o método na loucura séries

O método na loucura (3): três modelos da genialidade, por Gabriel Peters

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Por Gabriel Peters   (UFPE)

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Possuído

No seu uso de senso comum, a noção de “genialidade” está investida com uma aura de transcendência, magia e milagre. Chamar uma peça de Shakespeare, uma composição de Mozart ou um romance de George Eliot de “genial”, por exemplo, não significa apenas apontar para a sua qualidade excepcional. O adjetivo sugere que essa qualidade é tão extraordinária que não pode ser racionalmente explicada; certamente, não do mesmo modo como explicamos as ações do Fulaninho Comum dos Mortais.

Tal modo de ver criações geniais tem um ancestral ilustre na teoria da inventividade poética proposta, há uns dois mil e tantos anos, por Platão. No seu curto diálogo Íon (2011), inteiramente devotado ao tema da poesia, o filósofo põe na boca de Sócrates a teoria de que as criações poéticas não derivam de um esforço consciente e regrado. Tais criações floresceriam, sim, de uma possessão do poeta por uma Musa divina, que utilizaria o artista como simples veículo para entoar seus belos versos.

Esta concepção das raízes divinas da criação poética já aparecia nos próprios textos da Ilíada e da Odisseia, que principiam com invocações da divindade para cantar, respectivamente, a raiva do guerreiro Aquiles (“A ira, Deusa, celebra do peleio Aquiles” [Homero, 2001: 31]) e as aventuras de Odisseu (“Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou…Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus” [Homero, 2003, Canto I]).

Como Platão formula sua teoria “inspiracionista” da criação poética no Íon (2011)? O diálogo transcorre entre Íon de Éfeso, inocente rapsodo, e Sócrates, o mais sábio de todos os homens, perguntador insistente e irônico. Como de costume, a bateria de interrogações socráticas leva seu interlocutor à descoberta de que ele, na verdade, estava enganado sobre algo que julgava confiantemente saber. No caso em mira, Sócrates termina por levar Íon à confissão de que ele não poderia recitar ou discorrer inteligentemente sobre qualquer poeta que não o épico Homero[i].

Ao levar o rapsodo a admitir que sua práxis poética estava atrelada exclusivamente à poesia homérica (Ibid.: 29, 531a), Sócrates queria demonstrar que a performance de Íon não se baseava naquela espécie de prática regrada que caracteriza uma arte ou tekhné aprendida via treinamento[ii]. Poetas e rapsodos seriam somente veículos expressivos das divindades que sequestravam suas mentes e, assim, enunciavam suas criações através deles:

“…como não é em virtude de uma técnica que fazem poemas e dizem muitas e belas coisas acerca desses assuntos, como tu acerca de Homero, mas em virtude de uma concessão divina, cada um é capaz de fazer apenas isto a que a Musa o inspira. (…) não são humanos estes belos poemas, nem de homens, mas divinos e de deuses, e os poetas não são nada além de intérpretes dos deuses, possuídos por aquele que possui cada um” (Ibid.: 40, 534b; 41, 534e)

Tal concepção da criatividade artística como iluminação divina é, hoje, frequentemente celebrada nos termos mais efusivos. No entanto, aos olhos racionalistas de Platão e de (seu) Sócrates, desconfiadíssimos que eram quanto ao perigoso charme dos poetas, a criação poética mediante possessão divina não era positivamente valorada, muito menos projetada no cume das realizações humanas. Distinguindo entre a poesia oriunda das visitas da Musa e o domínio do que hoje chamaríamos de Belas Artes, Platão considera a primeira mais semelhante à profecia[iii] (Ibid.: 51, 538e).

As afirmações de Platão sobre as fontes divinas da criatividade poética são literais ou metafóricas? A visão platônica do poeta possuído por uma divindade deve ser lida como uma tentativa de descrição realista? Ou trata-se, na verdade, de uma engenhosa metáfora para designar o que a elaboração poética possui de misterioso, tanto para os ouvintes quanto para os próprios poetas? Deixemos as respostas a essas perguntas para aqueles que dedicaram sua vida inteira a estudar os enigmas de Platão.

