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A Necessidade da Corrupção, por Shiv Visvanathan

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Propaganda criada por movimento anti-corrupção na Índia

Shiv Visvanathan (Jindal School of Government and Public Policy)

Tradução de Alberto L. C. de Farias

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I

Lembro-me de conhecer um estranho jesuíta chamado Rudy Heredia em uma conferência em Mumbai há mais de dez anos. Ele me perguntou sobre as cibernéticas do sofrimento. A questão me intrigou e os termos me fascinaram. Finalmente senti que o sofrimento precisava de mais do que uma cibernética, mas, brincando com a ideia, percebi que a ideia da cibernética como uma metáfora para os sistemas de comunicação e controle era mais relevante para entender a corrupção como um fenômeno sistêmico, em termos de conectividade, significância e desempenho comunicativo.

A corrupção inspira uma correção política. Alguém é forçado a vê-la como patológica e não lógica; na verdade, existe uma teologia que a define como eticamente errada, economicamente prejudicial e politicamente corrosiva. Toda a sociologia da modernidade, de Max Weber aos documentos do Banco Mundial, passando pelos relatórios da Transparency International, vê a corrupção como uma violação da modernidade, do desenvolvimento e da democracia. A corrupção é a única doença que é perpetuamente epidêmica, que todos buscam reformar e erradicar. A pergunta que poucos se fazem é por que, apesar de todos os movimentos contra a corrupção, as reformas não deram certo? Por que essas reformas se tornam um monte de adubo para mais e mais corrupção?

II

A literatura sobre corrupção é uma reminiscência, de algum modo, da literatura sobre o Holocausto. Quando o sociólogo polonês emigrado, Zygmunt Bauman escreveu seu livro clássico, Modernidade e Holocausto, afirmou que, para ter a história certa, é preciso ter as categorias corretas. No caso do Holocausto, Bauman argumentou que é preciso começar não com o que a sociologia pode dizer sobre o Holocausto, mas com o que as narrativas do Holocausto contam sobre o estado da sociologia. Durante décadas, a ciência social simplificou o holocausto em um problema judaico ou um problema alemão, ou reduziu tudo à patologia, de modo que a cotidianidade do Holocausto não poderia ser compreendida. A sociologia, na verdade, torna-se uma maneira de higienizar a si mesma contra a verdade do Holocausto.

As narrativas sobre a corrupção criam problemas semelhantes. Para o modernista, a corrupção é uma transição a partir de uma sociedade tradicional. Para um ético, a corrupção é um fracasso da moral individual. Para os tecnocratas, a corrupção é um problema esperando uma correta reparação. É visto como um fenômeno temporário, uma ressaca de uma sequência de desenvolvimento atrasado. A modernidade autêntica, eles argumentam, deve sanar a corrupção. Para cruzados políticos como Anna Hazare, tudo o que a corrupção exige é a legislação política correta e a dose correta de vontade política. Para a ética, bem como para a engenharia social, a corrupção é um problema à espera de ser resolvido.

No entanto, um sociólogo que olha o destino das reformas ou os grandes arquivos de relatórios de corrupção parece chegar a outra conclusão. Em primeiro lugar, todo ciclo de reformas apenas acrescenta um epiciclo à corrupção. A reforma parece ser uma pilha de compostagem onde as histórias de corrupção parecem não ter fim. Os primeiros passos de uma reforma legislativa são claros e, em seguida, o cansaço se instala. Depois de um tempo, as coisas voltaram ao normal e o cruzado foi esquecido ou juntou-se discretamente ao clube. Em terceiro lugar, a corrupção gera uma textualidade interminável, uma máquina perpétua de arquivos de reforma que regurgitam as categorias antigas e, em seguida, retornam ao status quo. É quase como se as ondas de reforma fossem necessárias para recarregar a potência da corrupção. Cada ano produz-se um novo relatório do Banco Mundial ou da ONU, cada ano inaugura-se um novo relatório da Transparência Internacional sobre classificações de corrupção, mas a corrupção prossegue triunfantemente como antes.

