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Por Gabriel Peters
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O exílio existencial esquizoide
Cunhado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, o termo “esquizofrenia” une os radicais gregos que se referem a “cisão” e “mente” respectivamente. Já em seu nascedouro, portanto, o conceito aludia a experiências de perturbação ou ruptura na conexão do indivíduo com o mundo e/ou consigo mesmo. Nos textos anteriores desta série, vimos que diversos sintomas esquizofrênicos acarretam um doloroso senso de separação entre a própria subjetividade, de um lado, e as pessoas, atividades e objetos do ambiente circundante, de outro. Distinguindo entre os estágios psicóticos e não psicóticos da esquizofrenia, Bleuler estudou certos atributos de personalidade que seus pacientes exibiam anteriormente ao mergulho no delírio propriamente dito. O autor concluiu que a maior parte dos casos de psicose afeta sujeitos dotados das características de uma “personalidade esquizoide”. Em termos estatísticos, cabe ressaltar, o inverso não é verdadeiro: a maioria dos indivíduos que se encaixam neste tipo psíquico não desemboca em delírios psicóticos (SASS, 1992, p. 76; SASS e PARNAS, 2000). A bem da verdade, poder-se-ia afirmar que vivências esquizoides, nas quais o sujeito experiencia algum hiato entre sua interioridade e o mundo – ou entre um e outro aspecto do seu self -, são parte e parcela da condição humana “normal”, especialmente na modernidade contemporânea (SASS, 1992; PETERS, 2017).
A concepção bleuleriana de personalidade esquizoide oferece uma espécie de retrato invertido das teorias que, como a praxiologia de Pierre Bourdieu, analisam a conduta humana em termos de uma “cumplicidade ontológica” (Bourdieu, 1988: 52) entre a subjetividade do agente e suas condições sociais de ação. Quando o ator opera no mesmo cenário social em que foi socializado, ele vivencia esse cenário como imediatamente familiar e inteligível, como a ordem natural e autoevidente das coisas. Já que suas expectativas e habilidades subjetivas estão harmonizadas com as exigências práticas de seus contextos sociais de ação, o indivíduo sente-se “em casa no mundo” (GADAMER, 1996, p. 154) ou como “um peixe n’água” (VANDENBERGHE, 2010, p. 65). Em contraste, o atributo primordial da experiência esquizoide é precisamente o não sentir-se à vontade ou “em casa” em um ambiente circundante de pessoas, atividades, coisas e símbolos.
Com muita frequência, a vivência de estranhamento na relação da subjetividade esquizoide com outros atores humanos é de mão dupla. Jaspers já havia sublinhado que vivenciava um agudo hiato experiencial entre ele próprio e seus pacientes. Noutras palavras, pacientes que experimentam um estranhamento do mundo são frequentemente vistos como estranhos, por seu turno, pelos indivíduos com quem interagem, o que inclui seus psiquiatras. Como critérios diagnósticos, “estranheza” ou “excentricidade” de comportamento podem servir de justificativa, é claro, a toda uma série de trágicos abusos por parte da instituição psiquiátrica. Ao mesmo tempo, tais atributos são sociologicamente relevantes para que interpretemos as manifestações da esquizofrenia no domínio interacional. A sensação de “estranheza” que o feitio esquizoide de personalidade provoca em outras pessoas é muitas vezes remontada por elas a um comportamento que percebem como “mecânico”, “forçado”, “artificial”, “distante”, “irônico” ou “desengajado”. Em discrepância com a espontaneidade que marcaria a conduta socialmente “normal”, a maneira de se portar do indivíduo esquizoide pareceria excessivamente cerebral ou calculista. Tal impressão de falta de naturalidade ou autenticidade do seu comportamento, manifesta nos seus movimentos corporais ou na sua (in)expressividade afetiva, se evidenciaria principalmente em seus desempenhos de papel, isto é, nos modos pelos quais o indivíduo esquizoide participa de “rituais de interação” cotidianos.
