David Le Breton (Universidade de Estrasburgo)
Tradução de Débora Allebrandt e Felipe Benedet Maureira
“A imagem que ele passava mais tempo a examinar se encontrava no canto espelho, presa na moldura. Não havia nada que ele tenha estudado mais cuidadosamente que seu próprio rosto, nada lhe atormentava e (pelo preço de um esforço perseverante, é verdade) nada lhe parecia digno de confiança”
(Kundera, La vie est ailleurs)
A face como incarnação do sentimento de identidade
Com o passar do tempo, a face torna-se um lugar de reconhecimento mútuo, nós portamos mãos e rosto nus e ofereceremos aos outros as marcas e traços que nos identificam. Através de nosso rosto somos reconhecidos, chamados, julgados, nos atribuem um sexo, uma idade, uma cor de pele. Somos amados, desprezados ou anonimizados e afogados na indiferença da multidão. Conhecer o outro implica em lhe permitir ver e compreender uma face nutrida de sentidos e valores e, desse modo, espelhar na sua própria face um lugar igualmente pleno de significação e interesses. “Quem sabe, disse Simmel, os corpos se distinguem ao olho do mesmo modo como as faces, mas eles não são capazes de explicar a diferença do mesmo modo como o faz um rosto”[1]. Nas nossas sociedades individualistas, o valor da face se impõe exatamente aonde o reconhecimento de si ou dos outros se faz a partir da individualidade e não sobre as formas de pertencimento a um grupo ou ao lugar que ocupamos em uma linhagem. A singularidade da face responde a singularidade do homem. Dito de outro modo, a singularidade da face corresponde à mesma singularidade do artista, dos valores de sua existência, responsável e autônoma por suas escolhas. Nesse registro não existe mais o homem e a mulher do “nós mesmos”, como nas sociedades tradicionais, mas do “pessoalmente/ para mim/ eu”. Para que um indivíduo adote sentido cultural e socialmente, é preciso que exista um meio para o corpo se distinguir com tal força, com tamanha variação para significar, sem ambiguidade, a diferença de um indivíduo ao outro. É preciso que o corpo se transforme em um limite de si para com os outros e com o mundo externo. Trata-se do corpo como fronteira da identidade. É preciso também que o rosto se torne o território do corpo no qual se inscreve essa distinção individual[2]. Nenhum espaço do corpo é mais apropriado para marcar a singularidade do indivíduo e fazê-lo também socialmente.
A face é um emblema de significações, traduzido sob a forma viva e enigmática de uma diferença individual e ínfima. Lacuna infinitesimal, ela convida a compreender o mistério que contém, ao mesmo tempo próxima e elusiva. Ela permanece única entre um infinito de flexões sobre a mesma tela. A limitação do cenário da face não é de nenhum modo um entrave às múltiplas combinações. Uma infinidade de formas e de expressões nascem de um alfabeto de uma simplicidade desconcertante: expressões faciais, dos olhos, da testa, dos lábios, etc. Evidentemente, a face liga uma comunidade social e cultural através dos modos e traços da expressividade. Gestos e movimentos enviam uma mensagem simbolicamente social e traçam uma via para demarcar a individualidade e traduzir sua unicidade. Quanto mais uma sociedade acorda importância a individualidade, maior é o valor do rosto e sua aparência.
Se o homem não possuísse um rosto para lhe identificar tudo seria igual, a confiança seria impossível e a ética não teria nenhum sentido. Um homem mascarado se torna um homem invisível, não devendo nenhuma satisfação a ninguém. Como ironicamente diz um personagem de Kôbo Abé, “ele não é mais ladrão, nem policial, não é agressor, nem vítima. Não é minha mulher, nem a mulher de meu vizinho”[3]. Dando prosseguimento a sua fantasia, ele imagina fabricar e comercializar uma série de máscaras e se queixa ao imaginar o tipo de subversão que utilizá-las traria ao ambiente social. Utilizando máscaras, ninguém saberia mais quem é quem, sobretudo com a possibilidade de trocá-las várias vezes ao dia. A noção de indivíduo se dissipa diante da noção de pessoa (persona: máscara, em latim). “De repente, uma pessoa desaparece, ao mesmo tempo em que outra se multiplica por dois, por três. A carteira de identidade não serviria a mais nada. O retrato falado do criminoso não teria mais nenhum valor informativo. Rasgaríamos a foto de nossa noiva. Conhecidos e desconhecidos seriam misturadas e a concepção de um álibi seria destruída. Os homens não teriam mais confiança uns para com os outros (p.156).” Para atestar a veracidade de suas características, os homens deveriam morder suas bochechas e oferecer o sangue como uma prova. A polícia deveria apalpar o rosto dos suspeitos para verificar se eles usam ou não uma máscara. “O romance policial perderia rapidamente sua popularidade e o romance familiar, tratando de duplas ou triplas personalidades, roubaria por certo seu tempo e seu lugar (158)”. É impossível conceber um mundo sem face sem percebê-lo como um universo de caos. Para fundamentar o lugar social é preciso singularidade de características para que cada um possa ser reconhecido e reconhecer as características de seu grupo. Um mundo sem rosto, dissolvido na multiplicidade de máscaras seria um mundo sem culpados, mas também sem indivíduos.