O que eu quero dizer é que o problema da corrupção não pode ser enquadrado apenas como uma mentira ou como uma patologia. Os relatórios sobre modernização e reforma se recusam a enfrentar a mentira sobre si mesmos porque a corrupção prova que a modernização produz uma falsa teologia da corrupção. A natureza moralizadora da sociologia modernizadora não pode aceitar a necessidade da corrupção. Para argumentar paradoxalmente, a corrupção é uma mentira cuja verdade veio para ficar. Deixe-me ser mais evidente. Quero discutir a necessidade da corrupção. Eu quero realizar este exercício como uma experiência de pensamento nas maneiras irônicas como olhamos para a sociedade. Não é que não podemos combater a corrupção. É apenas que a forma como definimos e a luta contra a corrupção a perpetua como um sistema. Ao personalizar e demonizar a corrupção, a distorcemos. Precisamos olhar a corrupção no olho e não podemos fazer isso através das lentes dos direitos humanos, da teoria da escolha racional ou da teoria da gestão. Na verdade, a ironia é que a corrupção perpetuamente distorce sua própria lógica como uma estória. A corrupção, como um polvo esperto, desencadeia a tinta do escândalo para desfocar sua essência paradigmática.

III

Quero começar argumentando que a corrupção é uma forma de conhecimento. É uma forma de conhecimento que define o acesso. A corrupção é uma etnociência do poder moderno. Se olhamos para o Estado moderno, o aparato da burocracia, vemos o distanciamento e a indiferença. A burocracia moderna fala uma língua indiferente às pessoas. O funcionário como intermediário, no entanto, o traduz em dialetos que as pessoas podem entender. A corrupção é uma forma de codificar e decodificar burocracias ao precificar o conhecimento e o acesso a ele. A economia da corrupção é a primeira grande sociedade do conhecimento. A corrupção define acesso, preço e disponibilidade. A burocracia kafkiana sem sinais se torna agora uma entidade humanizada. Vê-se isso nos dialetos das pessoas em palavras como “contato”, “abordagem” que captura a natureza da entrada. A corrupção começou tanto como um quadro como como uma forma das sociedades civis, as comunidades criaram uma etnociência da gestão para criar acesso aos corredores da modernidade. Sistemicamente, a corrupção define os rituais de acesso ao poder, especialmente nas burocracias.

As narrativas weberianas retratam o que se chama uma Imaculada Conceição ou um imaculado equívoco da corrupção. Uma burocracia é uma encarnação da racionalidade, evocando velocidade, eficiência, previsibilidade, controle técnico e impessoalidade. A burocracia era o epítome da modernidade. Considerou-se como um valor neutro e, portanto, um mero instrumento técnico usado para transportar em formação, fertilizar ou organizar campos de concentração. Como uma arma puramente instrumental, pode ser usado para ajudar o desenvolvimento ou apagar pessoas. O problema que Max Weber não considerou foi o que acontece quando uma burocracia se subverte.

Quero reproduzir o drama diário entre os cidadãos e a burocracia em um sentido sociológico e lê-lo como um fenômeno de duas maneiras. Os cidadãos buscam acesso a ela e a burocracia, como Estado, busca classificar seus cidadãos. O Estado, na aproximação da cidadania, a classifica e mapeia. Dois dos grandes códigos weberianos são a oposição entre público e privado, formal e informal. Nenhuma burocracia pode realizar-se sem essas duas oposições e a corrupção é um processo que surge basicamente quando se confundem essas oposições. A ética e a sociologia parecem legitimar esse exercício classificatório. A oposição entre público e privado é consagrada na modernidade e a corrupção é basicamente o uso ilegítimo de bens públicos para fins privados. No entanto, as duas oposições criam um mundo maniqueísta, um sistema de poder em que as burocracias procuram se perpetuar. Esta distinção entre formal e informal ancora o discurso sobre a corrupção. Mas poucos percebem que 70% da Índia está no setor informal. O formal é o domínio da cidadania, da experiência, dos direitos. O informal é o domínio do menos que cidadão e do menos que burocraticamente formal. Essa assimetria entre vulnerabilidade e cidadania, sua necessidade de acesso e a gramática das burocracias, nunca foi entendida. A burocracia representa os exercícios de um mundo textual. Relida em um sentido hermenêutico, a corrupção pode ser redefinida como o preço que o informal paga ao formal e o oral paga ao mundo letrado ou textual. A corrupção é a tentativa do informal e do privado de lutar com o formal e o público. É uma batalha entre dois dialetos para o poder, para definir a realidade. Enquanto o formal for dominado, a corrupção moderna continuará sendo patológica.

Penso que é preciso reverter a ideia do contrato social que, por ser baseada em direitos, não consegue entender a natureza de nossas sociedades. De fato, entre a ideia de direitos e mercados, nós literalmente parecemos esgotar a imaginação de como reformar a corrupção. Manmohan Singh e, mais cedo Kaushik Basu, mostraram as possibilidades dessa imaginação que vê a corrupção como um mercado com um lado de demanda e oferta, uma transação entre o doador de suborno e o comprador de suborno. A reforma agora procura influenciar os dois lados, seja através de incentivos ou punições. Nesta perspectiva, o suborno é sintomático da doença.

