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Um domingo de um pastor na favela Cidade de Deus, por Diogo Silva Corrêa

Relato etnográfico

joelhos

Por Diogo Silva Corrêa

Às 07h30 da manhã de domingo, o pastor Alex, de 43 anos, levanta de sua cama. Deixa sua esposa dormindo e vai ao banheiro escovar os dentes. A primeira coisa que faz, em seguida, é tomar um copo d’água em jejum. Depois, prepara um café com leite, que toma acompanhado de um pão com manteiga e queijo amarelo. Senta-se na mesa da sala, abre a revista de Lições Bíblicas da CPAD e dá uma lida rápida na lição do dia que dará na Escola Bíblica Dominical. Lê a revista com a Bíblia ao lado, alternando os textos, revisitando algumas passagens. Uma hora depois, às 8h30, ele acorda sua esposa, Missionária Maria de Lurdes, e avisa que ele “já vai indo”, antes dela, “para a igreja”. Em mais ou menos em vinte minutos, chega ao destino. Pastor Alex, que é o dirigente de uma Congregação situada ao lado de uma boca de fumo, não vê no caminho nenhum bandido. Nesse horário de domingo de manhã, só vê crentes indo para igreja e alguns viciados pernoitados, perambulando como zumbis pela favela. Diante de um deles, ele diz: “Tá vendo? É isso que o Diabo faz com as pessoas. Compara esse viciado e aquele varão ali. Tem como? E não é só porque um tá virado e o outro dormiu bem, até porque as vezes tem crente aí que tá vindo da vigília e a gente nem sabe! O principal é a fisionomia, é a presença do espírito santo de Deus que faz isso. É um outro brilho, é uma outra vibração”. Às 8h45, as portas da igreja já estão abertas. Um diácono, responsável pela zeladoria, já começa a arrumar as cadeiras e a testar os microfones e as caixas de som.

Na cozinha, situada na parte de trás do templo, o pastor Alex pega mais um café. “Eu tomo cinco, seis por dia. Se pudesse, tomava litros e litros, mas aí dói o estômago”. Cinco minutos depois, um viciado pernoitado vai até a porta da igreja e é recebido pelo diácono. O viciado, que provavelmente o viu passando, é um crente afastado, conhecido de Alex. O diácono vai até o pastor e informa que Josias está na porta da igreja, meio sem graça de entrar, por estar drogado. Alex então manda o diácono conduzir Josias até a parte de trás da igreja.

Ao vê-lo, o pastor dá-lhe um abraço afetuoso e oferece-lhe um café, que Josias recusa. Ansioso e gaguejante, Josias se apressa em dizer que precisa de uma oração e que não aguenta mais aquela vida no vício. O pastor põe a mão em sua cabeça e assim procede, exprimindo palavras que visam à expulsão do demônio do vício. Após o seu término, Josias parece mais calmo e fica com os olhos cheios de lágrimas. Sua forma de falar fica mais serena e até mesmo mais inteligível. A gagueira reduz consideravelmente. Ambos sentam e entoam uma nova conversa. Josias diz que tem se sentido fraco, que entrou no vício do crack e sabe que aquilo está acabando com a sua vida. Acrescenta que depois que a sua esposa o abandonou, ele se afundou de vez. Relata que pensamentos suicidas tem lhe vindo à cabeça e diz para o pastor que, por vezes, pensa em dar um fim nisso tudo, mas que só não fez até agora porque ele sabe que, se fizer, vai direto para o inferno. O pastor retruca, dizendo que ele precisa se fortalecer espiritualmente, e que isso só depende dele: “nada vem do nada, Deus quer te ajudar, mas você precisa mudar de atitude. O Diabo entra de qualquer jeito para destruír a tua vida, mas Deus não. Ele sonda, ele espera você abrir as portas para ele”. O pastor Alex enfatiza, em seguida, que Josias só vai conseguir se libertar se voltar a orar, frequentar os cultos e jejuar. “Não tem milagre do nada, só tem milagre quando a gente faz a nossa parte”, lembra o pastor. Josias diz que sabe bem disso e afirma que vai aparecer no culto da noite. O pastor, no entanto, diz que vai passar a orar diariamente por ele e, além disso, vai pedir às irmãs da igreja que coloquem o seu nome na corrente de oração.

