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Revisitando Durkheim: Vínculo, Tensões Morais e Educação para a Diversidade, por Raquel Weiss

durkheim

Raquel Weiss (UFRGS)

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Neste mês completa-se o centenário da morte de um autor cuja biografia praticamente se confunde com à da história da sociologia. Do ponto de vista simbólico, não há melhor momento para fazer um balanço desses cem anos sem Durkheim, mas também desses cem anos com Durkheim. Afinal, sua figura opera como totem de nossa disciplina, em relação ao qual organizamos as diretrizes de nossa ação, em movimentos que são ora de negação, ora de aproximação. Podemos mesmo fazer uma alusão ao argumento de Freud sobre o momento fundador implicado no assassinato do “pai da horda”, que é convertido em totem, e que institui a possibilidade da fratria, condição do que se chama de “vida civilizada”, entendida enquanto existência pautada por algumas regras compartilhadas. 

O que importa nesta alusão metafórica é o argumento freudiano de que o assassinato do pai é o que garante a continuidade perene de sua existência, enquanto figura mítica, que se mantém viva nas características ressaltadas por seus herdeiros, tomadas como traços identificatórios em relação aos quais se constituirá a cultura dessa fratria. Do ponto de vista psicanalítico, Durkheim é pai, ocupando esse lugar de organizador de nossa cultura sociológica. Voltando para o território que nos é mais familiar, vale fazer emergir a  categoria de ritual, mecanismo pelo qual os mitos são produzidos e reproduzidos. Se o banquete totêmico é o primeiro a definir aquilo que será devorado, as análises sócio-antropológicas nos autorizam a ressaltar o caráter sempre mutável dos mitos, na medida em que os rituais das novas gerações podem apresentar a imagem do pai a partir de traços diversos, tomando outros elementos para operar sua identificação. É nessa possibilidade que reside nossa liberdade de recontar nosso mito de origem, para canibalizar dele as ideias que fazem sentido em nosso tempo presente.

Se vocês aceitarem todas essas alusões e analogias, é possível introduzir ainda mais uma: os sociólogos que se ocupam da área da teoria são contadores de história, narradores dos mitos que nos foram transmitidos. Mas são também investigadores desses mitos, reinventando que foi dito pela geração precedente. Escavam terrenos cheios de pedregulho e procuram nos baús empoeirados informações sobre quem de fato foi esse “pai” fundador, de modo a apresentar dele uma imagem diferente daquela contada pelos que o precederam. E, assim, constroem uma nova figura mítica, ressaltando traços que correspondam melhor às necessidades e anseios de seu tempo, movidos por suas próprias inquietações.

Há dezessete anos venho trabalhando ao lado de outros pesquisadores na escavação da obra durkheimiana, e hoje gostaria de compartilhar com vocês a minha versão totêmica. Em virtude de seus pressupostos, trata-se de uma versão não exclusivista, pois não apenas admite conviver com outras versões, mas o deseja. O pluralismo interpretativo assume que cada narrativa ilumina aspectos particulares, de modo que fazer valer uma em detrimento das outras só pode trazer como resultado um empobrecimento da compreensão. Porém, também há versões antagônicas, que são enfrentadas para que seu outro possa emergir. Tal como na vida, o campo da teoria também é marcado por disputas, característica que o torna dinâmico.

Meu primeiro contato com a obra de Durkheim, ainda no primeiro ano da graduação, foi marcado por epítetos que certamente também são bem conhecidos de vocês: teórico da ordem, ultrapassado, conservador, opressor do indivíduo, e por aí vai. Em um primeiro momento, o que me chamou a atenção era a falta de correspondência entre o que eu “ouvia dizer” e aquilo que lia nos textos do autor. Essa foi a motivação inicial para resolver começar a fazer pesquisa de iniciação científica na área de teoria sociológica, e meu ponto de partida foram justamente seus textos sobre educação. Apenas algum tempo depois entendi que tais epítetos se deviam à história da recepção do autor na França e nos Estados Unidos, e que tinham muito mais a ver com tensões entre seus intérpretes do que com uma leitura direta de sua obra.