O que mais interessa, no presente texto, é a influência que tal teoria das raízes da genialidade poética exerceu sobre concepções subsequentes de realizações criativas excepcionais em domínios diversos. As divindades que se utilizam dos criadores como veículos de criação mudam, é claro, mas a atribuição da inventividade a uma fonte divina perpassa diferentes períodos e domínios criativos. Quando Viena celebrou o septuagésimo sexto aniversário de Joseph Haydin com uma apresentação de A criação em sua homenagem, o velho compositor ergueu suas mãos para o céu e disse ao Altíssimo: “não de mim, mas de ti vem tudo” (Kivy, 2001: I). Nos primórdios do século passado, o genial matemático indiano Srinivasa Ramanujan afirmou que seus teoremas eram inspirados por uma deusa hindu de nome Namagiri (Robinson, 2011: 28).

As apropriações históricas do retrato platônico do furor poético terminariam, portanto, por conferir à criação via possessão um valor dos mais altos. Com o processo de secularização da cultura moderna, o qual enfraqueceu profundamente a antiga representação do mundo como um “jardim encantado” (Weber) povoado por Musas e Deuses, essa concepção do gênio possuído se transmutou mais decididamente em metáfora.

Mesmo para analistas que não creem literalmente em possessão divina, a linguagem da inspiração genial serve como uma confissão de que existe algo de inexplicável em realizações criativas excepcionais – isto é, um grau tamanho de excelência artística que não pode ser remontado a quaisquer dos ingredientes pelos quais tradicionalmente damos sentido a uma obra (propriedades formais, influências de outros artistas etc.). Como afirmou Paul Valéry: “há trabalhos similares a outros, e também trabalhos que são o reverso de outros, mas também há trabalhos cuja relação com produções anteriores é tão intrincada que ficamos confusos e os atribuímos à intervenção direta dos deuses” (1971: 271).

A linguagem da inspiração inefável adentrou mesmo os retratos da criatividade na ciência. Segundo a distinção clássica entre “contexto da justificação” e “contexto da descoberta” mantida tanto por positivistas lógicos quanto por popperianos, se os testes de hipóteses científicas seguiriam regras lógicas e metodológicas rigorosíssimas, os caminhos psicológicos pelos quais aquelas hipóteses eram descobertas ou inventadas jamais poderiam ser formalizados em um método, já que eram demasiado sujeitos a fatores contingentes (Gusmão, 2011: 232).

Com efeito, a história da ciência está repleta de afortunadas ocorrências do acaso, como as descobertas acidentais dos Raios X por Röntgen ou da penicilina por Fleming (Robinson, 2010: XVII-XVIII). Como discuti em maiores detalhes noutro canto, os percursos imprevisíveis da descoberta também incluem os momentos “Eureca!”, isto é, os insights repentinos que acorrem aos pensadores nos momentos aparentemente mais improváveis. É o que aconteceu, para dar apenas um exemplo, com o matemático francês Henri Poincaré, que descia de um ônibus quando se deu conta, subitamente, de que “as transformações aritméticas de formas quadráticas ternárias indefinidas eram idênticas àquelas da geometria não euclidiana” (2000: 90) – o que, sem dúvida, soa como uma coisa bastante difícil de se descobrir.   

O tributo à herança platônica é prestado, portanto, mesmo por autores cientes de que não se escapa à tekhné, já que lampejos de criatividade só geram criações valiosas caso sejam alimentados, julgados e elaborados criticamente à luz do conhecimento especializado próprio a uma disciplina:

As ideias nos chegam quando lhes apraz, e não quando queremos. As melhores ideias ocorrem realmente à nossa mente da forma que Ihering descreve: ao fumarmos um charuto no sofá; ou, como Helmholtz diz de si mesmo, com exatidão científica: quando caminhamos por uma rua que sobe lentamente; ou de qualquer outra forma semelhante. De qualquer modo, as ideias chegam quando não as esperamos, e não quando estamos pensando e procurando em nossa mesma de trabalho” (Weber, 1982: 162). 