Theatrum mundi
O rendimento analítico da noção de “rituais de interação” foi demonstrado, é claro, pela microssociologia da ordem interacional desenvolvida por Goffman ao longo de toda a sua carreira. Creio, com efeito, que a impressão de que há alguma espécie de “barreira” entre o indivíduo esquizoide e as demais pessoas nos seus ambientes de interação pode ser compreendida à luz de outra orientação analítica consagrada pelo sociólogo estadunidense (sob inspiração parcial de Sartre): o exame dos requisitos teatrais ou cênicos da vida societária. Com frequência, ao contrário do que poderia pensar uma concepção da psicopatologia como mero déficit ou incapacidade, as dificuldades relacionais de indivíduos esquizoides não resultam da inconsciência a respeito de tais requisitos teatrais da interação social, mas, ao contrário, de uma espécie de consciência morbidamente alerta quanto a eles. Encontramos aqui, uma vez mais, um cenário no qual o esquizoide paga um preço cognitivo, emocional e prático pela sua lucidez. Vejamos. De um ponto de vista estritamente sociológico, o parâmetro definidor da “normalidade” de uma conduta é a convergência entre as expectativas e habilidades do ator, de um lado, e as demandas a ele feitas por seu cenário social, de outro. Isto explica por que, como amplamente demonstrado por estudos historiográficos e etnológicos da loucura, comportamentos tidos como “sãos” em um contexto histórico-cultural serão tidos como “insanos” em outros e vice-versa.
Como bem mostraram os pragmatistas, a experiência reiterada daquele ajuste entre o agente e seu contexto conduz à habituação, a tal ponto que a performance “normal” de papéis sociais em interações ordinárias torna-se tão fluente que neutraliza, no próprio agente, a consciência de sua teatralidade. O desempenho teatral de papéis sociais na interação cotidiana é tanto uma performance hábil quanto uma verdade escondida ou, pelo menos, posta entre parênteses pela maioria dos atores engajados em tal teatro. Pode ser verdade que “o mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores”, como dizem os versos de Shakespeare em Como gostais, mas uma pessoa incapaz de esquecer essa verdade na sua experiência social ordinária pode muito bem se ver travada na realização de performances que outros abandonam, com fluência e tranquilidade, às disposições habituais de um corpo bem treinado naquele teatro.
Essa forma “goffmaniana” de experiência esquizoide pode ser melhor entendida, acredito, através de uma analogia com a maneira como os usuários fluentes de um idioma lidam com o caráter convencional ou “arbitrário” (Saussure) dos signos. Aprendemos com a linguística estrutural que não há um vínculo ontologicamente necessário entre as palavras e as coisas que elas designam (p.ex., entre a palavra “água” e a substância por ela designada [ou a ideia dessa substância]). Ao mesmo tempo, só podemos participar fluentemente de uma conversação rotineira se colocarmos a consciência dessa arbitrariedade entre parênteses, por assim dizer, tomando espontaneamente os significantes como veículos imediatos e transparentes dos seus significados. Uma atenção continuamente ciente da arbitrariedade do signo, por outro lado, terá tremenda dificuldade em manter o fluxo da comunicação verbal com outros. Similarmente, uma atitude hiper-reflexiva quanto aos requisitos teatrais da interação social ordinária, inclusive aqueles que costumamos abandonar ao senso prático (p.ex., o manejo das nossas posturas corporais), acaba emprestando à conduta do indivíduo esquizoide ou esquizofrênico uma marca de artificialidade, estranheza ou afetação robótica.
O que distingue uma atuação teatral que bem transmite uma emoção dramática, de um lado, de uma performance que desliza para o sentimentalismo kitsch, de outro? Em contraste com a segunda, a primeira é bem-sucedida precisamente porque melhor oculta seu próprio caráter de representação teatral. Ars est celarem artem – a arte é dissimular a arte, diz o provérbio também aplicável à representação teatral de si na experiência social cotidiana. Em um manual quinhentista de ensinamentos ao cortesão, Baldassare Castiglione tornou famosa uma palavra que designa especificamente essa alquimia da performance teatral bem-sucedida, graças à qual todo o esforço dispendido na construção de uma persona social desaparece na exibição mesma dessa persona, que assume a aura da mais espontânea naturalidade: sprezzatura (CASTIGLIONE, 1997, p. 42).