Aliás, descobri também que a maioria desses argumentos não resistiriam a uma análise textual minimamente rigorosa, e que simplesmente desconsideravam o contexto histórico no qual a obra foi produzida, bem como o engajamento intelectual e politico em sua época. Vamos tomar apenas um exemplo: o argumento de Robert Nisbet, segundo o qual Durkheim seria um teórico conservador, pertencendo ao mesmo espectro político que De Bonald, De Maistre, etc., é facilmente descartada quando recuperamos o posicionamento do autor no contexto do caso Dreyfus, enunciado com toda clareza em seu artigo O Individualismo e os Intelectuais.

Poderia seguir ainda com muitos outros exemplos, mas minha intenção não é reconstruir o passado, mas apresentar o que considero que há de potente na obra durkheimiana, e que pode orientar pesquisas importantes para a compreensão da vida coletiva de nosso tempo. Meu argumento apoia-se sobre três teses. A primeira é a de que encontramos no texto de Durkheim uma importante teoria sobre o sujeito, que é o que justifica sua discussão sobre o tema dos vínculos sociais. A segunda é a que a moral é o principal tema de sua obra, e a sociologia da moral é uma abordagem necessária para a compreensão dos conflitos contemporâneos. E, finalmente, proponho a tese de que, nesse cenário, a diversidade é o valor central para estruturar as bases de nossa sociabilidade e de nossas instituições. Ao percorrer essas três etapas, tomarei a educação como fio que tece essas articulações, enquanto fenômeno fundante da vida coletiva, a partir do qual espero formular um convite de releitura da obra durkheimiana, em particular de sua sociologia da educação, tomada na relação com sua sociologia da moral. 

O indivíduo como ser social e os vínculos sociais

A primeira premissa ontológica de Durkheim é a de que o ser humano é um ser social. Essa afirmação pressupõe um juízo sobre a natureza humana e, ao mesmo tempo, sobre sua psicologia, em um sentido mais fenomenológico. De forma bastante simples, isso quer dizer que o ser humano só se realiza plenamente na medida em que compartilha sua existência com outros seres humanos, enquanto uma vida isolada condena-o à infelicidade, impossibilitando o desenvolvimento de suas potencialidades.

O primeiro conceito central para pensar a dimensão coletiva de nossa existência é o de vínculo – que encontra correspondência também na ideia de solidariedade, pertencimento ou adesão aos grupos sociais. Somos seres sociais na medida em que nos vinculamos a um grupo; aliás, não apenas a um grupo, mas a vários, de forma consciente ou inconsciente. A vinculação é de diferentes tipos: pode ser afetiva ou meramente formal, ou uma combinação delas. Em todos os casos, a maneira como o grupo se constitui tem influência direta sobre quem somos nesse grupo. Destaco aqui duas categorias que são relevantes para pensar essa relação, quais sejam, a qualidade do vínculo, sobre a qual falarei brevemente agora, e o conteúdo que ele institui, a ser tratado na seção seguinte.

Esse tema vem sendo discutido por alguns intérpretes de Durkheim, em particular Philipe Steiner e Serge Paugam, e creio que seja realmente importante para ressignificar o sentido da ideia de coesão. É verdade que a coesão é tema central de sua teoria, mas durante décadas enfatizou-se apenas a dimensão social desse conceito, como se a coesão implicasse apenas ausência de conflito, e como se dissesse respeito apenas à manutenção da ordem social, como bem em si. Essa leitura acaba por estigmatizar esse conceito, pois evoca a ideia de um sujeito impotente diante de uma sociedade opressora, que precisa continuar intacta, doa a quem doer. É preciso admitir que Durkheim não nos ajuda muito a fazer outra leitura, pois sua obsessão em defender a existência da sociedade como fenômeno sui generis – movimento necessário para legitimar a sociologia como ciência autônoma – acabou fazendo com que “exagerasse nas tintas”, ao enfatizar a importância da continuidade da existência coletiva.

Mas podemos sempre assumir a posição de “filhos e filhas rebeldes”, subvertendo as camadas mais externas do argumento, para desenvolver o que há de potente por trás das preocupações algo enfadonhas, que até podiam ser necessárias para responder às demandas intelectuais da França daquele tempo, mas que já não nos dizem respeito diretamente. Vamos lembrar que o assassinato do pai totêmico nos confere essa liberdade.