Weber prossegue com o lembrete de que não haveria qualquer inspiração repentina no sofá não fosse pela imensa quantidade prévia de esforço intelectual na mesa de trabalho. O que inspiracionistas contemporâneos sublinham, no entanto, é que o aprendizado da competência especializada constitui somente uma condição necessária, mas não suficiente, da geração de insights criativos. Na versão secular da tese platônica, a criadora não poderia persegui-los diretamente; apenas maximizar sua exposição à possibilidade de que tais descobertas aconteçam a ela ou, ainda, contar com os meandros um tanto insondáveis de sua “intuição criadora”, na expressão de Bergson que até Popper (1972: 32), estranha companhia, cita com aprovação.   

Força da natureza

Os graus em que “loucura” e “método”, inspiração inefável e transpiração disciplinada, se combinam nas realizações criativas excepcionais não geram enigmas apenas para a escola “inspiracionista” de análise da criatividade na arte e na ciência. A ambivalente mistura entre rompantes de inspiração cuja fonte é impenetrável, de um lado, e o saber regrado pelo qual a criadora lapida os diamantes brutos de sua inspiração, de outro, é enfrentada também por outra via de explicação da criatividade. Se o retrato do gênio possuído remonta a Platão, essa outra tradição de exame da criatividade excepcional pode ser retraçada a um tratado inacabado intitulado Peri Hupsos ou Do sublime (1996).

Outrora atribuído a um autor do século III chamado Longino de Palmira, o escrito é hoje amplamente tido como saído da pena de um escriba desconhecido do século primeiro. Ainda que a praxe entre os especialistas exija que nos refiramos ao autor pela divertida alcunha de “Pseudo-Longino”, “Longino” será suficiente para nossos propósitos aqui.

A obra versa sobre a excelência estética no estilo literário, seja em prosa, seja em poesia. O conceito de “sublime”, cuja carreira no pensamento ocidental sobre arte seria longa, captura a consumação dessa excelência literária, conectando-a a uma noção cuja tradução mais literal seria “grandeza de espírito”. Diversos tradutores antigos e modernos se acostumaram a verter essa expressão original para o termo mais econômico “gênio”, o qual se tornou via de entrada para as leituras românticas do longínquo texto longínico.

O que Longino oferece é uma das primeiras formulações sistemáticas da ideia de “gênio” como designativa de um dom natural para tal ou qual empreitada artística. Ainda que a posteridade viesse a promover casamentos diversos entre o gênio platônico e o gênio longínico, a principal diferença entre as duas concepções da genialidade consiste na ênfase do segundo sobre o domínio que o criador exerce sobre seu próprio poder de criação (Kivy, 2001). Em vez de se apresentar como veículo passivo de mensagens divinas, o gênio de Longino é dono pleno de suas capacidades criativas; não o veículo de uma divindade, mas ele mesmo uma quase-divindade. Tal como perfilado por Longino, o estilista com “grandeza de espírito” quer assumir, como um titã, as rédeas do seu processo de invenção, em vez de se colocar à mercê dos caprichosos assaltos da Musa.

A influência de Longino sobre a estética moderna resulta, em larga medida, de sua apropriação pelos românticos ingleses do século XVIII, período em que o ensaio foi redescoberto e vertido para a língua de Shakespeare. O que despertou o romance dos românticos setecentistas com Longino foi, sobretudo, sua ideia de que a via para o sublime poderia advir não da máxima obediência aos parâmetros convencionalmente associados à excelência artística, mas justamente da independência em relação a tais parâmetros.