A consciência infeliz do ator
Na dramaturgia da vida social ordinária, a ocultação teatral da teatralidade da própria conduta não deriva, na maior parte dos cenários, de um raciocínio consciente pelo qual o ator tenta convencer sua audiência. A socialização na performance de papéis, ao permitir ao ator burilar sua proficiência performativa, contribui para neutralizar sua consciência dos variados aspectos dramatúrgicos que ele incorpora à sua conduta de modo tácito, implícito, não reflexivo. Como sabe qualquer pessoa (ator, atleta, músico, aluno etc.) que já experimentou dificuldades em abandonar-se ao senso prático ao apresentar-se em público, refletir explicitamente sobre uma performance no momento mesmo em que se está realizando-a tende a atrapalhar sua fluência. Não é à toa que a aquisição de proficiência performativa não depende apenas, ou mesmo predominantemente, da memorização explícita de preceitos de comportamento, mas sobretudo da internalização, ao mesmo tempo mental e corpórea, de esquemas de ação nos quais os diversos componentes se integram em um todo ordenado: uma Gestalt. Embora as ilustrações mais comuns do que é uma Gestalt costumem advir da psicologia da percepção (p.ex., a apreensão imediata de um rosto humano como uma configuração total), a noção é aplicável também a desempenhos motores hábeis, tais como dirigir um carro ou andar de bicicleta. Estes exemplos mostram bem que os estímulos de uma situação de ação particular ativam, nos agentes, esquemas inteiros de resposta prática, como ilustrado pela conexão entre motricidade e cognição nas condutas citadas – por exemplo, o laço imediato e espontâneo entre processamento cognitivo de informação (p.ex., o significado do sinal vermelho) e movimentos do corpo (p.ex., tirar o pé do acelerador e pisar no freio).
Os esquemas subjetivos pelos quais os agentes lidam com seus contextos de experiência também possuem um aspecto afetivo. A despeito de suas desconfianças quanto à noção de “papel” social, cuja ressonância teatral ele desanca em Sartre, o Bourdieu tardio pode ser convocado aqui em prol da ideia de que o desempenho de uma “função” ou “missão” socialmente reconhecida não é apenas uma performance habilidosa, mas algo que resulta de um investimento libidinal e existencial mais amplo. Ao destacar o entrelaçamento de diferentes dimensões da subjetividade (cognição e afetos, mente e corpo) pela ideia de habitus, Bourdieu também nos lembra da via de mão dupla entre crença e desempenho: o ator não somente desempenha habilidosamente seus papéis sociais porque crê neles, mas também crê neles com mais força porque os desempenha com frequência. Com o suporte de estímulos situacionais (p.ex., a atmosfera de um ritual religioso ou a música alegre de uma festa), o agente ativa um esquema de resposta global ao seu cenário de experiência (p.ex., os esquemas respectivamente associados a um estado de espírito reverencial ou festivo). Recorrendo ele próprio à comparação com a performance teatral, diz Bourdieu:
Todas as ordens sociais sistematicamente tiram proveito da disposição do corpo e da linguagem para funcionar como depósitos de pensamentos diferidos, que poderão ser desencadeados à distância e com efeito retardado, pelo simples fato de recolocar o corpo em uma postura global apropriada para evocar os sentimentos e os pensamentos que lhe são associados, em um desses estados indutores do corpo que, como é de conhecimento dos atores, provocam os estados de alma (BOURDIEU, 2009: 113).