Depois de se despedir de Josias, o pastor sai da parte de trás da igreja. Pega um microfone (já testado pelo diácono) e se ajoelha em frente ao altar, pondo-se a orar. São 9h10. Já há algumas pessoas no templo, sobretudo as irmãs mais velhas e antigas da igreja. Elas também logo se põem a ajoelhar e iniciam uma oração. Uma delas é a esposa do pastor, Maria de Lourdes. Embora previsto para começar às 9h00, a escola bíblica só começa 9h40. Todos sabem disso. Então ninguém chega na hora certa. Depois de dez minutos, uma irmã chega e pede ao diácono que avise ao pastor que precisa falar com ele, em caráter de urgência. Um presbítero que acabara de chegar assume a oração, e Alex vai até a parte de traz conversar com a irmã, cujo nome é Neide. Ela lhe fala de um sobrinho escondido em sua casa, jurado pelos meninos da boca de fumo. Neide insiste que seu sobrinho precisa ir, o quanto antes, para um centro de recuperação. O pastor pega o telefone e liga para o evangelista Guto, que ainda não chegou ao culto, e pede que ele leve, de carro, o sobrinho de Neide, o mais rápido possível, para o centro de recuperação do Zezé. “Ele está chegando e vai levá-lo lá. Quando ele chegar, você vai com ele. Já liberei o evangelista da escola bíblica, mas você não deixa de vir no culto hoje à noite. Amém, irmã?”. Ela assente com a cabeça e diz que virá, sem falta.

Às 09h40, o pastor se dirige ao púlpito e inicia o culto. Abre a revista e começa o lecionar. A igreja, pequena, está cheia, com todos sentados e quase todos acompanhados da Bíblia e da revista da escola bíblica dominical. Então, o pastor abre a lição do dia e passar a ler trechos, explicando-os didaticamente. A atual revista tem como título “Vencendo as aflições da Vida” e a lição dada, de número 4, se chama “superando os traumas da violência social”. O pastor aproveita a temática para sublinhar que a violência é um problema onipresente na história da humanidade, mas que Deus nos fornece as boas ferramentas para combatê-la. Depois de explicar sua origem no pecado original e no homicídio de Caim, o pastor lê com os fiéis:

“A violência na sociedade atual. Apesar das políticas públicas contra a violência, as estatísticas envolvendo assassinato, lesões corporais, estupros, roubos, etc, aumentam anualmente de forma assustadora. Por isso, a igreja de Cristo, como sal da terra e luz do mundo, deve postar-se como a voz profética de Deus contra todos os tipos de violência. Não podemos nos conformar com presente século.”

Em seguida, o pastor lê a passagem bíblica dos em Romanos 12:1-2[1]. Alex aproveita para dissertar sobre a violência recorrente na comunidade, e a importância do papel dos crentes para mudar o jogo, o qual, ele afirma, tem sido sistematicamente vencido pelo Diabo. Afirma que nesse mundo em que vivemos que jaz o maligno, e só o povo de Deus pode verdadeiramente combatê-lo. Fala das recentes mortes na favela e comenta a revelação recebida há pouco tempo, em que via uma nuvem escura, pela qual escorria muito sangue na Cidade de Deus, apontando que o Diabo estava fortalecido e desejoso de sangue. Era preciso dobrar muito o joelho, orar e jejuar em prol da comunidade, pois o espírito da morte pairava por ali e estava sedento para levar muitas almas para o inferno. Todos na igreja pareceram muito sensibilizados com a pregação do pastor.

Às 11h40, termina o culto. Muitos jovens vão até o pastor Alex e pedem uma oração. Ele atende aos pedidos, mas procura antes conversar, compreender um pouco melhor a razão pela qual eles querem a oração. Pouco depois, duas irmãs recém-brigadas o acompanham até a parte de traz da igreja. A elas o pastor relata que enquanto fazia a oração pós-culto, teve a revelação de uma imagem: viu uma foto de cada uma, com Satanás no meio, rindo de ambas. Alertou-as que estavam “dando brecha para o inimigo”. O próprio Diabo estaria trabalhando forte para tirá-las do caminho da salvação. E acrescenta: “Na casa de Deus, não podemos aceitar conflito. Isso atrapalha o andamento do trabalho, diminui a presença e o poder do espírito santo. Deus não gosta de trabalhar onde há o espírito de confusão e da contenda. A gente precisa estar sintonizado num mesmo objetivo, estar na mesma sintonia e frequência. Brigando, vocês só conseguem capturar e entrar em sintonia com Satanás”. Logo depois, o pastor as deixa a sós para se consertarem uma com a outra, e lembra que tão importante quanto se reconciliarem entre elas é o pedido de perdão ao próprio Deus pelo ocorrido. Em pouco tempo vê-se as duas irmãs, em prantos, abraçadas. Uma pedia perdão à outra e ambas à Deus.