A visão longínica da criação reconhecia a necessidade de uma combinação entre dons artísticos naturais, de um lado, e o treinamento regrado, de outro. Sua concepção foi transformada, no entanto, pelo crítico Joseph Addison em um pequenino-mas-muitíssimo-influente ensaio que ele publicou, em 1711, na revista The Spectator (2005: 511-512). Em vez de propor, como Longino, que a composição de obras sublimes derivaria do intercâmbio entre os dotes naturais do gênio e os métodos clássicos estabelecidos pela tradição, Addison perfilou um tipo de gênio cujas criações passavam completamente ao largo das normas tradicionais do bom gosto.

O autor inglês distinguiu entre dois tipos de genialidade. Uma delas, mapeada por todas as variantes do classicismo, seria oriunda do demorado aprendizado, pelo criador, dos princípios artísticos testados pela tradição e alçados a requisitos convencionais da excelência estética. Mais original, bem como mais decisiva para a estética romântica, foi a outra concepção do gênio proposta por Addison: o gênio como força da natureza, capaz de produzir obras de criatividade extraordinária pelo uso autônomo e independente de suas faculdades criadoras, sem dever nada ao treinamento prolongado ou a preocupações com a correção formal qua estabelecida pela tradição[iv].       

Addison afirmava não querer pintar essa segunda forma de genialidade, cujos exemplos magnos seriam Homero e Shakespeare, como superior à primeira. No entanto, ele alertava para o risco de que a imitação de modelos herdados de beleza terminasse por sufocar as propensões naturais de certas subjetividades criadoras. O crítico britânico montou o palco, assim, para uma querela entre antigos e modernos na qual os primeiros advogavam em prol da imitação proficiente dos modelos clássicos, enquanto os segundos defendiam a originalidade da expressão natural, individualíssima, do gênio criador.

Ainda que trate a tradição imitativa com respeito, Addison não deixa dúvidas de que sua simpatia pende para o lado dos modernos. O pressuposto de que a originalidade consiste em um atributo sine qua non da qualidade das obras artísticas, sobretudo se contrastada à “mera” imitação competente, se tornou hoje tão influente que é difícil pensar que ele não tenha vigorado sempre na atribuição de valor à arte. A fortuna crítica do ensaísta de The Spectator faria dele, portanto, uma das fontes intelectuais mais importantes dessa associação que hoje tomamos por evidente, a saber, aquela entre a genialidade artística e a disposição para o novo e o original.

A estética romântica do século XVIII condensaria, na forma de uma distinção conceitual, a contraposição entre duas modalidades de experiência estética: o prazer sereno derivado do contato com o belo, de um lado, e a experiência turbulenta do sublime, de outro. Como afirmou Edmund Burke em um texto de riqueza inesgotável (1987 [1757]), a vivência tempestuosa e ambivalente do sublime contrastaria com a tranquilidade inambígua da fruição do belo. A experiência do sublime não apenas invadiria com maior intensidade a psique do indivíduo por ela afetado, mas excitaria nele ideias de “dor”, “perigo” e “terror” que, graças à distância possibilitada pela obra de arte, seriam vivenciadas não propriamente com “prazer” (pleasure), mas com “deleite” (delight) (Burke, 1998: 33). Através da categoria do sublime, Burke busca explicar como o intenso deleite estético poderia advir, por exemplo, da experiência do terror (p.ex., na excitação diante de um conto assustador de Edgar Allan Poe), da dor (p.ex., na compaixão frente ao destino trágico imerecido que acomete tantos personagens da alta literatura, levando seus leitores às lágrimas) e da feiúra (p.ex., no fascínio despertado pelos retratos de Goya). (Os exemplos são meus, não de Burke.)  

Interpretações dos efeitos da arte sobre a sensibilidade, feitas ao estilo da contraposição burkeana entre o belo e o sublime, projetaram estes atributos, respectivamente, em cada um dos lados da querela entre antigos e modernos. Enquanto os antigos foram retratados como cultores dos parâmetros clássicos da beleza (p.ex., ordem, proporção, harmonia), os modernos queriam romper com as amarras estabelecidas pelos modelos do passado e explorar o domínio mais imprevisível e arriscado, mas também mais excitante, dos seus próprios impulsos naturais.

