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O sono, por Gabriel Gorini

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Por Gabriel Gorini (IFCS-UFRJ)

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João Cabral de Melo Neto, em uma conferência ainda jovem, especula sobre a importância do sono para a poesia. Intitulada “Considerações sobre o poeta dormindo” (1941), o texto procurava afirmar o sono como fonte da poesia – não apenas como trampolim para o sonho, mas enquanto tal, como “um poço em que mergulhamos, em que estamos ausentes”. Em certo sentido, essa característica tão central, a saber, a ausência, fez com que o dormir fosse enxergado, durante grande parte da modernidade, como um obstáculo para vida plena, produtiva (CRARY, 2014). A sociologia, por sua vez, disciplina da vida moderna por excelência, pouco se voltou ao tema. O sono, apesar de condicionar radicalmente o modo pelo qual nos organizamos socialmente, não se tornou uma questão clássica da sociologia, pelo contrário, foi mesmo recusado por alguns como matéria sociológica, como Weber, que nos diz o seguinte sobre ações análogas:

A mortalidade e o ciclo orgânico da vida em geral: do desvalimento da criança até o ancião, tem naturalmente alcance sociológico de primeira ordem em virtude dos diversos modos em que a ação humana se orientou e se orienta por essas circunstâncias. Outra categoria diferente constituem as proposições empíricas suscetíveis de compreensão sobre o desenrolar de fenômenos psíquicos e psicofisiológicos (cansaço, rotina, memória, etc. mas, também, por exemplo, euforias típicas ligadas a determinadas formas de mortificação, diferenças típicas nos modos de reação quanto à rapidez, etc.). Mas, em última instância, a situação é a mesma de outros fatos não suscetíveis de compreensão: do mesmo modo que a pessoa atuante na prática, a consideração compreensiva os aceita como ‘dados’ com os quais há de contar (WEBER, 2009, p. 5).

Dessa maneira, os “fenômenos psíquicos e psicofisiológicos”, entre os quais o sono estaria, são tidos como dados que apenas aceitamos, e que, portanto não podem ser compreendidos sociologicamente – uma vez que não fazem parte do plano de demanda de sentido que caracteriza a sociologia compreensiva/interpretativa do autor.

De determinado ponto de vista, o próprio modo de organização das metrópoles contemporâneas, lugares próprios dos indivíduos modernos onde se criam ambientes de reflexividade e de sons cada vez mais amplificados, nos condiciona a definir o sono como algo a ser vencido. Na cidade que nunca dorme é propagada a ilusão do eterno dia, por isso somos incapazes de ver as estrelas: elas já quase não existem nas ilhas de luz elétrica e calor que nos rodeiam. Jonathan Crary, autor de 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (2014), nos fala do projeto que pretendia colocar refletores na atmosfera, de modo que, ao espelharem a luz do sol, impedissem que houvesse noite. Ou ainda da pesquisa feita pelos Forças Armadas dos EUA com o objetivo de criar um “soldado sem sono”. Antes, diz o ensaísta, os esforços de pesquisa se voltavam para a possibilidade de uma vigília constante – como o uso indiscriminado de anfetamina durante as guerras do século XX. Contudo, os danos psíquicos e fisiológicos dessas formas de indução à insônia fizeram com que os estudos se voltassem sobre como acabar com a necessidade humana de dormir. Esse é só um exemplo radical daquilo a que somos expostos diariamente: drogas estimulantes que nos condicionam a um ritmo mais acelerado, que em grande parte das vezes dificulta o sono – o açúcar, a cafeína, a cocaína, etc.