Em nossa análise, o suborno é um fenômeno muito mais fundamental. É estrutural, não transacional. O suborno em vez do voto, é a base do contrato social através do qual a modernidade foi forjada. Para mudar as metáforas, foi uma resolução maquiavélica de um problema hobbesiano. Se alguém olha isso etnograficamente, um suborno é mais fundamental do que o voto e infelizmente tem sido uma forma de troca que antropólogos como Mauss, Lévi-Strauss e Sahlins prestaram pouca atenção. O voto, em um sistema eleitoral, está mais próximo de um suborno, como parte de um potlatch de doação de presentes. Em troca de xales, alimentos, bicicletas, nós voltaremos por um partido para sustentar uma transação chamada democracia eleitoral. Eu quero argumentar que o suborno é um fenômeno mais profundo. Um suborno é um ritual que resiste ao panóptico. O panóptico como sistema de vigilância e controle baseia-se na gramática visual da governança. A corrupção resiste à luz e ao escrutínio. É opticamente velado, prefere sombras e os bastidores. Convoca os sentidos e as identidades de uma maneira radicalmente diferente.

O sistema moderno de corrupção é um desafio à modernidade e às ciências sociais. A modernidade, operando em termos de variáveis padrão, para usar uma expressão telegráfica, limita a corrupção a um mundo onde o coletivo, o nepotista e o patrimonial dominam o indivíduo. A corrupção subverte as ideias de que o indivíduo é o lócus da ética. Aqui, os auto-comportamentos corruptos gostam de uma rede elaborada. Em segundo lugar, isso mostra que a gramática da tradição, reinventada, pode facilitar a construção do Estado. A corrupção, como etnociência, juntamente com a jugaad, enquanto improvisação em condições de escassez, são duas verificações de conhecimento [collations of knowledge] criadas para condições restritivas. A governamentalidade é, agora, o contrato tácito entre a tradição e expressões idiomáticas modernas, que concede a face de Janus da modernidade. Em um nível, fala o idioma do Estado de Direito e, no outro, fala os dialetos da corrupção. A coexistência dos dois mostra também por que a reforma não funciona; na verdade, o que se vê é a complexidade e a cumplicidade. Muitas vezes, testemunham ministros inaugurando seminários sobre corrupção, criando uma fachada de reforma das estruturas reformistas que, por sua vez, cria novos mercados através de auditoria de regulação e prestação de contas. Quanto mais exige uma reforma, mais extrativo o sistema se torna. A fachada das instituições promete uma reforma da corrupção, ao passo que a dinâmica [social] alimenta a ajuda e a reforma dentro de uma máquina de corrupção. Como um sacramento invertido, está imerso no ritual. Um suborno exige sua própria etnologia. Cada suborno remonta ao suborno original que forjou a modernidade. O suborno era o ritual de entrada, pelo qual o informal, o oral e o marginal negociavam os primórdios da cidadania com o Estado. Paradoxalmente, o suborno na criação da modernidade, se apropriou em partes da própria modernidade.

A corrupção não é uma mera transação sobre os custos. É uma teoria da subversão através da transação. O moderno pareceu familiar ao tradicional através do intermediário falando os dialetos do nepotismo e do parentesco. A tradição parecia acessível ao moderno através do ritual de entrada. É preciso entender os processos mais profundos de ritualização e iniciação.

O primeiro é a expurgação [bowdlerization]. A expurgação é uma prática de simplificação, de reducionismo implacável, que capturou ou procurou captar a essência de um fenômeno complexo, estrangeiro ou novo. A expurgação corrompe a natureza da modernidade. O expurgador simplifica para fornecer acesso ou familiaridade. Ela faz parte do tutorial da mentalidade colegial que assombra a educação e a modernidade. Optamos por fenótipo do que pelo genótipo, resumos a leitura e as manchetes às essências. A expurgação é barata, populista e cria uma rede de familiaridade, que reforçamos através do parentesco e do nepotismo. A expurgação é uma maneira instrumental de se apropriar da realidade, no qual o acesso e a presença se tornam mais importantes do que o conhecimento e a apreciação. A burocracia, como o oeste moderno, está disponível como manual de instruções. Quem quer Shakespeare quando pode comprar um certificado de língua inglesa? A corrupção capta, explora essa ambivalência em direção à modernidade, transformando-a em uma empresa sedutora. A corrupção é uma re-colonização parcial da modernidade através dos idiomas do patrimonialismo.