Se Addison ainda havia reconhecido que a noção de “gênio” poderia ser aplicada tanto àqueles que alcançaram a excelência apenas com a força de suas capacidades criadoras naturais (2005: 511) como àqueles que o fizeram pelo aprendizado modelado nas convenções do gosto clássico, outros românticos passariam a atribuir o rótulo honorífico exclusivamente à primeira estirpe de artistas. Na obra do poeta Edward Young Conjecturas sobre a composição original, a subversão das normas do bel sprit foi tomada como marca máxima do gênio “original” como força da natureza, explicitamente contrastado ao artista “imitativo” que depende de modelos e normas do passado (1918 [1759]).

Terminemos esta seção ressaltando o óbvio: o tema “romantismo e sua influência na estética moderna” preenche bibliotecas inteiras. Um tratamento sumário dessa problemática, tal qual o que acaba de ser oferecido aqui, só é possível quando se está disposto a atropelar, como uma carroça desgovernada, uma gigantesca quantidade de detalhes e nuanças historicamente importantes (para um excelente guia no que toca ao romantismo inglês do século de 1700, ver Kivy [2001]).   

Workaholic

Na sua concepção do criador genial como inteiramente movido por seus dons naturais, os quais permitem a ele passar ao largo das regras e preceitos da tradição, o radicalismo romântico foi bem além da posição mais matizada de Longino quanto à relação entre inventividade natural e perícia artística. O discurso de Longino, embora cantasse os louros da sublimidade das obras produzidas por aqueles com “grandeza de espírito”, reconhecia que um dos preços estilísticos da “genialidade natural” era o incorrer em “falhas” de composição:

“…as naturezas superiores são as menos isentas de defeito; pois a vigilância minuciosa em tudo faz correr o risco da pequenez; e na grandeza, como na excessiva riqueza, é preciso que subsista também um pouco de negligência. Já as naturezas baixas e medíocres talvez sejam também uma necessidade que, pelo fato de jamais correrem riscos e jamais aspirarem às alturas, permaneçam na maior parte do tempo impecáveis e mais seguras; as grandes, ao contrário, caem por causa da própria grandeza” (Longino, 1996: 91).

Longino faz mais do que combater a ideia de que tudo que brota da pena de um gênio seria genial; ele sugere que artistas grandiosos são mais retumbantes do que os demais não apenas nos seus sucessos, mas também nos seus fracassos. Tal perspectiva alude a um retrato mais experimental da criatividade extraordinária como um processo de tentativa e erro, no qual os criadores mais bem-sucedidos seriam também aqueles que, com mais frequência e ousadia, se expuseram a fracassos criativos. Eis um fato amplamente demonstrado na história de criações influentes na arte e na ciência, porém frequentemente perdido de vista pela mitologia essencialista segundo a qual gênios são invariavelmente geniais nos seus feitos.

O psicólogo oitocentista Friedrich Nietzsche, atento que era aos propósitos demasiado humanos que comumente se escondem por trás da aparência de magia e milagre, sublinhou o ponto e deu um passo além. Tal como acontece nos truques de mágica, ele disse, parte do efeito estético provocado por criações extraordinárias envolve a sugestão de que elas brotam de uma vez na sua perfeição, o que significa ocultar a gigantesca quantidade de suor investido nessas obras:

Os artistas têm interesse em que se creia nas intuições repentinas, nas chamadas inspirações; como se a ideia da obra de arte, do poema, o pensamento fundamental de uma filosofia, caísse do céu como num raio de graça. Na verdade, a fantasia do bom artista ou pensador produz continuamente, sejam coisas boas, medíocres ou ruins, mas o seu julgamento, altamente aguçado e exercitado, rejeita, seleciona, combina; como vemos hoje nas anotações de Beethoven, que aos poucos juntou as mais esplêndidas melodias e de certo modo as retirou de múltiplos esboços. (…) Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar” (Nietzsche, 2000: 119-120).