A face como força de chamada
Na tradição platônica que cita Aristófanes em “O Banquete”, os homens originais tinham formas arredondadas e quatro braços, quatro pernas e duas faces opostas em uma mesma cabeça. Esses seres não precisavam uns dos outros. Eram homens, mulheres, andrógenos, esses por sua vez eram compostos de uma metade “homem” e outra metade “mulher”. Nesse mundo sem outros, Aristófanes não nos diz quais são as alegrias ou os sofrimentos que ele conhecia. Mas essa falta atormentava moralmente toda essa espécie que decide desafiar deus ao escalar, em vão, o céu. A vingança de Zeus é terrível. Ele decide de dividir ao meio cada um desses seres, profetizando uma busca eterna da sua metade perdida. Plotino fará da linguagem do sangue derramado na ferida do andrógino, a tentativa, difícil e sempre renovada, de encontrar essas metades através da fala. A assimetria de traços de todo homem, faz com que cada rosto seja composto de duas figuras ligeiramente diferentes, abrindo, assim, a porta para o imaginário. Todo homem será, nessa lógica, a fração da face perdida que buscará pela eternidade, buscando-a na face de outrem. O mito explica o amor e sublinha porque um olhar pode transformar completamente a existência, como uma revelação. O amor a primeira vista incarna o calor dos sentimentos após o encontro das metades uma vez separadas pelo ciúme dos deuses. O momento de seu reencontro é conhecido pelos amantes. Eles se amavam sem jamais terem se visto. Tamanha é sua convicção. Mas a comunhão não é eterna e o andrógeno se encontra novamente homem ou mulher, separado em busca de seu fragmento de face perdido.
O tema platônico do reconhecimento se encontra na ressonância mútua das faces e a fascinação que provocam. O momento no qual o mistério invade e confunde passado e futuro. Ele perpassa o passado e desenha o futuro. Casais e a literatura já demonstraram abundantemente essa experiência. “Ele conta suas melancolias na escola e como no seu céu poético resplandescente se via o rosto de uma mulher, se bem que a vendo pela primeira vez ele a tinha reconhecido”, escreve Flaubert, comentando o amor de Frédéric por Madame Arnoux[4]. “Eu o vi, eu corei, eu empaleci ao vê-lo”, disse Fedra ao ver Hipólito pela primeira vez. O encontro inaugural entre o jovem Rousseau e a Madame Warrens testemunha a mesma fascinação. Carne de um e carne do outro se confundem no auspício da face que traça um caminho de almas ou de sensualidade contagiante. Uma carta de recomendação de M. De Pontverre no bolso do jovem Rousseau segue de Goufignon à Annecy até chegar a Madame Warrens. Uma efervescência lhe anima, sobre a qual ele diz no “Décimo devaneio” que “esse primeiro momento decidiu toda minha vida e produziu um encadeamento inevitável do resto dos meus dias”. Rousseau ainda não conhecia a mulher na qual ele buscava proteção, ele a imagina mais velha e devota. Ela se prepara para entrar na igreja dos Cordeliers quando se dirige bruscamente em direção a ele, alertada pela voz intimidada do jovem homem. “O que eu me torno diante dessa visão!” escreve Rousseau… eu vejo uma face cheia de graça, lindos olhos doces, uma pele deslumbrante, um contorno encantador desenha seu pescoço… Aqueles que negam a simpatia das almas expliquem, se puderem, como, desde a primeira conversa, da primeira palavra, do primeiro olhar, Madame Warrens me inspirou não somente o mais vivo sentimento de afeição, mas uma perfeita confiança, que jamais foi desmentida”[5].
O valor social e individual que distingue o rosto do resto do corpo se traduz nos jogos de sedução, na busca pela atenção na qual ele é o foco dos amantes. Existe na face da pessoa amada um chamado, um mistério e um desejo que sempre se renova. A literatura contém inúmeros exemplos nesse sentido. “Um dos sinais do amor, disse A. Philippe, é a nossa paixão por observar o rosto da pessoa amada, a primeira emoção, ao invés de diminuir se prolonga, aumenta ao mover-se, um olhar se torna o fio de Ariane que nos conduz até o coração do outro”[6]. Os amantes podem assim se perder em uma longa contemplação. Mas as significações que os atravessam são inesgotáveis. Os olhos permanecem sempre as portas de uma revelação e se nutrem com essa espera. A face parece ser o lugar aonde a verdade é em vias de ser revelada. Sem dúvidas, o final de uma relação amorosa para um casal testemunha também a banalidade mútua que preenche os rostos, impossibilitando de descobrir os mistérios contidos nas características do outro. Com o passar da vida cotidiana, o sagrado se torna, pouco a pouco, profano. Ele perde sua aura. Mas enquanto dura a intensidade do sentimento, o rosto cumpre o papel de uma chave para abrir a porta para o gozo do ser que representa.
Proust disse admiravelmente ao escrever em Swann esse misto de confusão, lucidez e cegueira diante de uma mulher com quem ele tinha relações e que ele sabia que ela já não tinha mais o charme que quando se conheceram. O fascínio continua intacto diante da face que incarna em seus olhos todo o mistério de sua relação com Odette. “Fisicamente, escreve Proust, ela atravessava uma fase difícil: ela estava mais espessa, e o charme expressivo e doloroso dos olhares surpresos e cheios de devaneios que ela tinha outrora parecem ter desaparecido com sua juventude. De modo que ela se tornou tão querida à Swann precisamente no momento em que ele a considerava menos bela. Ele a observava incansavelmente para encontrar o charme havia conhecido, sem sucesso. Mas saber que nesse novo casulo vivia a mesma Odette, sempre com a mesma fugacidade, indescritível e astuta, era suficiente para Swann para que ele continuasse a ter a mesma paixão em tê-la”[7]. Da criança ao ancião, de um lado ao outro da existência, permanece na face a semelhança e o mistério que assinala a fidelidade do eu.