Às 13h30, o pastor volta para a sua casa. No caminho, um obreiro da igreja liga e avisa que a luz da igreja está com defeito e a geladeira dá sinais de exaustão, está prestes a pifar. “Talvez seja a tomada, fala com o irmão Rivaldo, que é eletricista, pede pra ele ver isso”, responde. Ainda no telefone, o presbítero também diz que a conta de luz veio muito alta por causa dos ventiladores ligados. Com relação à conta de luz, o pastor rebate: “no culto de doutrina, vou dizer aos irmãos da conta e vou falar para eles abençoarem a igreja nessa direção. Afinal, não tem como a gente desligar o ventilador, tá muito calor!”.

No caminho até a sua casa, o pastor vê os bandidos com a boca de fumo instalada e em operação. Mas o movimento é lento. Alguns poucos viciados passam em busca de pó e maconha. Quando um menino da boca, Rubens, avista o pastor, ele o cumprimenta e pede uma oração. Deixa a droga e a pistola com o amigo ao lado, põe as mãos para trás, em sinal de reverência, inclina o corpo e fecha os olhos. As mãos do pastor encostam em sua testa, e o menino, de repente, cai e começa a se debater. “É demônio, é demônio”, diz o pastor. Pede para os outros dois meninos da boca de fumo ajudarem a segurar o Rubens, enquanto mantém, com firmeza, a mão sobre sua cabeça, falando com voz empostada: “Em nome de Jesus, agora, agora, agora… SAI!”. Na terceira vez, o menino para de se debater. “O demônio saiu, agora ele saiu”, afirma o pastor. Pede, em seguida, para ajudá-lo a levantar o menino, que parece assustado. Explica-lhe o pastor: “olha, você precisa se fortalecer espiritualmente, o Diabo está dominando a tua vida, ele tá com sede pra levar a sua alma pra ele. Aparece aí no culto de hoje à noite que a gente vai fazer um trabalho nessa direção, pra reverter isso daí”. O menino assente com a cabeça e o pastor parte em direção à sua casa. Mas pastor Alex ainda não passa desapercebido em seu trajeto: ao pagar um galeto na padaria, Igor, o dono do estabelecimento, pede-lhe uma oração para melhorar a sua forte dor de cabeça. A prece vem junto com o dinheiro do frango.  Ao chegar em casa, Alex encontra a sua esposa, que já está a sua espera com seus dois filhos, que jogam video-game na televisão da sala. O almoço está na mesa. Arroz, feijão e o galeto são os ingredientes do prato do dia. Depois do almoço, o pastor vai dormir, pois às 18 horas é a vez do culto à noite. Desliga o celular e diz para a sua esposa que só o chame se for algo “muito urgente”. Ele se deita às 14h50.

Às 17h30, o pastor acorda. Pega um pão com manteiga e queijo com café. Dessa vez, não acrescenta leite, mas coloca bastante açúcar. “Dá energia”, ele diz. E aproveita para comer um pedaço de bolo de laranja que a sua esposa fez enquanto ele dormia. Reserva outro pedaço, devidamente protegido com alumínio, para mais tarde. Sai, às 17h50, de casa e chega na igreja às 18h10. No caminho, passa por uma viatura da UPP, cujos policiais acenam com a mão, e ele discretamente acena de volta. Perto da igreja, a boca agora já está funcionando em um ritmo forte. Alguns carros e muitas motos passam no ponto ansiando pelo produto desejado. “É dia de baile, dia de baile o ritmo fica assim, o inimigo controla tudo”, comenta. Quando o pastor passa, os meninos o cumprimentam, alguns até escondem a carga, pondo a mão para trás, e abaixam a cabeça. Pastor Alex então entra na igreja, cumprimenta alguns irmãos que já estão por lá e novamente vai para a parte de trás, onde irmãs já preparam quitutes e cachorro quente para depois do culto. No fundo da igreja, ele indaga: “Reconheceu aquele de camisa vermelha? Ele é que tá de frente aí na favela agora”. Alex toma mais um copo café e aceita um copo de suco de uva trazido por uma das irmãs, familiar com seus gostos.