Ao mesmo tempo, é possível perceber uma grande preocupação em se ter uma boa noite de sono. No site da Associação Brasileira do Sono (ABS) , por exemplo, há dicas sobre o que significa dormir bem e quais são os efeitos corporais e psíquicos de uma noite mal-dormida, ou de muitas noites mal-dormidas. Em uma seção de “mitos” (no sentido de mentira) ou “verdades”, voltada para o público em geral, alguns avisos chamam a atenção sobre a verdade contida na afirmação de que o estresse influencia no sono : “A correria da vida moderna e o estresse têm feito com que as pessoas durmam cada vez menos”; e sobre “o mito” de que não dormir faz bem: “A privação do sono, mesmo que de apenas 45 a 60 minutos por período de uma semana, pode causar diversas alterações psíquicas e neurocognitivas significativas que nem sempre são percebidas”. De certa forma, em consequência das diversas questões associadas ao hiperestímulo da vida contemporânea, muito além do que o próprio Simmel conheceu, dormir também se tornou uma batalha: dos remédios alopatas às terapias orientais, milhares de pessoas buscam, todos os dias, o sono perfeito. Assim, se há um esforço para não se dormir mais, concomitantemente há um esforço para se dormir bem. Contudo, de um modo geral, tanto uns quanto outros compartilham uma mesma definição do sono, essa que o significa como “não experiência”.

A relação entre modernidade/hiperestímulo e insônia em grande medida evidente, já que os insones aparecem como figuras símbolo de nossa época. Segundo pesquisa da Associação Brasileira do Sono, 36% da população do país possui dificuldades para dormir. O insone é aquele que está submetido ao estresse do cotidiano, aquele para qual o sono é um obstáculo constante, e não um dado que apenas se aceita. Justamente por esse motivo, aparece como figura privilegiada para pensar o dormir, não apenas pelo caráter problemático da situação, mas também porque a relação entre o sono e o social aparece nele com mais evidência. Por outro lado, a maioria das pessoas continuam dormindo bem. Assim temos dois lados da questão. Isto é, tanto os insones quanto as pessoas que dormem bem possuem as mesmas definições acerca da situação do sono. Como propõe William I. Thomas (Thomas e Thomas, 1938 [1928]), antes de qualquer ato de comportamento com grau de consciência, no sentido de perceber e controlar, ter a noção do que se faz, há um momento em que se dá a definição da situação. É a partir dela que, segundo Thomas, fazemos as escolhas – não apenas os atos concretos, mas tanto a política da vida quanto a personalidade própria da pessoa. Uma situação é um momento da vida social no qual os atores percebem uma configuração de elementos e se dão conta de que alguma coisa ocorre – e o fazem estabelecendo um limite espaço-temporal. É partir disso que as pessoas agem.

Contudo, nesse processo de definição há sempre um tensionamento entre o que o sujeito cria espontaneamente, que tende ao hedonismo em suas escolhas, e o que a sociedade oferece para ele. O primeiro exibe como comportamento a tendência a uma escolha hedonista, enquanto a sociedade, utilitariamente, tende a oferecer segurança. Assim, cada experiência é singular e social ao mesmo tempo. De maneira que não podemos apreender a experiência do outro em sua totalidade pois só temos a certeza de que sabemos o que é dormir porque dormimos, e, portanto, necessariamente tomamos como parâmetro a nossa própria experiência do sono. Podemos tentar pensar, por meio de relatos, as semelhanças, diferenças e os significados que as situações do sono assumem, por meio das diferentes intensidades com o qual o sono é relatado. O problema da definição de situação de Thomas é que ele parte da ideia de que as pessoas percebem que algo está acontecendo. Contudo, na “situação do sono”, só podemos perceber, antes, que o sono virá e só podemos perceber, depois, que o sono veio. Durante o sono nós não percebemos que ele acontece. Assim, ao definirmos o que significa a situação de dormir, precisamos levar em conta os três momentos distintos, sabendo que o principal, aquele em que de fato se dorme, não nos aparece como perceptível. Como definir uma situação na qual as pessoas não percebem que ela está acontecendo? Essa foi a problemática inicial que me levou à organização do questionário e dos diários.