O racismo ou a aparência profanada
Como o rosto é o lugar sagrado, por excelência, da relação do homem para com ele mesmo e com o outro, a face é também objeto de tentativas de profanar, sujar, destruir para tentar eliminar o indivíduo, recusando sua singularidade. A negação do homem passa de maneira exemplar pela recusa de acordar dignidade a uma face. Expressões populares revelam esse princípio. Trata-se de ditos como “estar mal na foto”, “quebrar a cara”, “dar a cara a tapa”, “ser cara de pau”, etc[i]. Esses insultos animalizam o rosto ou tentam o empobrecer: cara de rato/macaco, cara de pau, fuças, etc. O mesmo propósito do racismo mundano que evocava a “fisionomia” do estrangeiro, e não pensava que esse tipo de vocabulário poderia ser utilizado de modo mais amplo. Somente o outro tem fisionomia. Esses são processos da destituição do homem que exige simbolicamente que nos o destituamos de seu rosto para melhor lhe rebaixar. A vontade de supressão de toda a humanidade no homem fala da necessidade de quebrar os marcadores de sua singularidade, de seu pertencimento a uma espécie – a saber de sua face. Antropologicamente, oferecemos um exemplo impressionante da ambivalência do sagrado analisado por Otto[8], no qual o amor eleva simbolicamente a face, o ódio do outro se associa as tentativas de pisotear. Um erudito da antropologia do sagrado destaca sua espiritualidade, sua distância, a emoção ao ver, mas ao mesmo tempo, o medo, terror e a vontade de destruir. O exercício da crueldade favorizado pela animalização do outro, a bestialização, a destruição de sua humanidade. Começando pelo fato de lhe negar um rosto a fim de melhor lhe ver como um piolho, um inseto, um verme, um rato. O outro é uma espécie radicalmente estrangeira e não possui condição humana. Assim, não existe nenhum obstáculo que nos impeça de lhes torturar ou lhes matar.
O racismo poderia se definir por essa negação e imposição de uma categoria depreciativa que contempla todo indivíduo como um “tipo” e indica a conduta que devemos ter para com ele (“o judeu”, “o árabe”, etc.). A diferença infinitesimal que distingue o indivíduo e seu nome é completamente destruída. Privado de um rosto para marcar sua diferença, ele se ajusta em um elemento mutável de uma categoria feita pelo desprezo. Lhe é cedido somente uma máscara, praticamente fúnebre, que é a do robô, uma caricatura com os traços raciais que tiveram durante o nazismo seu período de glória, mas continuam insidiosamente a espalhar seu modelo restrito de categorização. O outro não tem mais um rosto humano. Sua especificidade não existe mais: seus traços físicos revelam o seu interior moral e revelam e traduzem na pele seu temperamento, seus vícios, sua deslealdade. A empreitada da fisionomia ou da morfopsicologia tenta destruir o enigma da face para transformá-lo em uma figura, e, finalmente, em uma confissão[9]. A face não é uma máscara, mas sua duplicidade tomba diante da sagacidade do fisionomista que se contenta simplesmente em aplicar uma grade de avaliação. Sua ambição é criar uma fórmula da verdade psicológica do homem diante dele. Após o apagamento da face, não lhe resta que passar a ação. O racismo não é somente uma opinião, mas uma antecipação do assassinato que começa no apagamento simbólico da face do outro.
A máscara ou o fim da face
O rosto é um verniz essencial que torna possível conectar através da responsabilidade social que dota um indivíduo na sua relação com o mundo. Nas nossas sociedades o princípio de identidade se localiza essencialmente sobre o rosto. Desfazer-se desse rosto através de uma máscara, um véu, uma acentuada maquiagem é um ato de grande força, através do qual o indivíduo pode, até mesmo sem querer, ter cruzado o limiar para uma metamorfose. O apagamento da face desperta um sentimento próprio dos jogos, da transgressão, da transferência de personalidade. Ao esfoliar seu rosto artificialmente, o indivíduo se libera das amarras de sua identidade, deixa florescer as tentações que renunciava ou descobre que graças a essa experiência não tem mais satisfações a dar a seu antigo rosto/identidade. Não existe mais temor em olhar nos olhos de sua face e responder por seus atos uma vez que esconde sua face de sua atenção e também para os outros.
A máscara absorve o rosto vivo do indivíduo, dissolvido na carne de suas familiaridades, desagrega as ressalvas e proibições do sentimento cotidiano de identidade e o substitui por uma face de busca, um manequim, imóvel, uma superfície de projeção na qual o imaginário costura à vontade. Libertar-se de sua face pode possibilitar incarnar todas as faces possíveis, responder a todas as transformações desejadas. É nesse aspecto que está o poder de liberar as contenções das inúmeras facetas que compõe uma pessoa. Uma das razões de ser da máscara consiste em dissimular ou tornar desconhecidos os traços de um rosto. Para que possa fazer em toda impunidade uma transgressão de códigos sociais e se esquivar das consequências se seu ato. Se o indivíduo for reconhecido, ele eliminará o traço que lhe deixou vulnerável a indiscrição dos outros. Mas a máscara não assegura somente o anonimato, ela favoriza também a liberdade e o enfrentamento de proibições, ela catalisa as tentações enterradas no indivíduo pela moral, que encontra, por sua vez, identidade na face do indivíduo que a possui. A máscara derruba os traços e anula também as exigências morais. Ela retira a fechadura que impedia o curso das pulsões. “Quando se suprime o rosto, escreveu Kôbô Abé, se elimina também o coração. É a arte da dissimulação. Podemos agora compreender porque era tão indispensável que o rosto dos torturadores e inquisidores de outrora fosse coberto (…) Aquele que usa uma máscara tem intenção de não somente esconder sua fisionomia – que é passiva, mas também tem intenção ativa de aniquilar as relações normalmente associadas entre o coração e a face e se libertar dos sentimentos mundanos, dissimulando, assim, sua expressão[10]”.