Fiquemos então com o lado do avesso. O vínculo é o que garante a coesão, é sua causa, mas também sua finalidade. É causa na medida em que não é possível qualquer coesão desejável – isto é, que prescinde do uso da força física – sem a existência de vínculo, sem indivíduos conectados uns aos outros mediante relações de interdependência ou afeto. A dimensão da interdependência é exaustivamente discutida em Da Divisão do Trabalho, e diz respeito aos vínculos impessoais que garante a funcionalidade da vida cotidiana em um contexto de dissolução das formas tradicionais de solidariedade. Porém, gostaria de chamar a atenção para a segunda dimensão, a do afeto, que encontramos em livros como O Suicídio, A Educação Moral e As Formas Elementares da Vida Religiosa, que nos recordam que o vínculo também é a finalidade da coesão, isto é, sua razão última. Afinal, a sociedade só é importante na medida em que o ser humano precisa existir em grupo para que possa existir plenamente.

O que lemos nas entrelinhas do texto durkheimiano é que o ser humano retira a força que precisa para viver da energia e do afeto que lhe são proporcionados pelo grupo. Por outro lado, vínculos demasiadamente opressores, que não deixam espaço para a ação individual e para a diferença, também são fonte de sofrimento, cerceando os movimentos, tornando o ar pesado demais para que possa ser suportado. Esses extremos podem ser caracterizados como patologias, às quais podemos chamar de hipobárica e hiperbárica.

Essa é a discussão que perpassa todas as páginas de O Suicídio, que pode ser tomado como um tratado acerca da qualidade dos vínculos coletivos e de suas consequências para o sujeito. Como sabemos, a obra de Durkheim foi pioneira na abordagem sociológica do fenômeno do suicídio, e foi muito importante por mostrar que as coisas que acontecem com os indivíduos não são devidas apenas a escolhas individuais. É claro que a singularidade de cada pessoa é importante, mas o que o autor mostra é que aquilo que somos depende em larga medida do tipo de interação que temos com os outros. Em resumo, aquilo que é realmente importante em tudo o que ele analisou, é a tese de que o excesso de vínculo (como no caso do suicídio altruísta) acaba por sufocar o indivíduo ou fazer com que ele ou ela sintam que sua vida vale muito pouco diante da vida do grupo. Essa falta de amor à própria vida faz com que seja mais fácil abrir mão da própria existência. É claro que o altruísmo e importante para a vida coletiva, mas quando ele se torna excessivo, temos uma sociedade que estabelece quais pessoas merecem sofrer pelos outros, e quais merecem continuar a viver. Esse excesso de vínculo pode assumir outras formas também, isto é, não diz respeito apenas aos indivíduos que doam sua vida pelos outros, mas também se faz presente em situações em que há muita pressão para que a pessoa faça determinada coisa ou seja de um jeito, e quando a pessoa não quer ou não consegue seguir essa expectativa, experimenta uma dor muito grande, que pode se manifestar como vergonha, tristeza pela rejeição, etc. Esse tipo de suicídio tende a ocorrer mais em sociedades mais tradicionais ou em grupos com uma estrutura mais tradicional dentro de uma sociedade mais ampla.

No outro extremo está o suicídio ao qual Durkheim deu o nome de “egoista”, marcado pela falta extrema de vínculo, que é um sofrimento que resulta do fato do indivíduo não conseguir estabelecer laços significativos em sua vida, o que faz com que sua existência possa perder sentido. Aqui são muitos os fatores que podem levar a esse tipo de circunstância, que faz com que a vida se torne insuportável e que qualquer contratempo mais duro faça com que a pessoa realmente queira deixar de viver. É como uma folha arrancada da árvore: qualquer vento pode levá-la para longe.

O mesmo vale em relação ao suicídio anômico, que acontece em contextos sociais pautados pela instabilidade excessiva, no qual a vida coletiva deixa de prover certas certezas básicas que correspondem à nossa necessidade de previsão e controle sobre o cotidiano. Do ponto de vista do vínculo, isso significa incerteza sobre como organizar nossa vida e nossas relações com os outros, que padrões de de interação são aceitos, como é possível atribuir juízos de valor às ações, etc.