A subversão, através da tradução, precisa de consolidação. A corrupção deve ser vista como um processo coletivo, como uma cadeia do ser. Há uma troficidade no ritual do suborno. A ideia de troficidade na biologia permitiu uma cadeia de ser de criaturas, todas as quais viviam do mesmo pacote de energia. Poder-se-ia começar com o homem, prosseguir ao lixo consumido por carniceiros tanto humanos como animais, e depois seguir ao escaravelho e a outros insetos que demandam menos energia de um sistema. Todos eles vivem do mesmo pacote de energia, em diferentes níveis. Dada a natureza trófica do processo, olhar para a ética individual é ingênuo.

IV

Vista de forma diferente, a corrupção é um problema estrutural que a modernidade cria para determinadas formas de vulnerabilidade. Três textos sociológicos procuram compreender indiretamente isso. Anton Blok, o sociólogo holandês, escrevendo sobre a máfia da vila siciliana, afirmou que a máfia começou como interlocutores, intermediários, tradutores entre o Estado modernizador e o campesinato. A máfia segurou as duas mãos num espírito de empreendedorismo e, em seguida, apertou seu controle letal em ambos. Aqui, a corrupção é apresentada como um caso de modernidade incompleta, um exemplo distorcido de resolução de problemas.

Robert Merton, em seu estudo clássico sobre o chefe do partido, mostra que o chefe executa uma função. Ele traduz as exigências da burocracia para o migrante étnico, ele humaniza o bem-estar. O chefe do partido é o rosto humano da moderna máquina de bem-estar. Merton trata o chefe do partido como um fenômeno passageiro, onde a corrupção facilita a modernização.

Ambas as peças clássicas de escritos sociológicos compreenderam o papel que os processos apelidados de corrupção desempenharam. Facilita a entrada, assegura a sobrevivência a um preço. Em um mundo hobbesiano, ele fornece um kit de sobrevivência, um nicho ecológico a um preço exorbitante. Por exemplo, os desabrigados, pelo menos, conseguem uma casa através do tubarão que aluga a rua pela direita. Também expressa isso em idiomas e dialetos locais.

O terceiro ponto que gostaria de citar é sobre o papel da corrupção nas instituições totais. Max Weber, em uma palestra sobre o fracasso da revolução de 1905, afirmou que, na era da eficiência autoritária, a liberdade reside nos interstícios de ineficiência e a corrupção é uma forma de ineficiência. O trabalho de Erving Goffman sobre as Instituições Totais, e até mesmo as etnografias dos campos de concentração, mostraram que a corrupção na instituição total permite a ecologia do informal e, assim, garante os rudimentos da sobrevivência. A corrupção muitas vezes fornece o espaço ecológico para a liberdade em um sistema autoritário.

Entre Blok, Merton e Goffman, gostaria de sugerir que a corrupção é uma tentativa de alterar a cibernética desse sistema homem-máquina que chamamos de burocracia estatal ou moderna, modificando sua linguagem, seu idioma, seu simbolismo, seus processos de controle . É um encontro recíproco, onde os impostos modernos, o tradicional por exercício dos direitos e os tradicionalmente vulneráveis, criam resistências ao poder. A assimetria é reconhecida e ainda preferida. As consequências são muitas vezes jogos de soma zero.

Provavelmente, a pior forma de extorsão que se pode imaginar é o trabalho forçado. Em termos de economia política, o trabalho forçado é o valor extraído que o tribal ou o camponês paga a um senhorio por emprestar um saco de arroz, ou uma soma de dinheiro. O trabalho forçado é o preço que uma economia de troca paga uma economia monetária, ou uma sociedade oral paga uma de escrita para uma transação mínima. É o processo extrativista de entrada em um sistema monetário onde o tribal é reduzido à vida desnuda. O trabalho forçado revela os limites extrativistas da economia informal. A corrupção é o meio da cidadania informal, seja um haftha pago a policiais e tubarões terrestres. É o preço extrativista que cria patologias da economia informal. Contudo, a corrupção em um sistema estrangeiro assimétrico, pelo menos, permite a sobrevivência.