Falar sobre o (próprio) sono: um método para analisar a experiência

No método se estabelecem regras de conduta que limitam o caminho, mas que, por isso mesmo, o definem. Justamente por esse caráter, deveria ser uma descrição de como foi feito, e não uma regra de como fazer. Não se pode definir o caminho de antemão, sem antes havê-lo percorrido. Contudo, nós lidamos de uma maneira diversa com esse assunto. O método, no nosso caso, é um exercício do controle prévio acerca da legitimidade de uma pesquisa. A pergunta, que é concentração de um caminho já percorrido, se torna a condição primeira do projeto. Na projeção, tentamos explicar como faremos o que faremos, sem mesmo tê-lo feito. Ao mesmo tempo, é nesse momento que se adere à tradição de pensamento escolhida, também justificada por um discurso coerente, lógico-racional, que encontra amparo, principalmente, nas informações já processadas, outras pesquisas, outros métodos. O método, que limita o caminho, é o desdobramento da questão de “como fazer” o que se propõe, e por isso deveria servir como um impulso de criatividade a partir da definição, e não como uma linha de controle que castra de antemão o processo. Como bem nos lembra Weber quando fala da ação social, só podemos descrever o curso da ação depois que a ação foi feita.

Nesse sentido, procuro fazer a discussão metodológica mais como uma “descrição reflexiva”, dialogando com outros métodos a partir das questões, sobre o processo da pesquisa até agora do que uma construção de um modelo de controle. Uma qualificação é precisamente o ritual que marca a virada da confusão dos primeiros passos para um caminho mais concentrado, que culminará em uma dissertação. Dessa maneira, se cumprem as três etapas da viagem: o projeto, o que supõe que será, a qualificação, quando parte do caminho já foi percorrido, e a dissertação, que se coloca como a apresentação final da viagem.

O problema principal que se apresenta na pesquisa qualitativa, quando se trata de um modo de pensar científico, é a questão do rigor que engendra a objetividade. A grounded theory (GT), que pode ser traduzida como teoria fundamentada, foi elaborada por Barney Glaser e Anselm Strauss, e apresentada no livro The Discovery of Grounded Theory, em 1967. O método nasce da crítica à maior parte das pesquisas qualitativas que eram feitas naquele momento, principalmente no que se refere ao subjetivismo da pesquisa, sempre associado, na tradição científica, a certa falta de rigor. Isto é, para a ciência, a uniformização de um método significa uma maior validade da pesquisa. Dessa maneira, ao tentar propor uma resolução metodológica a tal problema da pesquisa qualitativa, a GT estabelece uma série de procedimentos que garantem o controle necessário que uma pesquisa dessa natureza seja considerada válida pela comunidade científica.

A partir de uma comparação exaustiva entre os dados qualitativos e da teorização heurística a GT procura a descoberta de uma teoria. Tanto a coleta quanto a análise são feitas concomitantemente, de modo que os autores propõem que isso seja feito em muitos níveis diferentes, já que a partir disso será possível perceber regularidades que emergem da interpretação dos dados. Resumidamente, a GT pretende que, em sua forma final, a pesquisa tenha sido capaz de criar uma teoria formal, isto é, um arcabouço lógico-racional que, por meio da abstração, procura estabelecer sistemas coerentes que deem conta do recorte, do objeto de estudos controlado, delimitado e objetificado pelo próprio cientista, que o escolhe de antemão, por meio da metodologia. A procura de nexos e correlações entre o conceito, pensado na sociologia a partir de sua utilidade como uma ferramenta, algo que está à nossa disposição, se faz em diversos níveis: além da análise feita ao mesmo tempo em que se obtém os dados, é necessário fazer um acompanhamento constante por meio de notas, entrevistas informais, observações diretas, análise de documentos, etc. Dessa maneira, se busca saturar Assim, é possível estabelecer uma teoria imbricada na realidade, fundamentada nos dados.

Em um sentido próximo ao da GT, Bolger e Laurenceau (2013) propõem uma série do que eles chamam de “métodos longitudinais intensivos” (ILM), isto é, procedimentos de pesquisa qualitativa de longa duração e de grande intensidade. Voltada para a discussão sobre métodos não-experimentais, o ILM se dá num processo de repetição frequente das medições, o que permite tanto a caracterização da forma como das causas e consequências dos comportamentos. Os autores propõem, quase arbitrariamente, pelo menos cinco observações – que, se combinadas com informações das mais variadas pessoas em diversos níveis diferentes, acabam por formar uma caracterização mais total do objeto.