Kôbô Abé produz em “La face d’un autre” (A face de um outro) uma reflexão profunda sobre a máscara. O personagem central é vítima de um acidente que o desfigura. Ele cria um rosto de material sintético, bastante fino, para dar leveza e ilusão do que seria o seu rosto. Seu conhecimento em química leva a criação de uma obra quase perfeita. Colocando a máscara sobre os seus traços quebrados e distorcidos, ele se desaponta com a sua inabilidade de fazer-se passar pelo rosto que tinha, pela sua rigidez. Instantaneamente a máscara parece um outro, é preciso guiá-la antes que ela possa tomar decisões autônomas no mundo, é preciso educá-la como uma criança, ensinar traços, gestos e expressões familiares. Com o passar do tempo, a máscara se torna segura, um tipo de possessão se instaura a partir do novo homem que ele se torna a cada dia. A máscara se torna uma face. Desse modo, diante de um espelho o narrador se abandona: “Nós nos olhamos por alguns instantes. Logo o outro começou a rir e eu ri também. Eu escorregava na pele do outro, sem resistir. Estávamos unidos, eu me tornei ele mesmo. Eu não considerava seu rosto particularmente bonito, nem feio. Eu começava a me sentir e a pensar com esse rosto (p.105)”. Pouco à pouco, “ao invés de lhe guiar eu o seguia. Seguia essa alma com a mesma vontade que tem um prisioneiro que acaba de ser libertado”(p.125). É claro que simultaneamente existe uma consciência que a máscara revela, permitindo que sejam visíveis tendências morais já presentes nesse indivíduo. “Não estando hipnotizado ou drogado, era eu que era responsável até o fim por todas as ações de minha máscara(…) A personalidade do mascarado não é nenhum tipo de coelho que sai da cartola do mágico. Ela deveria ser uma parte de mim mesmo, cuja existência eu não era consciente até o momento em que o rosto nu de meu portador a revelou (p.126)”. Quando ele seduz sua mulher com a máscara, ele tem a impressão que ela o trai com outro e sente ciúmes.
O narrador se encontra dividido e transtornado pelas exigências de sua máscara que faz emergir tendências até então ocultas. E no entanto, ele é ainda o mesmo homem, ferido por seu acidente e desfiguração. Ele leva uma vida dupla, uma com um sentimento de poder sob a égide da máscara, atento ao mundo e aos acontecimentos que o rodeiam, vendo as coisas sob um ângulo diferente; e o outro, a partir de sua face desfigurada, confrontado com os olhares curiosos e compassivos, sofrendo pelo drama de sua identidade perdida e do afastamento de sua mulher.
A autonomia progressiva da máscara deixa o narrador mais distante do que ele gostaria. A resistência de sua antiga personalidade, desprovida de um rosto e socialmente rejeitada, cede rapidamente diante da vertiginosa liberdade que se apresenta. As antigas barreiras morais de sua antiga identidade perdem sua raiz com o que restava de sua face original. Reprimida, um estado de réquiem, se faz cada vez mais invasivo. A desfiguração colocou o narrador em descompasso da lei comum, tornando-o um objeto de olhares amedrontados. Agora, através da força e liberdade pulsante nele, ele busca diferentes maneiras de se isentar. Assegurando-se de sua impunidade, uma vez que ele não seria reconhecido ao cometer seus delitos, ele pondera sobre tornar-se um incendiário ou como se livrar de agressões sexuais, etc. “O frisson da liberdade e do álcool, faz com que meu corpo se torne um duro desejo (…) minha máscara quer burlar a lei, sem isso ela não tem nenhuma razão de existir” (149 e 165).O romance encontra seu fim em uma passagem que aponta para a morte definitiva de sua antiga identidade através da morte de outrem. Como se o batismo da máscara exigisse uma ruptura radical de qualquer moral anterior e pelo fato de ceder a todas as tentações. A alquimia da máscara opera uma transferência de personalidade. O apagamento da face é uma visão real de acesso a novas possibilidades de ser, até então proibidas ou escondidas. Ela oferece um laissez-passer de uma experimentação sem entraves.
O indivíduo se torna uma “persona”[11], abandonando-se dessa energia na qual rejeita bruscamente a ideia de retirar a máscara, seguido pelo medo, recusando ceder o desejo de ser alguém além de si mesmo. A máscara é um agente de metamorfose, segundo o estilo de conformação e as forças que contribui a cristalizar naquele que veste sua face. Mas seu efeito é imprevisível porque ele traduz a alquimia do encontro de duas potencialidades, as do homem e as da máscara. Ele pode engendrar medo, angústia de ser privado de seu porto seguro que fixam a identidade a certeza de um rosto. A memória desconcertante de Rilke ilustra essa ambivalência através da proximidade possível desses dois esforços. Em um silo, uma criança descobre uma máscara em um antigo baú de viagem. Ele a coloca sobre seu rosto: “Ela fora grandiosa, para além de toda esperança. O gelo a reproduzia imediatamente: era convincente demais. Era inútil mover-se, era uma aparição perfeita e não precisava de minha contribuição”. A criança é maravilhada por esse brilho intenso diante da facilidade de se tornar outro. Ela tem prazer em testar sua liberdade por amplos movimentos que confirmam seu bem-estar.
Até que um barulho a interrompe e bruscamente a retira de seu transe. Um sentimento de despersonalização lhe preenche. Ele busca em vão, se retirar da máscara: “Queimando em cólera, eu me jogava no gelo e seguia o trabalho de minhas mão com dificuldade através da máscara. Mas ela(a máscara) não esperava por isso. O momento da vingança havia chegado. No momento de angústia que crescia cada vez mais, eu me esforçava para fugir de minha fantasia, ela me obrigava por meios que desconheço a olhar e impunha sobre mim uma imagem, uma realidade, uma estranha e incompreensível realidade que me penetrava apesar de minha vontade: nesse momento a máscara era mais forte e eu era apenas seu reflexo no espelho.”. Tendo apagado seus traços, a criança não tem mais lugar. Tendo revestido o signo de uma força estrangeira, ele se deixa conquistar por ela. Incapaz de romper a ligação, em pânico, ele foge gritando. Seus pais e sua família lhe cercam. “E enfim, eu me ajoelhava diante deles, como ninguém jamais o fez, eu me ajoelhava e levantava minhas mãos suplicando: “Tirem-me daqui e não me deixem voltar”, mas eles nada entendiam; eu não tinha mais voz”[12]. Brincar com seu rosto, o dissimular é sempre brincar com o fogo, sob o risco de corromper sua identidade ou de revelar facetas novas e perigosas. A criança encontra aqui uma etimologia do termo máscara, tradução do italiano maschera que remete a um radical pré-romano, maska, que no latim significa “máscara”, “feiticeiro”, “espectro, demônio”[13]. O perigo da máscara, sua ambivalência está registrado no inconsciente da língua.