Central para essa forma de transação é o intermediário. O intermediário é o mediador que facilita transações em diversos sistemas que convertem burocracias em transações de mercado, onde a informação, o poder, o acesso, o tempo são todos comoditizados. Na Índia, esse papel foi desempenhado pelo dalal e pelo tout. O dalal era um papel mais tradicional, extrativista, coercitivo e ainda sustentável. O tout é um dalal em um sentido não ritualizado. Ele não tem um papel institucional. Visto por meio de uma economia burocrática, ele facilita o êxito, o acesso, a entrada e a resolução em uma burocracia estrangeira, especialmente em uma sociedade que é igualmente marginal e analfabeta. A corrupção é um ritual e o suborno, o preço que o pária, o marginal, paga pela cotidianidade temporária da cidadania, o sistema moderno não permite que o vendedor ambulante, o migrante, o ladrão, o nômade, o forrageador tenham. A corrupção, fornecendo acesso ilícito à água, à eletricidade, ao espaço cria uma forma temporária de cidadania como a espera marginal a ser regularizada.

O intermediário, como guardião de portões, tem encarnado muitas vezes a coerção e o empreendedorismo da corrupção. A corrupção é uma tentativa de criar uma escassez em torno de direitos e, em seguida, criar uma economia de serviços para atendê-lo. As pessoas pagam, não se importam pagando, porque essa é a única forma de acesso. Um suborno, mais do que o voto, torna-se o primeiro ato de cidadania no momento em que o Estado é inacessível ou difícil de acesso. A corrupção é o preço básico da cidadania, e o marginal e o analfabeto pagam por uma cidadania simulada. A corrupção cria uma esperança de temporalidade que marca a liminaridade da cidadania na Índia.

Uma vez que vemos a corrupção como estrutural e normal, é preciso enfrentar a escala da atividade. A corrupção transforma o Estado em uma burocracia de bens comuns invertidos [inverted commons]. O Relatório Kripalani, um dos primeiros relatórios sobre corrupção nas ferrovias, mostra como as ferrovias foram fragmentadas e despedaçadas em mercados separados para almofadas, lâmpadas e cabos elétricos e acessórios de banheiro. Durante suas várias visitas de campo, o comitê Kripalani foi recebido por protestos pedindo que voltasse para casa. O que o comitê elaborou com detalhes etnográficos e uma pergunta inocente tornou-se um fato da vida. Entre o partido e o Estado, todo patrimônio da natureza, do carvão, das florestas e da terra, foi fragmentado em blocos de leilão e vendido a vários licitantes. Na verdade, essa revelação surge de forma assombrosa na fraude forrageira, onde a culpa é uma cadeia de ser. Para usar uma metáfora sócio-biológica, o homem corrupto não é um cupim individual; é toda a “economia de cupim” que está corrompida. A corrupção não é mais sobre a ética individual, subornar ou não subornar, porque a corrupção é estrutural. É vertical e horizontalmente integrada. Há troficidade onde diferentes grupos na ecologia da corrupção reivindicam uma seção diferente dos despojos. Não é um indivíduo, mas uma rede que deve ser sustentada e alimentada. Uma razão pela qual não adianta prender um indivíduo isolado é que a corrupção envolve toda uma cadeia de complexidade. É quase como um sistema [econômico] jajmani no seu espelho de obrigações. Eu acho que somos ingênuos por chamar Coalgate, 2G, Common Wealth Games ou Jagan Mohan Reddy por fraude. Na verdade, não há senso de escândalo ou indignação. Carvão, remédios, florestas, barragens, de fato, cada recurso natural principal e cada ação concertada de políticas de desenvolvimento faz parte da normalidade da construção do Estado.

V

O que é preciso compreender são os estágios através dos quais a corrupção evolui. A corrupção começou como uma necessidade, uma resposta à falta, seja a falta de conhecimento ou a falta de acesso. Ela realizou uma necessidade. No entanto, a natureza da corrupção como uma economia de serviços mudou ao longo dos anos. Ela respondeu à escassez criando mercados. No entanto, a gramática de cada estágio foi diferente.

Pode-se discernir diferentes estágios na economia política da corrupção. Em primeiro lugar, houve a criminalização da política, em que a política, através da corrupção, ofereceu oportunidades de acesso ao espectro que vai desde a casta dominante até os oprimidos. A democracia eleitoral e a política tornam-se processos de empreendedorismo. Na primeira década, ainda havia uma separação de poderes. O político e o coronel [goon] ou gangster ainda eram entidades separadas. A política do eleitoralismo combinou violência e finanças como os dois braços da atividade política. O coronel tornou-se político. Isso levantou um alvoroço liberal sobre o número de políticos que tinham, contra si, acusações de assassinato ou violação. Foi uma etapa em que nos orgulhamos da nossa democracia, mas não examinamos a economia política do eleitoralismo. Demorou décadas antes de percebermos que a economia política do eleitoralismo poderia ameaçar o fundamento da democracia e da governança. A apropriação da democracia através da corrupção foi provar uma das ironias da política indiana, como Jagjeevan Ram admitiu casualmente; tudo o que se precisou foi de uma ordem de aviões Harrier para financiar eleições a nível nacional.