Os atores que acreditam vigorosamente na realidade dos seus papéis sociais tendem a desempenhar performances mais eficazes, mas o reverso também é verdadeiro: desempenhos reiterados de um papel social intensificam aquela crença não somente em um domínio estritamente cognitivo, mas também visceral e existencial. O fortalecimento da crença se vale ainda do fato de que a performance é realizada com outros atores, os quais acreditam no papel desempenhado pelo indivíduo assim como nos seus próprios, em contextos organizados precisamente para reforçar tais crenças. Como viu sabiamente Ernest Becker (2010: 244), uma cosmologia só sobrevive historicamente se suas ideias encontram aportes materiais e simbólicos no mundo, tais quais “préstitos, multidões, trajes cerimoniais” e “dias especiais assinalados nos calendários”.
O percurso vivencial do ator, ao longo de diversos cenários sociais de atuação, vai deixando, portanto, seus “depósitos” (Bourdieu) ou “sedimentos” nas suas disposições mentais e corpóreas. Como sublinhou William James (1961: 5-14), propensões habituais não são elementos discretos, mas entrelaçamentos complexos entre manobras corporais, estados afetivos, conhecimentos substantivos e um senso visceral de “como é estar” nesta ou naquela situação socialmente tipificada. A esse respeito, a preocupação da fenomenologia com estados de humor difusos serve de corretivo à tendência da ciência social a tratar dos estoques de conhecimento dos agentes em termos cognitivamente “depurados”. Saber o que é uma missa ou uma aula, por exemplo, não significa apenas estar de posse de um conhecimento a respeito dos papéis ali envolvidos (p.ex., padre, professora) e dos modos de conduta tidos como apropriados a tais situações (p.ex., a prerrogativa da fala do padre ou da professora). Saber o que é uma missa ou uma aula significa também reativar, na memória experiencial, um senso global e difuso, cognitivo e afetivo, mental e corpóreo, de como é estar em uma missa ou em uma aula (FUCHS, 2001, p. 324).
Tal como aparece na “sociologia disposicional” de Pierre Bourdieu e de seu discípulo crítico Bernard Lahire, a noção de “esquemas” subjetivos deixa transparecer uma semelhança frouxa, mas heuristicamente sugestiva, com a ideia de “complexos” a que recorreu Bleuler em seu estudo psiquiátrico sobre a esquizofrenia (BLEULER, 1950, p. 323). Ainda que não possamos nos alongar sobre as visões bleulerianas aqui, seu recurso aos termos gregos que indicam “cisão” e “mente” para designar o que antes era chamado (a partir de uma sugestão de Emil Kraepelin) de dementia praecox já aponta para rupturas em componentes da psique “normalmente” integrados entre si. Tais rupturas incidiriam sobre conexões das ideias umas com as outras (p.ex., a substituição dos raciocínios lógicos usuais por associações de ideias crescentemente ininteligíveis), das ideias com os afetos (p.ex., a proliferação de respostas emocionais socialmente inapropriadas, como o riso diante de uma situação grave) e, finalmente, da subjetividade com o cenário circundante (p.ex., como resposta à desestruturação de sua personalidade, o sujeito desiste de engajar-se em atividades partilhadas com outros e retira-se para seu mundo interno).
O casulo protetor que vira prisão
Na leitura cruzada feita aqui, poderíamos descrever tais dissociações esquizofrênicas como processos de “des-esquematização”, ou seja, de enfraquecimentos, rupturas e dissoluções de esquemas disposicionais partilhados em um contexto social, tais como os complexos globais que distinguem, por exemplo, o modo de portar-se de uma pessoa em uma festa e, digamos, em um funeral (postura corporal, atitude fisionômica, tensão emocional, estilo cognitivo etc.). Uma das desconexões disposicionais mais frequentes entre pessoas esquizoides ou esquizofrênicas ataca o vínculo entre os estados subjetivos do indivíduo, de um lado, e os movimentos corpóreos associados ao desempenho cênico de papéis sociais, de outro. Ainda que não tenhamos espaço para elaborar o tema detalhadamente neste texto, a identificação psíquica entre o indivíduo e seu papel é parte de outros vínculos centrais ao seu desempenho de práticas sociais cotidianas. Tais vínculos incluem, em particular, a conexão entre orientações da mente e a condução do corpo, amplamente sublinhada por autores como Merleau-Ponty e Bourdieu em seus ataques às visões dualistas da relação entre o mental e o corpóreo.