Sociologia da Moral e Conteúdo dos Vínculos

Até o momento, vimos que os vínculos devem ser entendidos como elemento definidor da ideia de coletividade, na medida em que articula existências individuais em um tecido relacional. Trata-se da condição de possibilidade do axioma máximo da sociologia durkheimiana, formulado n`As Regras do Método Sociológico, segundo o qual “a sociedade é qualitativamente diferente do que a mera soma dos indivíduos que a constituem”.  Ao mesmo tempo, a natureza do vínculo – ou do laço, para estabelecer um diálogo com o vocabulário psicanalítico – atua diretamente na constituição da subjetividade. A relação entre vínculo e moralidade é mais profundo do que suporíamos à primeira vista; podemos mesmo dizer que a manutenção dos vínculos é a razão de ser da moralidade. E, ao mesmo tempo, a adesão (ou vínculo) ao grupo é um dos elementos necessários à formação da vida moral. É isso que lemos, por exemplo, no livro A Educação Moral.

A sociologia da moral permanece como potência ainda algo latente do legado durkheimiano, e creio que o desenvolvimento de um programa de pesquisa que tome sua teoria moral como ponto de partida seja um das mais promissoras “vias abertas” de sua obra fundadora. Conforme interpretação que venho formulando no decorrer dos últimos anos, a moral é o núcleo da vida coletiva, que influencia de maneira mais ou menos direta todos as suas dimensões.

Em vez de tratar da moral como substantivo, o que exigiria enfrentar o fenômeno em suas múltiplas e complexas dimensões, tomo-a, ao menos por ora, como adjetivo, que atribuímos a um conjunto de ideias e de práticas que nos circundam. As ideias morais são aquelas que mobilizamos para orientar nossas ações ordinárias, e que, ao assumir a forma de juízos, são usadas para que nos posicionemos diante da conduta ou das crenças das outras pessoas. A todo instante mobilizamos categorias de bem e mal/certo e errado para tomar decisões sobre como devemos agir, mas só muito raramente nos damos conta disso, porque a maior parte desses princípios já são internalizados e assumem forma inconsciente. Esses princípios se tornam mais evidentes sobretudo em dois conjuntos de circunstâncias: quando, por qualquer razão, desejamos agir de modo contrário ao que costumamos fazer, ou aos valores que costumam pautar nossa conduta, ou quando vivenciamos uma situação de crise – individual ou coletiva – que abala nossas certezas e as tinge de coloração mais cinzenta. Por outro lado, é mais fácil operar conscientemente essas ideias morais quando se trata de julgar a conduta ou as ideias das outras pessoas, sobretudo quando são contrárias a nossos princípios.

No entanto, em qualquer um dos casos, mesmo quando esses princípios são conscientes e passíveis de justificação, é ainda mais difícil ter clareza sobre sua origem e suas implicações. É aqui que começa a tarefa principal da sociologia da moral, ao menos desta de que estamos tratando. A principal pergunta  que precisamos responder, portanto, é “o que está em jogo quando falamos de moralidade?”, ou ainda, “quais são as forças que estão em jogo?”.

Vejamos num esquema bastante rápido como podemos por a questão em termos durkheimianos. Nessa perspectiva, a moral é um fato social de tipo muito especial, caracterizado por uma dimensão, qual seja, seu caráter imperativo, pelo qual a moral assume a forma de regra, e seu caráter desejável, que faz com que assuma a forma de um ideal. A regra é seu elemento mais externo, mediante o qual o fenômeno é mais facilmente apreensível, que se torna mais evidente quando há uma ação contrária, que implica uma reação mediada por uma sanção.

Porém, a razão de ser da própria regra é apenas sua função de garantir a realização de algo mais importante, que é o ideal moral. Para Durkheim, o ideal é um conjunto de ideias investidas de um tipo de emoção singular, a que ele chama de sagrado, e que orientam a conduta em dada direção, de modo a nos aproximarmos de um estado de coisas desejável. Dito de outra forma, um ideal é uma ideia sagrada que opera como fundamento para nossa ação, e para nosso juízo sobre a ação das outras pessoas.