A criminalização da política deu um segundo passo na criminalização do Estado. A corrupção é uma forma de construção do Estado. É um processo que, por sua vez, incorpora três etapas. Em primeiro lugar, invoca a inversão dos bens comuns e a consignação da natureza ao Estado. O Estado simplesmente se torna um bloco de leilões, onde a natureza – as florestas, as minas, os rios – é espoliada por prestadores de serviço. O Estado torna-se então um bem comum invertido, que está disponível ele mesmo para exploração. O desenvolvimento em muitos países torna-se uma forma de explorar o Estado como agregador de ativos. Finalmente, o próprio Estado se torna uma agência criminosa que suprime outras formas de criminalidade em nome da ordem. Os fascistas sob Mussolini suprimiram a máfia para indicar que eles seriam a fonte do crime. Na Índia, o trivial roubo sob situação crítica e a dissensão foram criminalizados, enquanto Sanjay Gandhi tornou-se o único agente para o Estado. A emergência sinalizou a criminalização do Estado sob Sanjay Gandhi. Ele abriu a desinstitucionalização de todas as principais estruturas, como bancos, tribunais, meios de comunicação, para os partidos, destruindo a base normativa de nossas instituições.

O terceiro passo é uma forma interna de reestruturação. Seguindo o trabalho de Mary Kaldor, devemos chamá-lo de barroquização [baroquization].

No seu Baroque Arsenal, Kaldor observa que os generais sempre lutam a última guerra. A principal arma da Segunda Guerra Mundial foi o tanque e os principais investimentos foram realizados para melhorá-lo. Infelizmente cada vez mais está sendo gasto para capacitá-lo cada vez menos. Barroquização é um processo pelo qual um sistema torna-se mais ornamentado, complexo e menos sensível às entradas.

O sistema de corrupção é uma entidade barroca. Ele oferece cada vez menos quanto mais é alimentado. A reforma, de fato, aumenta a barroquização, tornando a corrupção um processo mais complexo. Nos últimos anos do socialismo, a corrupção foi barroquizada em um conjunto de extensas quotas-rajs. Havia uma sensação de que os mercados estavam entupidos. A liberalização tornou-se um processo em que novos mercados tiveram que ser criados para que a corrupção se expandisse. Foi a máfia indiana que mudou-se para Dubai, criando conglomerados que incluíam o terror, o match fixing, as companhias aéreas, e Bollywood. Dawood Ibrahim foi apenas uma metáfora para esse espectro de atividades.

A corrupção por este tempo era vista como uma forma de governança, composta por sistemas de conhecimento e uma economia de serviços. A linguagem das expectativas tornou-se cotidiana em seu idioma; as palavras como “contact hai”, “approach”, “Kuch oblige kar saktha hain” indicavam que se tornou um novo sistema jajmani, foi o serviço corrupto seu cliente a um preço. Para muitos, forneceu um sistema de familiaridade, entrega, até velocidade e acesso a um sistema burocrático alienígena. Num sistema democrático, as eleições eram vistas como uma circulação da corrupção. Muitos políticos Dalit e OBC, quando questionados sobre a corrupção, costumam observar “é a nossa vez agora”. A corrupção torna-se uma forma de justiça distributiva para políticos como o Mulayams, o DMK e a oportunidade extrativista de Mayawati. A corrupção torna-se parte de um novo contrato social onde, entre suborno e voto, criamos uma nova economia política. Na verdade, muitas vezes pergunta-se o que é a economia ou a sociedade que instituições como a Transparência Internacional estão classificando. Pergunta-se que número revela sobre tais processos.