Como defendi em outro contexto, um olhar sobre a esquizofrenia mostra que a visão “cartesiana” do corpo como um objeto entre outros objetos da consciência “pura” não é apenas uma ficção filosófica fabricada pelas preocupações epistemológicas da filosofia moderna. Em algumas experiências esquizofrênicas, o corpo do sujeito deixa efetivamente de ser vivido como instrumento de ação e veículo básico de sua imersão no mundo, sendo percebido por ele, em vez disso, como uma entidade exterior com a qual ele não se identifica. Para este “sujeito desincorporado”, nos termos de Ronald Laing, “o corpo é sentido mais como um objeto entre outros objetos no mundo do que como o núcleo da própria existência do indivíduo” (LAING, 1975, p. 69). Em certos cenários, o desengate entre subjetividade e corpo se sobrepõe à perturbação ou ruptura na identificação psíquica entre o indivíduo e seus papéis sociais, de maneira tal que o sujeito vivencia sua existência como a de uma consciência alocada em um corpo estranho. Na medida em que o mundo social continua a demandar de tais indivíduos o desempenho de papéis em contextos diversos, essas performances são vividas pelos sujeitos como rituais mecânicos, privados de qualquer significância afetiva ou envolvimento espontâneo:
Tal divórcio do sujeito em relação ao corpo priva o sujeito desincorporado da participação direta em qualquer aspecto da vida do mundo, a qual é mediada exclusivamente através das percepções, sentimentos e movimentos do corpo (expressões, gestos, palavras, ações etc.). O sujeito desincorporado, como um observador de tudo o que o corpo faz, não se engaja em nada diretamente. Suas funções vêm a ser a observação, o controle e a crítica vis-à-vis o que o corpo está experimentando e fazendo, bem como aquelas operações a que normalmente nos referimos como puramente ‘mentais’ (Ibid.).
Uma ilustração desses percursos experienciais de “desincorporação” é oferecida pela trajetória de David, um dos pacientes de Laing. No caso de David, o desengajamento em face das atividades partilhadas com outros no mundo da vida surgiu como um mecanismo psicológico de defesa contra sensações assoberbantes de vergonha, timidez e vulnerabilidade aos olhares e juízos alheios (LAING, 1975: 71). O sentimento de estar exposto ao olhar e ao juízo de outros era tão difícil de suportar que David escolheu assumir, de modo deliberado, uma distinção nítida e cerrada entre as “máscaras de papel” que ele vestia para participar de interações sociais, de um lado, e o verdadeiro “eu” alojado em sua consciência, de outro. Escondido atrás da máscara de papel, o verdadeiro “eu” de David se protegia dos riscos de ter sua existência invadida, violada ou aniquilada pela mirada julgadora de outros. Em uma triste ironia, no entanto, David se viu capturado, segundo o relato de Laing, por uma dinâmica análoga àquela do famoso conto de Kafka sobre a toupeira: as defesas psíquicas que o sujeito constrói para se proteger dos assaltos do mundo exterior terminam por prendê-lo e isolá-lo. Suas condutas em contextos públicos de interação são cada vez menos vivenciadas como manifestações de sua verdadeira personalidade. Em vez disso, o verdadeiro self escondido atrás de suas máscaras enxerga suas performances de papel com um senso crescente de futilidade, vazio ou mesmo desprezo. A mesma parede experiencial que o sujeito interpôs entre si e o mundo, para protegê-lo de ameaças externas, o impede de estabelecer o que Minkowski chamou de “contato vital com a realidade” (2002: 106).