O sagrado é uma característica de coisas, ideias ou pessoas, que é colocado à parte no mundo, e que não ousamos desafiar, porque está no plano do inegociável. Tudo o que ameaça o sagrado toca nossos brios de forma visceral, e por isso rejeitamos com todas as forças tudo aquilo que pode profanar as nossas crenças morais.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, bem como em alguns textos que se seguiram à sua publicação, Durkheim revela que a gênese do sentimento de sagrado está nos processos de efervescência coletiva, que são produzidos em momentos em que há intensa aproximação dos corpos e das consciências, que fazem com que os indivíduos percebam que há algo de extraordinário na vida em grupo, pelo contraste com a sensação de calmaria que existe quando se está sozinho. Portanto, trata-se de uma emoção que é produzida quando estamos juntos com pessoas que pensam e agem como nós, e é por esse mecanismo que atribuímos um caráter excepcional às ideias produzidas pelo grupo.

Como dissemos mais acima, o ser humano só realiza sua natureza em uma existência coletiva, e a existência de valores ou ideais compartilhados pelo grupo é o que garante um parâmetro comum para nortear as ações do grupo. Assim, defender os valores do grupo é defender o próprio grupo, é defender a alma do grupo e, em última instância, defender sua própria alma. Isso nos dá uma ideia bastante significativa da complexidade constitutiva da vida moderna, e nos coloca diante do desafio de pensar formas possíveis de coexistência nesse cenário povoado por diferenças. É aqui, acredito, que o papel da educação figura com absoluta centralidade.

Educação e Diversidade

Façamos um breve exercício de reflexão. Em sua obra, Da Divisão do Trabalho Social, Durkheim defendeu que o que caracterizava a sociedade moderna em comparação com as sociedades tradicionais era a mudança no tipo de solidariedade, que deixara de ser mecânica, isto é, baseada na similitude entre as consciências, e passara a ser orgânica, baseada na diferença e na interdependência gerada pela divisão do trabalho.

Todavia, o que podemos observar no contexto de uma modernidade tardia é a existência de lógicas baseadas em um tipo de solidariedade mecânica que sobrevive no interior de uma sociedade marcada pela diversidade. Para usar o vocabulário da sociologia da moral, isso quer dizer que o cenário contemporâneo é marcado pela existência de uma pluralidade de grupos com seus próprios valores sagrados – portanto, não negociáveis – que coabitam um mesmo espaço. Quando há grupos com valores contraditórios entre si, o espaço social transforma-se em uma arena de tensões morais, com disputas entre princípios irredutíveis.

De um ponto de vista sociológico, é necessário compreender o que está em jogo quando um determinado grupo encampa uma cruzada moral, para que se possa ter a dimensão real daquilo que está em jogo. Do ponto de vista político, é preciso considerar que a possibilidade de coexistência passa pelo estabelecimento de vínculos que transcendam os grupos particulares, baseado no ideal moral do respeito à diferença. Sem esse princípio articulador, a vida social continua sendo um campo no qual se instaura a perene disputa baseada na imposição por parte de quem tem mais força, mais adeptos, mais recursos financeiros.

Portanto, cem anos após a morte de Durkheim, continuamos a nos defrontar com a mesma pergunta, que deve ser respondida a partir da realidade de outro momento histórico: como é possivel coexistir, isto é, existir com, existir plenamente enquanto seres humanos que estabelecem vínculos significativos uns com os outros?

Vamos pensar sobre isso no contexto da educação, tomando como exemplo hipotético uma escola em que as pessoas – sejam elas alunos ou professores –  cobram demais das outras pessoas que adotem um comportamento específico, de modo que quem é diferente pode não conseguir lidar com a pressão. A principal forma de prevenção de suicídio desse tipo é a disseminação da ideia de que toda vida tem o mesmo valor e, sobretudo, o estabelecimento da tolerância como um valor central, pois precisamos entender que cada ser humano é de um jeito, e precisa de espaço e liberdade para desenvolver as características que lhe são singulares.

