos Estados latino-americanos. Um problema adicional – que é ao mesmo tempo um convite para uma nova agenda de pesquisa – está na premissa da problematização feita pelo autor: uma generalizante fraqueza dos Estados latino-americanos. Porém, ao longo do século XX, alguns deles se tornaram fortes do ponto de vista fiscal e burocrático, como ilustrado pelos casos do cone sul. Se a guerra não foi então o motor desse fortalecimento estatal, que outro fator foi?
A despeito dessas ressalvas, o livro de Centeno permanece uma referência indispensável em seu tema. O livro oferece uma abordagem original e profícua, uma pesquisa competente por evidências e uma erudição admirável sobre a história latino-americana. Sangre y deuda foi publicado em 2014 e é a tradução castelhana do original em inglês de 2002. O debate sobre o Estado na América Latina se enriquece com a tradução castelhana, ao tornar acessível as questões da sociologia histórica no ensino de graduação em Ciências Humanas não apenas em países hispano-falantes, mas também no Brasil.
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