A expressão deve ser compreendida não apenas no sentido de que uma energia vital anima nossos engajamentos cognitivos, práticos, afetivos e corpóreos com o mundo, mas também de que tais engajamentos são, por seu turno, fundamentais à manutenção regenerativa de nossa energia vital ou ânimo existencial. Um sujeito dissociado do mundo se priva da possibilidade de ser subjetivamente enriquecido pelo contato com o real e de desenvolver-se através de exercícios do seu poder de iniciativa. Depois de algum tempo, aquele senso de vazio e futilidade que invadira seus desempenhos públicos de papel passa a corroer também o “eu” interior que havia se retirado de um mundo compartilhado com outros. A contrapartida de sua proteção termina por ser a sensação de aprisionamento e impotência. A aura de irrealidade que há tempos permeava as performances de suas personae públicas penetra também na cidadela outrora tão bem guardada. O senso consciente de que se possui uma identidade nítida desaparece, ainda que a consciência como tal continue a funcionar. O indivíduo, nas palavras de outro dos pacientes de Laing, vem a sentir que “ele é apenas um vácuo” (Ibid., p. 75), destituído de vida interna: “sou apenas uma resposta a outras pessoas. Não tenho qualquer identidade própria” (Ibid., p. 47).
Conclusão: a teoria vivida (como esquizofrenia)
Ao mobilizar ferramentas sociológicas para compreender vivências “esquizoides” ou, mais radicalmente, “esquizofrênicas”, o presente texto se interessou menos pela justeza desses rótulos psiquiátricos do que por uma descrição tão fidedigna quanto possível daquelas vivências. Embora a discussão sobre a validade das categorias psiquiátricas seja crucial, também indispensável é o retrato psicológico das experiências que essas categorias designam (bem ou mal). Se o que está em jogo é uma caracterização substantiva de certas formas de experiência humana, também é lícito, creio eu, proceder de modo desembaraçadamente eclético no uso de instrumentos analíticos. Em outras palavras, já que o compromisso do texto não consiste na síntese teórica per se, mas na elucidação de fenômenos substantivos (i.e., experiências esquizoides e esquizofrênicas), aqueles instrumentos podem advir de teorias que são, sob outros aspectos, distintas ou mesmo antagônicas entre si – por exemplo, a sociologia dramatúrgica do primeiro Goffman e a teoria do habitus de Pierre Bourdieu.
Como nos textos anteriores desta série, a relação entre teoria social e fenomenologia da experiência esquizo é de mão dupla. Se as perspectivas que tratam da vida social a partir da metáfora heurística da “teatralidade” são úteis para a compreensão de certas experiências esquizoides ou esquizofrênicas, o inverso também é verdadeiro: vivências como as de David e James, os pacientes apresentados por Laing em O eu dividido, são relevantes para o exame crítico da sociologia dramatúrgica de Goffman.
No seu clássico After virtue (Depois da virtude), Alaisdair MacIntyre (2007: 32) lança um punhado de farpas contra a visão dramatúrgica da subjetividade desenvolvida por Goffman no seu livro de estreia, acusando o sociólogo estadunidense de dissolver o self em um conjunto de papéis. Segundo o filósofo britânico, a tese goffmaniana de que não haveria um self substancial por trás dos seus desempenhos cotidianos de papel seria o antípoda da crítica sartriana da “má-fé”, que ataca precisamente a suposição de que os indivíduos seriam os papéis que desempenham (p.ex., o garçom de café). Ainda assim, continua MacIntyre, Goffman e Sartre convergiriam, em última instância, no postulado de que o self é uma espécie de consciência vazia por trás de suas performances de papel. Na visão goffmaniana, a ideia mesma de que os indivíduos vestem diferentes máscaras conforme as situações sociais em que se encontram supõe, no mínimo, a existência de um “eu” que manipula aquelas máscaras segundo as exigências performáticas de seus contextos de ação. Na concepção existencialista de Sartre, por seu turno, a tese de que somos “nada além de um papel” é tida como verdadeira, não no sentido de que “somos nossos papéis”, mas, ao contrário, de que somos esse “nada” consciente que é apenas o que faz livremente de si mesmo, escolhendo como existir em meio a uma série de possibilidades contingentes.