Conforme pontuei na questão acima, vivemos em um momento em que em muitos contextos os laços tradicionais se dissolveram, e muitas pessoas não puderam constituir laços de outra natureza, como grupos de amigos, vínculo a alguma causa compartilhada, etc. Além disso, somos o tempo todo pressionados para ser bem sucedidos em tudo o que fazemos, e nos relacionamos com os outros como competidores, ou não temos tempo para mais nada, só para os estudos e para o trabalho, o que faz com que a vida possa se tornar insuportável. É claro que o estudo e o trabalho são importantes, mas só têm sentido se são um meio de nos conectar com outros seres humanos, e não quando nos separam, quando nos isolam. Em resumo, trata-se de constotuir formas de sociabilidade que possam acolher as pessoas, sem oprimi-las, estabelecendo vínculos que respeitem as diferenças.

Podemos entender, portanto, como a educação aparece como fenômeno central, tanto para a sociedade quanto para o sujeito. Ela é o dispositivo mediante o qual o grupo tenta imprimir sua marca nos sujeitos individuais, transmitindo aquilo que considera valioso, mas também aquilo que está de tal modo arraigado em sua estrutura, que se torna condição de existência do grupo. Sabemos que Durkheim entende a educação como processo de socialização, isto é, a ação das gerações adultas sobre as novas gerações, de modo a torná-las aptas para a vida coletiva, tal como exigido pelas feições particulares da sociedade em questão.

Afinal, para esse autor, nossa personalidade individual é construída na relação com os outros, é o resultado da internalização seletiva e ativa daquilo que o autor chama de “bens da civilização”, que contemplam desde a linguagem – condição de possibilidade das categorias que mobilizamos para pensar o mundo – até o conjunto de informações sobre o mundo, de conteúdo científico, literário, moral, estético, etc. O sujeito não pode escapar ao meio, pois é do meio que provém a matéria prima a partir da qual nos constituímos. Isso não quer dizer passividade nem uniformidade. Não há existência sem resistência, tudo que é absorvido de fora já é metamorfoseado quando passa a integrar as personalidades e consciências individuais. Por outro lado, o indivíduo não é entidade auto-suficiente: somos continuamente influenciados pelas ideias e ações que nos circundam. Nos posicionamos diante delas, algumas imitamos, outras recusamos, mas jamais somos indiferentes.

Com freqüência, toma-se essas considerações como se a educação assim concebida estive a serviço da manutenção do status quo, na medida em que seu papel seria apenas o de reproduzir aquilo que já existe. Aqui introduzo um último ato de subversão das leituras tradicionais, convidando a enxergar potência onde se costuma ver paralisia e submissão. Se concedemos a Durkheim que a educação tem a capacidade de transformar as crianças em uma direção mais ou menos próxima àquela esperada pelos adultos, somos chamados a assumir uma responsabilidade imensa, na medida em que somos, também nós, parte constitutiva dessa geração chamada de “adultos”. Isso não implica retirar da criança toda autonomia ou iniciativa individual, mas recuperar a consciência de nosso papel no processo de formação das novas gerações pois, de um modo ou de outro, o que fazemos tem consequências para o futuro. Em outros termos, o que nos Durkheim convida a compreender é que não apenas a reprodução da sociedade, mas também sua transformação passa, invariavelmente, pelo processo educacional.

Portanto, em uma época marcada pela política da diferença, articulada a partir de diferentes pressupostos e pontos de vista, a possibilidade de constituição de vínculos que acolham uns, sem destruir outros, passa pela necessidade de se levar muito a sério o processo educacional, que tem como único trunfo possível a valorização da diferença como ideal moral que permite articular a existência coletiva. Trata-se de uma nova versão do velho ideal de respeito à dignidade humana, destinado a responder de forma mais efetiva às inquietações de um mundo em que a valorização das identidades singulares se coloca como imperativo incontornável.

Cem anos após a morte do fundador da sociologia, continuamos a nos perguntar sobre esse mistério que é a vida coletiva. Se ele nos ajudou na formulação das questões centrais, cabe a nós, sociólogos e sociólogas em 2017, tentar inventar nossas respostas.

 

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