Às 18h40, o culto começa. É possível ver alguns meninos da boca de fumo, que ficam na parte de trás da igreja. Na hora da pregação, o pastor foca na ilusão da vida mundana, alegando que, na vida do crime, tudo o que se possui pode ser perdido de uma hora para outra. “É um castelo de areia”, afirma. Exemplifica com a morte recente de um traficante famoso, o frente da comunidade. “Há menos de um mês, o fulano de tal estava aqui. Tinha tudo: dinheiro, fama, mulher. Vinha aqui e as vezes pedia oração. Várias vezes lhe foi revelado que estava na hora dele sair. Mas ele foi teimoso, permaneceu. E assim são as coisas no mundo do crime: de uma hora pra outra, tudo acaba. Tudo o que ele tinha ficou. E agora?”

Fim do culto. O pastor segue para o lado de fora, onde as irmãs já haviam armado uma pequena barraca para vender quitutes e algumas guloseimas – cachorro quente, bolo, salgados, arroz doce, suco de caju e refrigerante. O bandido de camisa vermelha, o novo “frente” da comunidade, resolve vir na direção de Alex. Usando boné e roupa de marca, todo perfumado, com um cordão de ouro de dois dedos, várias dedeiras – cada uma com as letras de seu apelido –, cumprimenta o pastor e lhe solicita uma oração. Antes, porém, deixa uma pistola cromada e dois frascos de lança perfume com um amigo da boca de fumo. Também tira o cordão e a dedeira. O pastor o convida para entrar na igreja. Lá, eles conversam um pouco sobre a situação local. O bandido, Hugo, fala de como a UPP, sobretudo no plantão dos Cabeludos, está sufocando os bandidos por causa da morte recente de um policial. Também conta como foi o tiroteio em que morreu, na semana anterior, Tom, o antigo frente daquela região da comunidade. O pastor escuta com atenção e depois põe-lhe as mãos na cabeça. E ora. Na oração, pede proteção e que os anjos do senhor continuem dando-lhe livramentos. Diz que sabe que Hugo, embora persista na vida errada, tem o coração puro. Por isso, pede a Deus misericórdia por aquela vida. O pastor relata a Hugo que, quando pôs a mão em sua a cabeça, viu sua imagem em um beco escuro, rodeado de muito sangue. Interpreta a imagem: o Diabo quer sangue e profetiza que muita gente no entorno de Hugo vai morrer. Aproveita para fazer o alerta: saia enquanto é tempo. Hugo parece um pouco assustado. Naquele dia, porém, o pastor o tranquiliza dizendo que ele Hugo está guardado. Abraçam-se. Na saída, Hugo pega de volta sua pistola , coloca-a na cintura, bota dois frascos de lança no bolso e some por um beco –, na verdade, um atalho dava para uma entrada especial do baile.

Às 22h, após um último cachorro quente das irmãs, e mais um gole de suco de uva, Alex decide ir para casa descansar, ver um pouco de TV com a família. Na segunda-feira de manhã, o trabalho já o espera. É preciso acordar cedo. Alex é estoquista de um supermercado perto da região. Passa novamente pela boca de fumo, dessa vez sem ser notado – os bandidos estão muito entretidos com o intenso fluxo das vendas. Muitas motos e veículos passam no caminho, em direção ao baile. O pastor cruza com outros irmãos, de outras igrejas, saindo de seus respectivos cultos, e ainda passa por uma viatura da UPP. Os policiais parecem tensos, circulando em alta velocidade.

Ainda no caminho até sua casa, um viciado para Alex e pede dinheiro a ele. Aqui só tem oração, responde o pastor. É suficiente, o viciado aceita a oferta. Muito rapidamente o pastor faz uma breve oração, repreendendo o espírito do vício. Chega enfim em casa. O arroz com feijão e ovo na mesa o esperam.  Depois do jantar, fica alguns minutos com os filhos, que assistem televisão. À meia noite, já está em um sono profundo.

[1] Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.

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