A partir dessa ideia geral de “método intensivo”, a proposta da minha pesquisa é a escrita de um diário, acompanhada por entrevistas sazonais, sobre a experiência de dormir. Inicialmente, pedi indicações para conhecidos de desconhecidos que dormissem mal e bem e que estivessem interessados em participar – já que uma das maiores limitações de pesquisas como esta é que, para serem realizadas, precisam de um engajamento muito grande por parte das pessoas que aceitam a tarefa. A minha ideia de ter um número reduzido de pessoas é que, dessa maneira, possa haver uma maior regularidade e uma maior densidade reflexiva acerca do problema de dormir. No total, chegamos ao número de seis pessoas. Três que dormem bem, e três que dormem mal. O universo de minha pesquisa se reduz a seis experiências concretas, inclusive a minha, registradas em entrevistas e diários. Por conta disso, se por um lado a abrangência é perdida, no sentido de talvez não poder, nem pretender, estabelecer uma teoria geral sobre o sono, como o que propõe a GT com a sua saturação dos dados, por outro é capaz de discutir, a partir de poucas experiências concretas, mas extensas e intensas, questões cruciais do problema da experiência e da sua relação com a consciência.

O diário é um caderno pessoal de memória e registro. No diário, de modo diverso da entrevista, quando falamos com a boca, escrevemos, isto é, falamos através de signos materiais, de letras, que formam palavras, as quais atribuímos um significado. Um diário é um modo atento, uma descrição mais densa e mais intensa, e nos oferece uma incursão em uma experiência distinta da nossa com uma maior riqueza de detalhes, já que é feito por um período longo de tempo, através de uma rotina. Escrever um diário é um esforço de lembrança e, quando registramos a experiência do sono rotineiramente, começamos a dar outro grau de atenção a esse momento, que a maior parte das pessoas trata apenas como um dado. O esforço de atenção do diário, um esforço reconstitutivo, não se faz somente a partir do ato da escrita, mas durante o próprio ato que será reconstituído mais tarde. Num esforço de fazer o diário, não apenas lembramos o que queremos escrever na hora de escrever, mas sim, como se trata de uma questão específica, o próprio momento do sono passa a ser exercido com mais cuidado para que depois o próprio registro seja mais rico e denso – e, de certa maneira, mais próximo do que foi a experiência. Assim, o diário exige uma disciplina pessoal, um certo tipo de atitude frente à situação do sono: a da tentativa de atenção frente a experiência. Em suma, como isso se torna rotineiro, não apenas a escrita mas o próprio ato vai sendo exercido com maior atenção. Ao mesmo tempo, no próprio registro há uma escolha sobre quais fatores e quais questões tratar, esse recorte nos permite inferir as questões que aparecem como mais dignas de serem anotadas do que outras. A partir disso, será possível provocar reflexões acerca de uma experiência que é tida como uma não experiência: no caso dos insones, como dificuldade; nos das pessoas que dormem bem, um dado. Assim, o plano metodológico desta pesquisa consiste na análise de diários produzidos por pessoas, inclusive eu mesmo, sobre suas próprias experiências de sono.