Nietzsche propõe uma teoria do gênio como trabalhador incansável. Para além da teoria platônica do gênio possuído pela inspiração, bem como da teoria longínica do gênio que domina suas criações pela força titânica da sua natureza, eis uma terceira linha de teorização sobre a genialidade que parte do filósofo alemão até chegar em um pujante programa de pesquisa sobre a performance excepcional ou perita (“expert performance”) liderado pelo psicólogo Anders Ericsson (Ericsson; Charnes, 1994; Ericsson, 2006).

Quando comparada à teoria do “gênio possuído” e à teoria do “gênio como força da natureza”, a teoria do “gênio workaholic” apresenta, contudo, uma inegável desvantagem: ela é um tanto sem graça. O fascínio embasbacado diante de obras geniais parece demandar uma explicação que faça jus ao nosso sentimento vivido de que tais coisas não podem ter sido produzidas por mamíferos.  

Vejamos. Se eu lhe pedisse um ou dois exemplos de gênios da música clássica, que nomes pipocariam na sua mente? Suspeito que a maioria das pessoas pensaria em Mozart e Beethoven, duas figuras comumente elencadas não apenas nas listas-padrão de compositores geniais, mas de gênios tout court. Não por acaso, pelo menos nas imagens que deles se consolidaram na história, cada um se aproxima de um dos modelos de “gênio” discutidos acima.

Mozart representa o paradigma da inspiração mágica, do criador que compõe obras imortais com a suposta facilidade de uma criança divertindo-se com seus brinquedos. Tudo indica, de fato, que as extraordinárias faculdades criativas de Mozart estavam abrigadas em uma personalidade com um quê de infantil. Isto dito, o texto anterior da presente série recorreu a uma série de estudos da evolução de sua vida e obra (p.ex., Howe, 1999) para desfazer o mito de que geniais criações musicais fluíram de sua pena desde cedo, sem um pingo de esforço ou de aprendizado experimental orientado por um perito (i.e., papai, compositor ele próprio e pedagogo musical, autor de um manual de instrução para violino bem conhecido na Europa de seu tempo).

As provas decisivas de que Mozart não teria se tornado Mozart se não houvesse aproveitado oportunidades excepcionais de treinamento não significam, é óbvio, que qualquer um que tenha oportunidades excepcionais de treinamento se torna um Mozart. O que é certo, no entanto, é que muito do trabalho duro do autor d’A flauta mágica foi escamoteado pelo que já foi chamado apropriadamente de “mito de Amadeus” (Shermer, 2001: 262), em referência ao filme baseado na história fictícia de uma rivalidade fictícia de Mozart com o pobre Salieri, ficticiamente apresentado como invejoso homicida

Seja como for, enquanto Mozart fornece o paradigma da criação como inspiração inefável, Beethoven é frequentemente retratado no papel do gênio como força da natureza, o criador autônomo cujas capacidades facultariam a ele explodir os limites estabelecidos por quaisquer convenções e regras – não por que ele as ignore, mas porque tem a “grandeza de espírito” (Longino) para dispor sobre elas segundo os desígnios da sua própria arte.    

Permanecendo no âmbito da música erudita, no entanto, lembramos de um compositor cuja grandeza os entendidos (p.ex., Carpeaux, 1968: 180; 184) não têm pudor em elencar ao lado (ou mesmo acima) daquela de Mozart e Beethoven: Johann Sebastian Bach. Por que a imagem de Bach não acorre à mente tão espontaneamente como aquelas dos outros dois quando procuramos as “imagens do gênio” que povoam nosso imaginário? Suspeito que um dos motivos seja o fato de que a vida de Bach resiste ao encaixe fácil nas noções do gênio possuído e do gênio-força-da-natureza comumente associadas, respectivamente, a Mozart e Beethoven. Membro de uma de seis (!) gerações de compositores, treinado desde cedo para assumir o “negócio da família”, Bach foi um artesão de classe média com uma escrupulosa ética do trabalho (Kivy, 2001: 166) – traço que ele partilhava, aliás, com os gênios renascentistas[v].