A desfiguração ou a identidade destruída
Em novembro de 2004, Isabelle Dinoire[14] inconsciente após ter tomado pílulas para dormir, foi em parte desfigurada pelo seu cachorro enquanto ela estava deitada no chão. Ao acordar, ela descobre o horror de uma existência sem rosto. Após uma intervenção cirúrgica de 15 horas no dia 27 de novembro de 2005, ao CHU D’Amiens, os professores Bernard Duvauchelle, Jean-Michel Dubernard e suas equipes, obtiveram sucesso no primeiro transplante de região triangular do nariz, lábios e queixo. Os tecidos transplantados foram retirados de uma doadora diagnosticada com morte cerebral. Isabelle Dinoire encontrou, pouco a pouco, a possibilidade de suportar olhares alheios.
De todas as partes do corpo humano, é o rosto humano que representa a mais alta valia: matriz de identificação; espelho do sentimento de identidade; objeto de sedução; nuances da beleza ou da feiura; marcas da idade e marcas da emoção. É um valor tão elevado que toda a marca visível de uma lesão é vivida como um drama: como um rasgo profundo no sentimento de identidade. O rosto é uma totalidade única que não pode ser modificada, nem mesmo em um detalhe ínfimo sem uma profunda transformação. Toda alteração acarreta rompe profundamente um homem ou uma mulher que não se reconhecem mais e não ousam sequer se olhar. “Eu não posso mais me apresentar diante das pessoas” disse Isabelle Dinoire ao descobrir seu rosto destruído no espelho.
A desfiguração é uma privação do ser, ela anula a matriz de identidade de um indivíduo que se torna inominável, monstruoso (no sentido etimológico da palavra na qual seu infortúnio provoca olhares). A alteração de traços da aparência do rosto induz a impossibilidade de se reconhecer e de ser reconhecido por outros, machucados, cicatrizes, mesmo mais graves, situados em outras partes do corpo são menos dolorosos. A ruptura do sagrado espaço da face provoca até mesmo o horror em pessoas próximas, o sagrado que fascina dá lugar ao sagrado que repulsa. Albert Cohen diz brutalmente ao lembrar que “se o pobre Romeu tivesse perdido o nariz em algum acidente, Julieta, só lhe olharia com horror”.[15]
Como perder um membro, a desfiguração transforma profundamente o sentimento de identidade. Nas sociedade ocidentais, cicatrizes no rosto são frequentemente vividas de forma dramática. Em outras partes do mundo, rituais de iniciação impõe cicatrizes profundas no rosto de jovens. Nessas marcas, carregam o orgulho de tornarem-se um homem ou uma mulher, parte de uma comunidade. O etnólogo Robert Jaulin queria viver um ritual de iniciação Sara, no Chade. Ele foi adiante até o momento em que o ritual implicava uma escarificação no rosto[16]. Ao se negar passar por esse ritual, que do ponto de vista de um ocidental era excessivo, ele evoca, paradoxalmente, a diferença de negar simbolicamente se juntar aos Sara e de reivindicar viver o ritual do deu interior.
Esses exemplos mostram que a desfiguração (do mesmo modo que a beleza ou a feiura) não é uma categoria universal, mas efeito de um julgamento social determinante no qual os mais íntimos sentimentos do homem são postos em jogo por sua representação facial, ou são desfiguradas por cicatrizes ou impressões na pele. As marcas tradicionais sobre o rosto e o corpo, outrora símbolo de orgulho e beleza por seu valor de integração ao grupo, sua inscrição numa linhagem, relações com os ancestrais e a uma cosmologia, hoje perdem seu significado num contexto de urbanização e globalização. Se essas marcas introjetavam nos jovens seu status de homem ou mulher, hoje elas simbolizam nas cidades africanas um estigma difícil de escapar. Desligado do pertencimento ao grupo, um indivíduo portador desses traços cutâneos experimenta um estigma e não mais um símbolo valoroso de filiação. O escritor Kangui Alem evoca uma mulher Sara, do Chade, cujo rosto é marcado por escarificações. El fala sobre o sentimento de vergonha que experimenta hoje, muito aquém do orgulho que sentiu durante sua iniciação quando vivia ainda em sua aldeia. Ela é militante de direitos humanos em uma ONG, e seu rosto é um obstáculo no estabelecimento de relações com outros. Ela é vítima de piadas e os apelidos maldosos[i] a acompanharam, da escola primária à universidade”. Ela conta ter sido rejeitada por homens que não eram parte da sua etnia, acabando por namorar somente rapazes também marcados pelos mesmos símbolos tradicionais. Paradoxalmente, ela denuncia o risco de um “comunitarismo” provocado pelas marcas tradicionais. Ela diz com humor: “Pelo menos cada vez que vou aos Estados Unidos, tenho a satisfação um tanto irônica de ser tratada como uma verdadeira africana. Ao mesmo tempo que no meu país eu sou motivo de piada, uma serviçal[17]”.
O sexo e o rosto são essenciais para a cristalização da identidade e também os mais vulneráveis aos fantasmas do inconsciente. Sua alteração confunde a personalidade e deixa o indivíduo imerso em angustias de dimensões que não correspondem, necessariamente, a gravidade da situação. É através deles (sexo e rosto) que apostamos o significado e o valor da nossa existência. A desfiguração não extirpa somente a pele do rosto tornando a pessoa irreconhecível, ela sutilmente rasga a identidade que recebia cotidianamente sua confirmação através dos olhares dos outros. O indivíduo machucado não se reconhece mais, no sentido real e figurado. É como se um terremoto coloca-se em ruínas suas antigas fundações. Perder o rosto ou não poder salvar as aparências não são mais metáforas para falar da perda da ligação social. Dessa vez a situação é real e com consequências ainda mais concretas. A desfiguração é uma privação do ser enquanto permanece o luto da face perdida e que as pessoas próximas não aprenderam a ver nascer uma outra face no lugar da máscara rígida. Tal tarefa é difícil, sobretudo, quando cada espelho, cada olhar, cada hesitação reenvia a sensação de estigmatização, ao sentimento de ambiguidade pessoal e anomalia da espécie.