Ao entregar os diários, as minhas recomendações foram as seguintes: conseguir algum tipo de regularidade na escrita, mas não a partir de uma quantidade de dias fixos estabelecidos previamente – cada pessoa é capaz de encontrar a sua própria regularidade. Por outro lado, pedi para que as pessoas tivessem em mente três momentos: o antes, quando está se preparando para o sono, o durante, o momento em que se dorme e depois, o momento em que se acorda. Assim se cobre a passagem entre os diferentes estados de consciência que constituem a situação do sono. Porém, tais momentos não são para aparecerem como itens esquemáticos com os quais se deve enumerar um texto. A questão se trata mais de tomar como parâmetro esses momentos, para que assim, ora os escritos se voltem para a dimensão do corpo, das sensações e reações físicas, descrevendo rituais e rotinas, ora também falem de outra ordem de experiência, a saber, o estar acordado. Contudo, se tomarmos como base a situação do sono, os outros momentos do dia sempre aparecerão referidos a ela. Nesse sentido, o “durante” é o mais complicado, já que costumamos compreender como uma experiência de ausência. E aqui foi a questão mais central: pedi que as pessoas dessem uma especial atenção a esse momento, mesmo que pareça de alguma maneira impossível.

Ao mesmo tempo, três entrevistas serão feitas: uma antes da entrega do diário, uma durante e outra depois. A dimensão da escrita é crucial, desse modo, porque, ao escrever, gravamos e nós mesmos somos capazes de ler. Contudo, a escrita pode ser rasurada, apagada, enquanto na entrevista as respostas são mais imediatas, isto é, sem muitas mediações de julgamento. Ou seja, na entrevista aparecem falas mais espontâneas, que nos servem como uma espécie de guia para as discussões que aparecerão nos diários.

As entrevistas seguiram um roteiro que construí tomando como base alguns critérios que me serviram de guia. O questionário foi pensado, estruturalmente, das questões mais próximas temporalmente e mais descritivas para questões que abrangessem um maior período histórico e de caráter mais especulativo e de definição de termos. Isto é, a primeira pergunta é feita tendo em vista a experiência mais próxima temporalmente das pessoas – no caso, a última noite de sono. Dessa maneira, as questões mais concretas e mais materiais da experiência aparecem antes de questões mais abstratas, como a especulação de motivos para a insônia. Assim, se forma uma linha que serviu como base de condução da entrevista. Isto é, a partir da memória mais recente se chegam aos problemas de ordem mais abrangente. Em suma, o primeiro bloco é descritivo, mais perto temporalmente e mais circunscrito a uma situação específica. O segundo bloco trata de questões de maior abrangência temporal e de caráter mais especulativo. O terceiro bloco é formado por perguntas que definem certas noções, como dormir bem x dormir mal.

Considerações iniciais de pesquisa

Nas primeiras entrevistas, a dificuldade de responder questões básicas surgiu logo na primeira pergunta: “como foi sua noite anterior?”. Todas as pessoas entrevistadas tiveram uma dificuldade inicial e não conseguiam se lembrar exatamente o que fizeram. Contudo, a partir de um esforço, elas começaram a tomar conhecimento de certos hábitos que tinham, que eles sabiam que tinham, mas que não percebiam de modo tão consciente. Vera, uma insone, por exemplo, vai se lembrando ao longo da entrevista, entre muitos assuntos distintos, de pequenos exercícios e pequenas estratégias para dormir melhor. Apagar a luz da casa algumas horas antes de dormir, não ver tela luminosa nenhuma à noite, tomar cinco gotas de rivotril, fazer uma série de alongamentos, uma série de respirações, isso tudo quando já está morta de sono: Vera espera que a sonolência atinja um estado crítico para ir dormir. Apesar de fazer todos os dias ela mais ou menos as mesmas tarefas para dormir, ela não conseguiu se lembrar de maior parte das coisas na primeira pergunta, foi partir do esforço da rememoração e da atenção sobre o momento que conseguiu discernir, perceber e narrar, não em um discurso lógico-racional e coerente, mas em lembranças que chegavam entrecortadamente, na maior parte das vezes no meio de falas diversas, que não possuíam uma relação imediata e próxima com a questão. Da mesma maneira Roberto, que havia dormido às seis da manhã e acordado meio-dia, e somente aos poucos conseguiu se lembrar do que fizera antes e depois de ter dormido. Justamente pelas lembranças chegarem aos poucos e de maneira não-linear é que a entrevista é parte crucial, porque é, de um certo modo, a contrapartida do diário.