Quando se retraça o esforço monumental investido na aquisição de competências excepcionais, assim como na produção de criações extraordinárias, alguns atributos extraintelectuais do “gênio workaholic” vêm à baila, como paciência, tolerância à frustração, autoconfiança, perseverança no enfrentamento dos mesmos problemas e tutti quanti. Não há dúvida de que esses fatores, imensamente importante em si próprios, podem ser simplistamente apropriados por um discurso de autoajuda barata, empiricamente falso, segundo o qual, em última instância, cada indivíduo é completamente responsável pelos seus “sucessos” ou “fracassos” criativos – como quer que estes sejam concebidos.

Um olhar sociológico mostrará a inverdade desse pressuposto, ao evidenciar, para dar apenas uma ilustração, que mesmo os estímulos à autoconfiança intelectual dados pelos agentes de socialização mais próximos (pais, professores etc.) são tremendamente desiguais segundo linhas de gênero, classe e assim por diante – lembremos do exemplo do professor de matemática machista. Seja como for, a despeito do seu impulso desmistificador, o que este terceiro modelo do gênio faz não é questionar a existência mesma da genialidade, mas “destranscendentalizá-la”, isto é, encontrar suas raízes mundanas.

Além de Bach na música, o paradigma mais óbvio do “gênio workaholic” talvez seja Isaac Newton. Segundo o testemunho do homem mesmo: “se fiz descobertas valiosas, isto se deveu mais à atenção consciente do que a qualquer outro talento”. A posse de poderes excepcionais de concentração também foi sublinhada, como chave para a compreensão da sua mente, por um dos principais pesquisadores da montanha de manuscritos pessoais de Newton: um tal de John Maynard Keynes. Disse o economista sobre o físico:

Creio que a pista para sua mente deve ser encontrada em seus poderes raros de introspecção concentrada…Seu dom peculiar era o poder de manter continuamente em sua mente um problema puramente intelectual até que ele pudesse compreendê-lo plenamente…Qualquer um que tenha se envolvido com o pensamento puramente científico ou filosófico sabe que pode manter temporariamente um problema em mente, aplicar todos os seus poderes de concentração para dominá-lo, apenas para vê-lo dissolver-se e escapar, deixando-o com a sensação de que está investigando o vazio. Acredito que Newton podia manter um problema em sua mente por horas e dias e semanas até que este lhe entregasse seu segredo” (1958: 282).

Conclusão: problemas de gênio

O que dizem as ciências sociais e a psicologia contemporânea sobre estas três imagens da criação excepcional? Minha impressão é que as lições oriundas dessas disciplinas dão um bocado de razão, feitas as devidas ressalvas, à terceira das imagens. Volto a ela no próximo texto desta série.

Notas

[i] Como assim “discorrer inteligentemente”? Bem, o texto platônico nos informa que Íon não somente recita passagens poéticas com o acompanhamento sonoro de um instrumento musical, mas também intercala suas recitações com comentários sobre a poesia que canta. Está errado, portanto, quem pensava que a mistura profunda entre arte e meta-arte, produção artística e comentário interpretativo, era um sintoma contemporâneo de decadência estética. Muitíssimo antes que, digamos, uma lata de lixo colorida fosse exposta em um museu ao lado de um texto palavroso sobre a “hermenêutica pictórica do resíduo civilizacional como janela para a compreensão da contemporaneidade”, Íon já estava lá fazendo seus comentários.

[ii] Diz Sócrates a Íon: “…é evidente a todos que és incapaz de falar acerca de Homero em virtude de uma técnica e de uma ciência; pois, se fosses tal em virtude de uma técnica, também acerca de todos os outros poetas poderia falar” (Ibid.: 33; 532c).