Continuamente, a pessoa desfigurada deve assumir essa violência, ser confrontada ao sentimento de ter sua identidade desfeita e da dor de ter enraizada uma imagem do corpo que só se modifica muito lentamente como lembrança cruel do ocorrido. A capacidade de superar tal obstáculo e reencontrar plenamente a vontade de viver está ligada a sua experiência de vida, sua história, sua situação social e cultural, sua idade e também aquela das pessoas que a cercam. Muitas vezes a experiência de aniquilamento é brutal, pois remete a uma perda definitiva de tudo que existia anteriormente. A desfiguração não é uma doença da qual nos recuperamos por um período de convalescença, nem um machucado que se cura através de uma cicatrização perfeita. Ela equivale a uma mutilação, mesmo se o indivíduo não perdeu nenhum membro. Ela não nos deixa outra escolha que aceitar o problema e nos submeter a sucessivas cirurgias reparadoras que dão esperança e memória à face perdida. A desfiguração coloca sobre o rosto uma máscara do mesmo modo que o faria um banho de ácido. Essa máscara nos acompanha por toda a vida, ela precede todo encontro. É daí que vem a impressão que pessoas desfiguradas raramente saem de casa ou esperam a noite para se perder no anonimato.
Na nossa sociedade as pessoas desfiguradas, chamam atenção a contragosto e como resposta à sua discrição tentam se tornar, paradoxalmente, invisíveis para desapercebidamente se deslocarem. A hierarquia do horror coloca em primeiro lugar a alteração do rosto por um acidente ou doença. O homem que não tem mais “aparência humana”[ii] diz a expressão popular. Metáforas marcam a retirada do lugar social e remetem a uma morte social. A particularidade da pessoa desfigurada consiste na carência simbólica que ela oferece ao mundo através de suas feições destruídas. Nenhuma de suas competências para o trabalho, para o amor, para a educação, para viajar, para viver, não sofreram impedimento por conta de seu estado. No entanto, uma linha demarca seu distanciamento dos outros através de uma violência simbólica extrema da qual muitas vezes o sujeito é, ele mesmo, ignorante.
Se a desfiguração não é uma deficiência, uma vez que ela não invalida nenhuma competência física e moral da pessoa, ela se torna uma a partir do momento em que ela suscita um tratamento social cheio de cuidados e distanciamentos. A desfiguração é uma deficiência da aparência, ela salta aos olhos. Ela altera profundamente as possibilidades de relações. Não somete ela bloqueia parte das relações sociais das quais o indivíduo poderia se beneficiar se seu rosto não fosse destruído, mas ela lhe impõe, igualmente, viver como se fosse uma representação, uma infinita fonte de curiosidade para todos aqueles que cruzam o seu caminho. Toda saída é acompanhada de múltiplos olhares, frequentemente insistentes. Essa atenção é, de tal modo virulenta, que ela se renova a cada encontro de olhares. Isabelle Dinoire fala sobre esse assunto e lembra da crueldade da reação de crianças ao lhe observarem antes de sua cirurgia quando deveria usar uma máscara, na rua. No entanto, Dinoire afirma que os adultos também não sabiam como lidar com ela. Para o homem ou mulher que tem o rosto disforme, a vida social se torna um palco no qual o menor deslocamento chama a atenção dos espectadores. Etimologicamente, essa palavra, desfiguração, funciona como um estigma, sinal de perda dos direitos sociais mais básicos. Ele retira o indivíduo da comunidade humana.
A pessoa que sofre uma deficiência visível, mobiliza perpetuamente a atenção dos outros. Perder seu rosto, psicologicamente e socialmente, é perder sua posição no mundo. “Encarar” é uma tarefa impossível, que é retomada constantemente. Tal relação sublinha uma dificuldade considerável por conta de fantasmas e medos arcaicos. Essa deficiência da aparência que é a desfiguração, é uma das formas mais cruéis e sutis de exclusão dos rituais de interação. Se nas relações sociais toda pessoa possui a seu favor um crédito de confiança, aquela que possui um rosto destruído, é afetada por um crédito negativo que impossibilita sua aproximação. Tudo isso se passa subtilmente através de não ditos, de forma discreta, mas eficazmente cria, através dos olhares e das dificuldades que essas pessoas passam a ter para se beneficiar de relações cotidianas, desde as mais banais, evidenciam que ela deve lutar para conquistar seu lugar diante do constrangimento que suscita diante daqueles que não estão habituados ainda a sua presença. A pessoa desfigurada modifica toda situação pública na qual é exposta, por isso desenvolve estratégias de discrição evitando transportes público e lugares muito movimentados. Muitas preferem não sair de casa. Provisória ou permanentemente, elas vivem uma privação simbólica de sua relação com o mundo que somente uma mobilização total pode reconstruir. Se o rosto se confunde com o ser, sua alteração é ferir o ser, é como se houvesse uma profanação de si mesmo[18]. O sagrado toma forma de abjeção.
Sob condições normais da vida social, uma ritualização circunscreve as ameaças suscetíveis de ir de encontro ao desconhecido. Sinais tranquilizantes balizam a troca. O corpo diluído num ritual se torna imperceptível, absorvido nos códigos que encontramos nos outros, como num espelho, suas atitudes e imagem não surpreendem. Um apagamento ritualizado do corpo se impõe[19]. Aquele que, de maneira deliberada ou a contragosto perturba os rituais de integração, suscita vergonha ou angústia. As arestas do corpo ou da voz atrapalham as trocas. O desconhecido não pode ser ritualizado. A regulação fluida da troca é interrompida, o corpo não é mais ligado ao ritual e torna-se difícil negociar uma definição mútua de interação fora das situações habituais.