A qualidade do sono

Uma das questões que aparecem como cruciais é a definição de dormir bem e dormir mal. Bruna, uma insone, nos diz que “dormir bem é quando eu acordo funcional”, isto é, já pronta e apta a realizar coisas, trabalhar, comer, exercer qualquer tipo de atividade. O tipo de insônia de Bruna é aquela em que se acorda muito cedo e não se consegue mais dormir. Durante esse período “certamente o pior, quando vêm os piores pensamentos”, ela tenta dormir por diversas vezes sem sucesso. Até que finalmente desiste e dá início ao seu dia. Para quem dorme bem, Samanta, por exemplo, o sono não é uma questão durante a maior parte do tempo, a não ser quando, por “motivos externos, conjunturais”, ela não consegue dormir.

O sono, quando é problemático, é constantemente lembrado. Quando se dorme bem, pelo contrário, o sono se torna apenas um dado, ele é esquecido. O sono, quando é bom, é esquecido. Quando é ruim, ao contrário, é uma presença constante não apenas durante o dormir, mas também depois, nas consequências que ele assume. Samanta me diz que “fico mal-humorada, triste”, Bruna me diz, acerca do que ocorre quando a insônia é frequente, “primeiro eu fico muito irritada, depois eu fico triste”. Dessa maneira, é interessante perceber que, por um lado, dormir mal, a falta, é acompanhada constantemente da presença de ausência de sono, e o dormir bem, por outro lado, é acompanhado de um esquecimento da presença do sono. Quando o sono é bom, nós não lembramos dele ao longo do dia, apesar de se fazer presente em suas consequências: a boa disposição, o bom humor, a funcionalidade.

Há um jogo interessante de lembrar/esquecer que também nos leva a pensar na própria condição do sono: quando estamos “presentes”, isto é, no sentido de estarmos conscientes, o sono está ausente, quando estamos “ausentes”, no sentido de que não temos consciência sobre o que está acontecendo, isto é, estamos dormindo, o sono está presente. Esse quadro se inverte num outro nível, no de qualificação do sono: quando é ruim, nós lembramos, ele anuncia suas consequências de qualquer modo e faz com que lembremos. Dormir bem, por outro lado, é esquecer do sono. Assim, é na ausência do sono que ele pode ser lembrado por nós, e nos casos que tratamos aqui , é nesse momento que ele se torna uma questão.

A qualidade do sono não aparece associada necessariamente à sua profundidade. Sono leve é quando estamos com um alto grau de “consciência” em relação ao que acontece em volta, mesmo que não seja perceptível enquanto estamos dormindo, podemos acordar a qualquer momento: é o caso de Bruna, que acorda por qualquer barulho, e Vera, que associa o sono leve ao fato de ser mãe. No sono pesado, ao contrário, é como se fosse um estágio com menos consciência, e por isso não se faz perceptível através de consequências tão bruscas. O que ocorre, digamos assim, “do lado de fora” da pessoa que está dormindo. Bruna, inclusive, sonha mais quando o sono é mais leve.

A insônia

Os insones precisam aprender a conviver com essas consequências negativas do sono, precisam aprender a fazer as coisas mesmo que tenham tido uma noite de ruim de sono. Bruna me diz que nunca tentou um tratamento porque ela tenta compreender que aquilo é uma condição dela própria “uma coisa minha, que eu preciso aprender a conviver”. Quem costuma dormir bem, pelo contrário, não consegue fazer muitas coisas quando dorme mal, as consequências aparecem com maior intensidade. Eu, por exemplo, que costumo dormir bem, quando durmo mal, passo o dia inteiro sem conseguir fazer nada muito bem, sem ser “funcional”. O momento da insônia é profundamente solitário e essa solidão é associada aos “monstros noturnos”. Bruna, por exemplo, diz que o momento de mediação entre o não conseguir dormir mais depois de ter acordado muito cedo e de acordar de fato, “levantar da cama”, é quando aparecem os piores pensamentos. O momento do sono também determina os outros momentos do dia, isto é, se dormirmos pouco ou dormimos as consequências também aparecem quando estamos acordados.

