Como a ordem social é possível? Por que o mundo social não descamba mais facilmente para o caos ou para a “guerra de todos contra todos”? O presente livro sustenta que parte da resposta a essas questões clássicas da teoria sociológica se encontra no anseio universal do agente humano por “segurança ontológica”, isto é, por uma experiência do mundo e de si como imbuídos de ordem, justificação e sentido. Na sua primeira parte, a obra explora versões dessa tese nos trabalhos de autores tão diversos quanto Weber, Berger, Bourdieu, Giddens, Sartre, Heidegger e Ernest Becker. Em seguida, o texto aprofunda a discussão sobre a segurança ontológica pelo exame do seu reverso: as experiências de insegurança existencial radical descritas na literatura sobre a esquizofrenia. Nesse sentido, ao propor um exercício em “heurística da insanidade” ou “epistemologia insana”, o livro defende não apenas uma compreensão da loucura a partir da teoria social, mas também um repensar crítico da teoria social a partir da loucura.
Orelha, por Frédéric Vandenberghe
Diferentemente dos filósofos, os cientistas sociais não se perguntam por que há alguma coisa ao invés de nada. Para eles, essa questão metafísica somente começa a fazer sentido quando reformulada como uma questão de ordem social. Como a sociedade é possível? Por que não há uma guerra de todos contra todos? Por que as ações não são aleatórias? Como ego e alter podem coordenar suas ações? Na verdade, no mundo real, a questão da ordem social sempre se encontra já resolvida. Na guerra, assim como em comunidades violentas controladas pelo narcotráfico, sempre há ordem de algum tipo. Caso contrário, sequer poderia haver conflito. Os cientistas sociais propõem a questão apenas como um jogo de linguagem transcendental que os permite investigar as condições de possibilidade da interação social e da integração sistêmica.
O mérito deste brilhante novo livro de Gabriel Peters, um jovem teórico cada vez mais conhecido, é mostrar que, para as pessoas que sofrem de doença mental, tais questões filosóficas não são somente teóricas, mas também eminentemente práticas. Por que há nada ao invés de alguma coisa? Como posso ter certeza de que o mundo não acabará amanhã? Como sei que o outro não é um produto da minha imaginação? Em continuidade com a abordagem praxiológica de Anthony Giddens e Pierre Bourdieu que Gabriel explorou em seu primeiro livro, Percursos na teoria das práticas sociais, ele agora enfrenta a questão da “insegurança ontológica” e dá a ela uma guinada cognitivista. Antes que a ordem social seja estabelecida por um consenso normativo, a sociedade é construída por uma miríade de práticas ordinárias e rotinas estabelecidas. Normalmente, as práticas fluem, mas, em tempos de desajustes e crises existenciais, a ação se torna problemática. As interações não podem mais ser coordenadas, e a ordem social local parece à beira do colapso. Por debaixo da ordem social, há uma (des)ordem psíquica, e toda a empreitada desta epistemologia insana é torná-la visível. Para aqueles que vivem em uma realidade alternativa, o problema da ordem e do caos social é, de fato, agudo.
Para chegar ao fundo das pressuposições psíquicas que sustentam o mundo e o tornam inteligível, estável e previsível, Gabriel radicaliza os famosos “experimentos de ruptura” de Garfinkel. No entanto, diferentemente da nanossociologia da etnometodologia, essa metassociologia não é empírica, mas fenomenológica. Baseado em extensas leituras da psicopatologia existencial, o autor descortina sistematicamente, através de variação e negação, todas as condições de felicidade da ação ordinária. Certamente, hiper-reflexividade, hipocondria, transtorno obsessivo-compulsivo e surtos psicóticos, para nomear apenas algumas das aflições que perturbam sistematicamente a cumplicidade entre o ator e o mundo, não são parte daquelas condições de felicidade. Ainda assim, graças a essa terrível reductio ad absurdum, sentimos não apenas a precariedade do mundo social, mas também a fragilidade da condição humana. Como sempre, o encontro com a loucura é difícil. De alguma maneira, ele é também terapêutico e dá ao livro certo charme de autoajuda.
Este é um livro excepcionalmente inteligente e sensível (ainda que meio doido) sobre as psicopatologias da vida cotidiana. Embora a obra não se concentre sobre as estruturas sociais da modernidade tardia que nos fazem sofrer de depressão, ataques de pânico e outros distúrbios psíquicos, ela oferece uma genuína investigação sociológica da doença mental. Este é, de fato, um importante estudo da alienação do self e do estranhamento do mundo. A combinação de conhecimento enciclopédico, estilo gracioso e, acima de tudo, um senso profundo de empatia para com aqueles aterrorizados pelo caos iminente, situa esse livro na grande tradição de Goffman, Garfinkel e Peter Berger. Com Goffman, o livro partilha um senso do absurdo; com Garfinkel, uma obsessão por detalhes; e com Berger, não apenas um bom senso de humor, mas também um profundo conhecimento da lógica teórica da sociologia. Dificilmente poderíamos imaginar um volume de abertura mais apropriado para a Biblioteca do Sociofilo na Annablume.
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