A desfiguração priva o indivíduo de sua plena identidade pessoal e social. Ela o transforma em um sr residual, problemático, que deve aprender a lidar com o olhar dos outros e a prevenir-se contra eles. As representações sociais que levam `s interações também são desfiguradas. Um “jogo” interfere nesse encontro, produzindo angústia e mal estar. A incerteza da definição da situação não nos poupa. Todo encontro é uma nova prova de fogo, provocando dúvidas quanto a maneira que será acolhido e se será respeitada sua dignidade. Todo indivíduo, cuja integridade física é preservada, tende a evitar infligir uma sensação desagradável.
A pessoa atingida por esse mal passa a ocupar um estatuto intermediário, liminar. O mal estar que esse indivíduo provoca é resultado da falta de clareza que o cerca. Ela não está doente nem em boa saúde, não está morta, nem plenamente viva, não está fora da sociedade nem dentro, por sua vez é impossível identificar um rosto que salta aos olhos, mas essa pessoa não possui mais sexo. Sua humanidade é evidente, e ao mesmo tempo ela não se encaixa na ideia habitual de humano. A sociedade responde com ambivalência à ambiguidade da situação, ao seu caráter permanente e elusivo. Desconforto a ritualizar envolto em constrangimento. Sob tais circunstâncias a discrição é um privilégio banal, o sonho do Homem Elefante (Elephant Man) de se perder no anonimato da multidão.
A impossibilidade de se identificar fisicamente é para ele a origem dos preconceitos que encontram homens e mulheres desfigurados. A alteração é transformada socialmente em estigma. A imagem do outro não é mais uma janela para a sua própria imagem. Pelo contrário sua aparência intolerável coloca em xeque sua identidade sublinhando a fragilidade da condição humana e a precariedade inerente a toda vida. A pessoa desfigurada nos lembra cm sua presença, o imaginário do corpo mutilado que assombra nossos piores pesadelos. Ela cria uma zona de turbulência na segurança ontológica que garante a ordem simbólica. Reações à sua presença tecem uma sutil hierarquia do medo, elas se classificam pelo distanciamento aos padrões da aparência física. Quanto mais visível e surpreendente é a deficiência (um corpo deformado, tetraplégico ou um rosto desfigurado, por exemplo), mais ele suscita uma atenção social indiscreta que vai do horror a surpresa e separa claramente as relações sociais.
Transplante de Rosto
Neste contexto doloroso, mesmo se o transplante for “somente” da região triangular, nariz-lábios-queixo, um transplante de rosto é também uma cirurgia dos sentidos. No estado atual da medicina é uma intervenção transgressiva, extremamente arriscada. No caso de Isabelle Dinoire, nenhuma outra intervenção poderia alcançar uma solução viável para que ele reencontra-se, algum dia, seu status no meio social. Pior seria, sem dúvida, ter de continuar a viver como uma lacuna no lugar de seu rosto, excluída definitivamente dos sentidos e relações com outros. Amputada de uma parte essencial do estabelecimento das relações como o mundo, ela sofre, no duplo sentido do termo, de não poder se encarar nem se reconhecer nessa figura do horror que se tornou sua face. Desse modo, não se trata simplesmente de salvar a vida de um paciente, mas de restaurar seu lugar no mundo e recuperar sua vontade de viver. A cirurgia representa um retorno simbólico ao mundo. No entanto, transplantar um rosto consiste também em transferir os fundamentos de uma identidade. Seguramente, a pessoa que sofreu esse trauma já se encontra em meio a uma situação de abjeção social, e já sentiu tremer suas estruturas identitárias no momento do acidente. Mas o transplante representa um segundo e avassalador terremoto, ao mesmo tempo em que simboliza a esperança através dessa intervenção.
Há no transplante de rosto uma dupla transgressão. Trata-se de retirar uma parte do rosto de um doador morto. Sabemos do valor simbólico referente aos órgãos. Se esses doadores ou suas famílias aceitam a retirada de rins, por exemplo, existem reticência quando se fala do coração ou até mesmo dos pulmões. A retirada das córneas também provoca problemas significativos hoje, já que um número considerável de famílias se recusa de lhes “doar” para não privar o defunto de sua visão e também de seu rosto. Nas nossas sociedades é comum representar e associar os olhos a uma “janela da alma”. Tais representações falam de mais ou menos humanidade em certos órgãos[20]. Nesse contexto a retirada de tecidos do rosto é frequentemente percebida como uma profanação do morto, embora a reconstrução faça secundariamente o seu papel.
A segunda transgressão está no fato de viver a partir do transplante com o rosto de outra pessoa, de tomar emprestado seus sinais identitários mais marcantes e se encontrar numa situação de alteridade familiar a cada vez que observa seu reflexo em um espelho ou vitrine, como se alguém tivesse tomado posse de si mesmo no sentido mais íntimo e singular. Receber o rosto de um outro nos expõe a um não reconhecimento e a incapacidade de se olhar sem perceber a exposição de um “outro”, ainda que colado ao “eu”. Certamente não se trata de uma duplicação do rosto emprestado, o tecido se modela a estrutura óssea daquele que recebe o transplante, mas ele não encontra seu rosto anterior, nem é imune ao choque de alteridade que lhe impregna. Esse rosto não será aquele que tinha antes. Eventualmente, para alguns cujo transplante ocorreu logo após o nascimento ou ainda na primeira infância, esse rosto poderá ser o seu primeiro rosto. O risco de se sentir “possuído”, “despersonalizado” é tangível para personalidades frágeis e que não tinham suficientemente refletido anteriormente – essa é uma das complicações psicológicas do transplante. Perdendo sua face, como no caso de Isabelle Dinoire, perdeu-se a boca, lábios, nariz, sorriso e ao final do transplante ela come com a boca de outra pessoa, sorri com um outro rosto, beija com outros lábios. É importante se adaptar do ponto de vista cirúrgico, com a ajuda da fisioterapia, mas também é preciso se adaptar no plano simbólico, para que nesse “rosto de um outro” possamos nos reconhecer gradualmente. É daí que vem a importância de uma equipe médica e de acompanhamento psicológico sólida, além é claro, da importância suporte familiar para que esse processo tenha sucesso. No final desse percurso existe a possibilidade de um renascimento, que esse processo se torne uma iniciação: “Eu retornei ao planeta dos homens, disse Isabelle Dinoire. Esse mundo pertence aqueles que tem um rosto, um sorriso, expressões faciais que permitam comunicar… Eu posso ver isso agora. Eu vivi , ao mesmo tempo, um pesadelo e uma aventura dos quais ainda não sei bem o que dizer”.