O meu argumento é que nós reconhecemos a cotidianidade da corrupção. Nossos jornais criam a fachada de um jogo de moralidade em torno do governo, que gera uma divisão entre a parte pública e os bastidores do palco. A parte pública do palco é o conteúdo dos scripts de governança; os bastidores desvendam a cultura da economia da corrupção. A natureza esquizofrênica da governança moderna é o que precisamos reconhecer. Na verdade, está presente na forma como dirigimos nossas cidades. Nossos planejadores falam sobre as favelas como fonte de corrupção. Os jornais relatam como a economia informal invoca a formal para a eletricidade, a água. No entanto, se olharmos para a cidade não planejada, o formal não pode durar sem o informal, porque é o último que oferece serviços baratos que permitem que a classe média da economia formal exista. Uma favela pode ser uma fonte de crime, mas também é fonte de empregados domésticos, toda a rede de vendedores ambulantes, catadores, que ajudam a sustentar a economia formal. A ironia é que o informal, a serviço do formal, também aceita o contrato de dupla linha, onde fornece serviços baratos ao ser interpretado como potencialmente criminoso. Nossos empregados domésticos prestam serviços baratos enquanto vivem em barracos ilegais. Nossos vendedores fornecem vegetais baratos enquanto pagam hafta aos policiais. Há uma dupla separação aqui que devemos reconhecer. Esta é a corrupção da economia informal, cheia de uma série de micro-transações mediadas por policiais e funcionários, que é sobre a natureza dispendiosa da cidadania para transientes, marginais, onde a corrupção é o meio de extrair o excedente da subsistência e sua necessidade desesperada de direitos formais. Este é o mundo do micro-poder, a corrupção de pequenas troficidades. Isso trata dos julgamentos da cidadania.

Existe uma segunda camada de corrupção onde a corrupção é uma gramática da construção do Estado. Esta é a corrupção em uma escala maior, é uma exploração a céu aberto do Estado e dos seus recursos por grupos de interesse de vários tipos.

A violação do Estado e de seus ativos (Fase 2) e a extorsão do cidadão (Fase 1) estão ligadas por dois procedimentos dinâmicos e modernos. O primeiro é o desenvolvimento e o segundo é a democracia eleitoral. Essas duas máquinas se conectam e impulsionam o sistema. O desenvolvimento é uma forma de criar novos mercados para a corrupção, e a globalização é apenas uma extensão do desenvolvimento por outros meios. As eleições proporcionam uma circulação de corrupções e permitem que a corrupção seja uma forma de justiça distributiva.

O que temos é uma máquina de corrupção e uma máquina política ligada à economia formal. A ideia de corrupção é o sucesso diferencial entre dois sistemas sobrepostos.

[…] A escala da economia de corrupção é incompreensível, não apenas em números, mas na variedade de serviços que ela contém e oferece. É quase como se a corrupção, como uma economia, como um modo de vida, reivindicasse a maioria dos terrenos do ser humano.

VI

Meu argumento pode ser apresentado em termos simplificados. Eu acredito que a corrupção é uma forma distinta de troca, como o presente, como o contrato. Tem sua própria lógica, merece uma antropologia distinta, e reduzi-la a um fragmento ou uma patologia diminui o seu ser.

A corrupção é uma forma de anti-bens-comuns, ou de um bem comum invertido, que cria novos rituais de acesso e preços. Ela merece ser entendida como um sistema de conhecimento e uma economia de serviços com uma etologia distintiva de rituais.

Reformas que buscam caçar algumas pessoas, no estilo de [Arvind] Kejriwal, ou criar escolas de verão para erradicar a corrupção, ao estilo do Banco Mundial, não conseguem entender as suas raízes culturais. Nos termos de Karl Polanyi, a corrupção é um sistema integrado, tanto como ecologia, quanto como economia e sistema de crença. Portanto, é preciso um senso de reforma além dos modelos gerenciais, dos modelos punitivos e de mercado de incentivo. Para reformar a corrupção, é preciso procurar mudar mais do que a corrupção.

Uma vez que a corrupção é um anti-comum, é preciso procurar recuperar a ideia de um bem comum em uma economia de mercado. Um bem comum era uma maneira de resistir aos cercamentos. A economia da corrupção procura recolonizar as burocracias como um conjunto de gabinetes restritos.

Combater a corrupção exige um retorno ao bem-comum como forma de conceituar a vida. Os bens-comuns procuram desmercantilizar a vida, criar zonas onde a mercantilização não opera ou opera de forma frouxa. O retorno da natureza ao sistema constitucional, não como um recurso, mas como forma de vida, é o primeiro passo para a reforma da corrupção. Para redimir a violência feita ao informal, é preciso o casulo libertador dos bens comuns, que deve ser alargado da natureza às ideias. Uma vez que o mar, a floresta, a terra, as águas forem vistos como um bem comum, a desmercantilização da vida, da qual a corrupção é uma parte alienígena, começa. Uma abertura dos bens comuns constitucionais exigiria uma implementação mais ampla do que já foi chamada de política GO-NO GO da Madhav Gadgil.