É sabido que Goffman abandonaria a abordagem dramatúrgica, em larga medida, nos seus escritos posteriores a The presentation of self in everyday life. Para provável insatisfação de MacIntyre, no entanto, a evolução da visão goffmaniana do self não consistiu em dar mais substância e realidade ao self por trás das máscaras teatrais. Ao invés, o veio radicalmente situacionista de sua sociologia se radicalizou a ponto de perturbar qualquer distinção nítida entre as máscaras performáticas que os agentes vestem em diferentes situações sociais, de um lado, e um cínico self interior escondido por trás dos disfarces que veste, de outro. A distinção ainda seria aplicável, bem entendido, a certos contextos de ação, como no caso do empregado que, somente no período do trabalho, veste a máscara da boa vontade e mesmo da subserviência diante de um chefe que ele intimamente despreza. A performance de “empregado subserviente” pode ser ativada ou desativada, de modo instrumental e calculado, conforme o indivíduo se encontre dentro ou fora do “palco” relevante. Mas o que dizer dos papéis mais intimamente atados à autoidentidade do indivíduo, como, digamos, “pai”, “marido” ou “católico”?
Já havíamos encontrado, noutro texto, a famosa alegoria machadiana sobre os uniformes do “eu”, alguns dos quais se mostram existencialmente tão importantes que, despido deles, o indivíduo se despe de pedaços inteiros da sua autoidentidade mais íntima e, a seu ver, “essencial”. Algumas das “máscaras” que vestimos na experiência social cotidiana estão, para utilizar a imagem de outro gênio lusófono, “pegadas” ou grudadas em nossa cara. Quando essas máscaras são ainda assim arrancadas, levam consigo pedaços do rosto de quem as veste. A despeito do que a imagem tenha de grosseira, ela é um lembrete de que o processo é frequentemente doloroso, deixando no seu rastro um indivíduo que se vê obrigado a carregar – ou, de modo mais esperançoso, a reconstruir – um “eu” mutilado (é o caso, para dar apenas uma ilustração, dos indivíduos destituídos de um certificado social de sanidade).
E o que dizer de um indivíduo que não consegue escapar à consciência da precariedade ontológica de todas as máscaras sociais e, eventualmente, da própria criatura consciente que julgava existir protegida por detrás delas? Tal consciência não é apanágio exclusivo de leitores de Sartre e Goffman, que podem cultivar essas ideias em seus trabalhos teóricos, porém abandoná-las nos contextos rotineiros da vida social. Tal como a dúvida quanto à existência do mundo material, das outras pessoas e do próprio self, há uma diferença crucial entre acalentar tais preocupações em um domínio estritamente intelectual, de um lado, e levá-las visceralmente a sério na existência ordinária, de outro. Para algumas pessoas, o caráter problemático da própria existência subjetiva se impõe não como um simples exercício escolástico, mas como uma vivência existencial efetiva:
Há vezes em que me sinto como um contínuo de ‘issos’, apenas partículas, sem identidade, com nada substancial dentro, tudo flutuando ao acaso em torno da minha mente. O mundo muda quando você é louco. Ele te empurra em mil direções; o compasso gira freneticamente, as Sereias encontram seu caminho para a sua alma…Eu me dissolvo em nada, um ser sem face tornando-se partículas, moléculas, átomos e, finalmente, ar. Quem eu sou torna-se menor e menor até que mesmo a minha consciência se esfacele no universo (Glass, 1989: 29-33).
P.S.: Os temas discutidos acima são tratados com muito mais detalhe nesse livro.
Referências
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PETERS, G. A ordem social como problema psíquico: do existencialismo sociológico à epistemologia insana. São Paulo: Annablume, 2017.
SASS, L. Madness and modernism: insanity in the light of modern art, literature, and thought. New York: Basic Books, 1992.
SASS, L.; PARNAS,J. Self, solipsism, and schizophrenic delusions. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, v.8, n.2/3, p. 101-120, 2002.
VANDENBERGHE, F. Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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