É caso de ter sonolência durante o dia e não ter durante a noite. Isto é, quando estamos com sono, ainda estamos acordados, e percebemos como um estado diferenciado porque percebemos que pensamos. Contudo, por ser um estado em que o corpo e o pensamento indicam sintomas de alguma coisa, de um tipo de esgotamento, e que assim se impõe como um estado de transição entre o que chamamos de “acordados” e o que chamamos de “dormindo”. Ter sono é o sintoma, é a característica principal que começa a indicar a preparação do corpo para dormir. Assim, a sonolência constante, que aparece em muitos casos dos insones, é um outro modo de se relacionar com a vida, muito diferente aquela que dorme bem, por exemplo. Ter sono durante o dia é ter sempre consigo a presença do sono, às vezes aparece como algo ausente, isto é, a dificuldade toda é ter sono, sentir a vontade de dormir. Algo que se apresenta como “diminuir o ritmo, dar uma desacelerada”, com diz Vera.

A insônia aparece em diferentes variantes, de modo diferente para cada um. Por exemplo, se para Bruna a dificuldade de dormir aparece como dormir pouco, isto é, não dificuldade para cair no sono, há dificuldade para dormir durante um longo período. Assim, o sono de Bruna varia de 3 a 5 horas por noite, sempre acordando antes do dia clarear. Já para Vera, a dificuldade toda está justamente nesse momento, o de cair no sono. Assim, se Bruna só deita e tenta dormir, Vera possui um vasto ritual de mediação entre os estados de consciência. Entretanto, tanto o modo de Bruna quanto o de Vera são constantes e diários.

O problema de dormir aparece, portanto, num sentido sociológico, como sendo tanto um definidor da estrutura e organização social, como nos diz Leder quando se refere ao sono como um certo “alivio do social”, como um ponto definidor do ritmo diário, o que determina o nosso ritmo cotidiano e que interfere brutalmente na nossa experiência cotidiana.

Sonho, realidade

A questão da transição entre os estados de consciência é fundamental na situação do sono – e assume algumas facetas problemáticas. Percebemos como estados diferenciados do sono as fases de dormir, quando estamos adormecendo, sentimentos que começamos a entrar em um novo estágio, que algo acontecerá com o nosso corpo, e mais do que isso, que algo acontecerá com a percepção que possuímos das coisas. Não controlamos, é um momento em que se abandona a consciência. Não é à toa a fala de Roberto no sentido de atribuir a insônia à vontade de controle. Isto é, justamente pelo medo de perder o controle, que por sua vez, diz ele, é o próprio medo da morte, ele não consegue dormir. Assim, essa primeira etapa de transição é um momento de desprendimento em relação ao que podemos fazer para nos proteger, inclusive. O momento em que estamos mais vulneráveis. O discernimento, que parece tão evidente quando estamos conscientes, começa a se esvair. Por exemplo, por conta da privação de sono, Bruna conta de uma vez que viu e ouviu certas coisas durante à noite e não sabe se aquilo havia sido um sonho ou não. Quando acordou, no dia seguinte, ela não sabia se tinha acordado mesmo, e passou o resto do dia com a linha entre o que era sonho e o que era realidade bem frágil. Da mesma maneira Vitor, que tem uma memória parecida: não sabia se havia acontecido ou era só imaginação. O primeiro ponto é essa diferenciação extrema que fazemos entre imaginação e realidade, como se a imaginação estivesse fora do que chamamos realidade, e ela se opusesse ao real pelo fato deste existir, e daquela ser irreal, não existir. Somente consideramos situações aquelas as quais possuímos um certo controle, um certo modo de perceber e, portanto, discernir, – considerando perceber como um estado de atenção, uma postura que olha atentamente para alguma coisa, e que assim o faz através do sentidos, mediado por uma consciência. Restringimos a parte que não temos consciência a uma “irrealidade”, uma “ilusão” que se encontra distante do mundo e fora de nossas capacidades de compreensão.

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