O esquema de Gadgil é uma classificação que recria zonas de controle onde a natureza não está sujeita ao desenvolvimento, onde, por razões de ecologia, civilização, valores comunitários, áreas de terra, minerais, mar, florestas são desmercantilizadas e salvas da corrupção. O pânico sobre o modelo Gadgil foi lido de forma estrita como um não-siga [no-go] para o desenvolvimento. Na verdade, foi um movimento brilhante para combater a corrupção ao reestruturar a Índia. O plano Gadgil deve ser estendido à propriedade intelectual, à medicina para enfatizar o medicamento genérico de marca. Uma tentativa de estender os bens comuns, em vez de uma batalha contra a corrupção baseada em direitos, resume a sabedoria dos movimentos sociais da Índia.

Uma antropologia da corrupção como um sistema de entrega, que compreenda sua lógica e semiótica, é necessária. A corrupção fortalece e humaniza até certo ponto. Isso torna o estrangeiro familiar; permite que novos participantes, migrantes étnicos, domestiquem o sistema. O que precisamos criar é sistemas organizacionais que simulem o estilo, o idioma, o recodifiquem como um sistema de entrega de informações. Os modelos de corrupção devem ser estendidos, o que deve nos mostrar novas formas de acesso ao sistema, de improvisar soluções onde nada foi visto existir.

Sistemas de gestão e jurídicos que buscam simplificar as regras e descriminalizar a economia. A economia deve começar não com as macro-burocracias, mas com os micro-sistemas, como a corporação municipal, a delegacia de polícia e o hospital local. O Direito à Informação (Right to Information – RTI) deve ser usado para simplificar sistemas, para desafiar o atraso. É preciso aprovar legislações nas quais os serviços possam se tornar sistemas de venda automática. São certificados e autorizações que precisamos vender na Índia, não Coca-Cola e Pepsi. A micro-reforma desses sistemas é o que temos de planejar. As macro-batalhas de [Anna] Hazare e [Madhav] Gadgil deveriam ser aplicadas a sistemas eleitorais ou de desenvolvimento.

Em terceiro lugar, precisamos de experimentos em epistemologia cívica. Uma delegacia de polícia poderia combinar com outros serviços comunitários, para formar novos híbridos que combinam funções. Grupos de direitos humanos, as ONGs que trabalham nos níveis locais, devem compartilhar escritórios com a polícia. É necessário criar mecanismos mais amplos de solução comunitária para a lei e a ordem, onde a polícia se torna parte de uma área mais ampla de resolução de problemas.

O meu argumento é que soluções tecnocráticas e gerenciais para a corrupção já não são adequadas. Temos que quebrar o atual discurso da corrupção e desconstruir os seus vínculos com a democracia eleitoral e o desenvolvimento. As possibilidades reais residem nos movimentos sociais. A tristeza dos movimentos é que eles também repetem a divisão entre corrupção e a lógica da democracia e do desenvolvimento. Aqueles que criticam a corrupção, raramente questionam os modelos atuais de democracia ou desenvolvimento. Precisamos de uma síntese dos dois. O mais próximo que chegamos foi com o MKSS [Mazdoor Kisan Shakti Sangathan] sob Aruna Roy e Nikhil Dey. O projeto de lei “Direito à Informação” preparou o cenário para uma crítica simultânea da corrupção e do desenvolvimento. A tragédia foi o movimento de Anna Hazare, que, em sua excitação e retórica, forçou um retorno aos estereótipos. Ataca o político corrupto ou exige legislação retórica, mas mostra pouco senso de cotidiano. O cotidiano da corrupção continua com alegria enquanto o Robert Vadras, o [Nitin] Gadkare e os [Salman] Khurshids são atacados. O castigo de algumas pessoas não afeta o processo e, a menos que olhemos a corrupção nos olhos e ultrajemos o escândalo e o espetáculo, não podemos confrontá-la.

Penso que é aqui onde entra a teologia. Ela olha para as crenças, os rituais e suas conectividades à vida. O senso de Deus dá um senso de sociedade. Talvez seja hora de uma nova teologia da corrupção; e qual lugar melhor do que a Conferência anual de teólogos? Há décadas, os movimentos de teologia da libertação, e a notável rede de ativistas escolares em torno de Ivan Illich, forneceram provavelmente as mais brilhantes críticas ao desenvolvimento. Para mim, como leigo, a luta pesqueira e os movimentos anti-barragem foram as primeiras grandes ameaças à atual teologia do desenvolvimento. Chegou o momento de uma acusação sobre as teologias seculares da corrupção que impedem a reforma e amortecem a democracia. A tarefa é sua agora.

Nota

* O texto foi originalmente apresentado no 35th Seminar-Cum-Metting, em Jalandhar, de 19 a 23 de outubro de 2012: Corruption in Public Life: a Theological Response.

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