[iii] O próprio impacto emocional que a poesia declamada e comentada pelo rapsodo gera em seu público é explicado por Sócrates como uma espécie de corrente de possessão que vai da Musa ao poeta, do poeta ao rapsodo e, daí, à sua audiência: “…não sendo…uma técnica, em você, de falar bem acerca de Homero,…mas um poder divino que te move, como na pedra que Eurípides chamou de magnética, mas muitos chamam de pedra de Hércules. Pois essa pedra não apenas atrai os próprios anéis de ferro, mas também coloca nos anéis um poder tal que eles são capazes de fazer isto do mesmo modo que a pedra: atrair outros anéis; de tal modo que, às vezes, numa grande série, os anéis de ferro pendem totalmente uns dos outros; mas, para todos, esse poder depende daquela pedra. E também assim a própria Musa cria entusiasmados, e através desses entusiasmados uma série de outros entusiastas é supensa” (Ibid.: 37, 39; 533d, 533e).  

[iv] Em uma tradução rápida e pouco cuidadosa do inglês arcaico de Addison, eis o que ele afirma: “Dentre os grandes gênios, os poucos que alcançam a admiração de todo o mundo para si e se estabelecem como os prodígios da humanidade são aqueles que, pela mera força de suas partes naturais, sem qualquer assistência do artesanato e do aprendizado, produziram trabalhos que foram o deleite de suas próprias épocas e o fascínio para a posteridade. Parece haver algo de nobremente selvagem e extravagante, nesses grandes gênios naturais, que é infinitamente mais bonito do que todo… o polimento do que os franceses chamam de um Bel Esprit, termo que se refere a um gênio refinado por conversação, reflexão e leitura…” (Addison, [1711] 2005: 511).

[v] Incidentalmente, Haydn, que logo acima vimos atribuir suas composições ao Altíssimo, volta e meia também dizia coisas como: “Nunca fui um escritor rápido, e sempre compus com deliberação e indústria” (Ibid.: 169).

Referências

 Addison, Joseph. “On genius” (N.160, Monday, 3 September 1711). In: The Spectator, Volume 1. Eighteenth-Century Periodical Essays: Joseph Addison and Richard Steele. Project Gutenberg, 2005. 

[http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/gu009334.pdf]

Burke, Edmund. A Philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful. London, Routledge & Keagan and Paul, 1958.

Carpeaux, Otto Maria. Vinte e cinco anos de literatura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.

Ericsson, Anders; Charnes, Neil. “Expert performance: its structure and acquisition”. American Psychologist, 49, 8, 1994.

Ericsson, Anders et al. The Cambridge Companion to expertise and expert performance. Cambridge, Cambridge University Press, 2006.

Gusmão, Luís. “A crítica da epistemologia na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim”. Sociedade & Estado, 26, 1, 2011.

Homero. Ilíada. Vol.1. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo, Mandarim, 2001.

_______Odisséia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Cotovia, 2003.

Howe, Michael. Genius explained. Cambridge, Cambridge University Press, 1999.

Keynes, John Maynard. “Newton, the man”. In: Essays in biography, The collected writings of John Maynard Keynes. London, MacMillan for the Royal Economic Society, 363-374, 1958. 

 Kivy, Peter. The possessor and the possessed. New Haven, Yale University Press, 2001

Longino. Do sublime. São Paulo, Martins Fontes, 1996. 

Nietzsche, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. 

Platão. Íon. Salvador, UFBA, 2011. 

Popper, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix, 1972.

Robinson, Andrew. Sudden genius: the gradual path to creative breakthroughs. Genius. Oxford, Oxford University Press, 2010.

________Genius. Oxford, Oxford University Press, 2011.

Shermer, Michael. The borderlands of science. New York, Oxford University Press, 2001.

Valéry, Paul. Leonardo. Poe. Mallarmé. Princeton, Princeton University Press, 1971.

Weber, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1982. 

Young, Edward. Conjectures on original composition. Manchester, Manchester University Press, 1918.

6 comentários em “O método na loucura (3): três modelos da genialidade, por Gabriel Peters

  1. Que estudo excelente. Imensos parabéns ao Gabriel Peters.

    Cá estou à espera do próximo texto da série.

    Abraços.

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