Abertura
Evidentemente, a percepção do rosto de um idoso não revela uma natureza, mas uma avaliação social e cultural que cada um adere a sua maneira. A lista de sociedades que percebem a velhice como algo positivo, sinal de dignidade, valor simbólico no horizonte do grupo não é longa. Todos nós sabemos que o homem que envelhece é também a criança que foi um dia: o mesmo rosto, a mesma surpresa e fascinação diante do mundo. Da criança ao velho existe uma continuidade desconcertante, uma semelhança que nunca foi desfeita. Somente nós sabemos que quando morremos muito velhos, morremos com o rosto de nossa infância.
O percurso segue por um longo período de cristalização simbólica do conjunto de valores sociais tanto para o melhor quanto para o pior. Ambos falam do sagrado, do puro e do impuro e sua alternância dependendo das circunstâncias. A relação com o rosto é uma relação que se dá sob o mesmo registro das relações com o sagrado. Com toda a ambivalência que carrega, da fascinação ao terror, do amor ao assassinato. O mesmo indivíduo conhece ao longo de sua existência as diferentes intensidades que testemunham seu valor junto de um espaço social no qual ele é submedido a apreciação de outros. Perder o rosto em práticas de racismo ou desfiguração é perder a existência, na medida em que perder a face é profanar o centro de si mesmo. Ao inverso, o amor ou o reconhecimento inventam um rosto a outrem, só poderá ser destruído por uma mudança no olhar que o construiu. O sagrado de uma face começa e se estabelece nos olhos do outro, na projeção de sentidos que o coloca ou priva do mundo. Este é o verdadeiro teste[21].
[1] Georg Simmel, La signification esthétique du visage, in La tragédie de la culture, Paris, Rivages, 1988, p 140
[2] Para uma discussão mais aprofundada sobre o individualismo e a invenção ocidental do corpo, consulte David Le Breton, Antropologia do corpo e modernidade, Petropolis, Vozes, 2011; sobre a invenção relativa do rosto ver D. Le Breton, Des visages, Essai d’anthropologie, Paris, Métailié, 2004.
[3] Kôbô Abé, La face d’un autre, Paris, Stock, I987, p. 43.
[4] Gustave Flaubert, L’éducation sentimentale, Paris, Folio, p. 295. Essa obra remete também ao trabalho de Jean Rousset, Les yeux se rencontrèrent: la scène de première vue dans le roman, Paris, José Corti, 1984.
[5] Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, Paris, Livre de poche, p. 73 et 78.
[6] Michel Tournier (éd.), Miroirs: autoportraits, Paris, Denoël, 1973, p. 146.
[7] Marcel Proust, Du côté de chez Swann, Paris, Livre de poche, p. 347-348.
[8] Rudolf Otto, Le sacré, Paris, Payot, 1969.
[9] Uma crítica da fisionomismo e a morfopsicologia pode ser vista em D. Le Breton, Des visages, op. cit
[10] Kôbô Abé, La face d’un autre, Paris, Stock, I987,p. 79 .
[11] Segunda a etimologia, personne, pessoa em francês, vem do latim persona – que designa uma máscara de teatro.
[12] R-M. Rilke, Les cahiers de Malte Laurids Brigge, op.cit., p 95 sq. Sobre a antropologia da máscara ver D. Le Breton, Des visages, op. cit.
[13] Dicionário Le Robert, Paris, 2000, p. 2152.
[14] Os trechos do testemunho dado por Isabelle Dinoire foram retirados do Jornal Le Monde do dia 7 de julho de 2007.
[15] Albert Cohen, Le livre de ma mère, Paris, Gallimard, 1954, p 89.
[16] Robert Jaulin, La mort Sara, Paris, 10-18, 1971, p 167 sq.
[17] Kangni Alem, Marques du corps en Afrique subsaharienne, permanences et métamorphoses, in C. Falgayrettes-Leveau, Signes du corps, Paris, Musée Dapper, 2004, p. 263
[18] David Le Breton, Des visages, op. cit., p 296 sq.
[19] Sobre este assunto ver David Le Breton, Antropologia do corpo e modernidade, op. cit.
[20] Sobre essa abordagem antropológica sobre retirada e transplante de órgãos ver D. Le Breton, La chair à vif. De la leçon d’anatomie aux greffes d’organes, Paris, Métailié, 2008.
[21] Para aprofundar diversos pontos abordados nesse artigo, recomendo a leitura de D. le Breton, Des visages, op. cit.
[i] NT.:As expressões originais utilizadas pelo autor não correspondem a ditos populares da língua portuguesa. No texto original o autor utiliza os seguintes termos: perdre la face, faire mauvaise figure, ne plus avoir figure humaine, se faire casser la figure ou la gueule.
[ii] NT.: O dito popular original é “n’a plus figure humaine” não tem equivalência em português.
[iv] N.T.: São exemplos utilizados pelo autor os apelidos: « « Gueule de fétiche », « larmes éternelles », « la fille à la voie ferrée »
Sensacional essa postagem.
Adalberto
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