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Os quatro muros de não saber agir: as profecias não realizadas (parte 1), por Yago Paiva

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Jackson Pollock. Convergency, 1945

Por Yago Paiva

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1 Introdução

Viver doía-nos, porque sabíamos que estávamos vivos; morrer não nos aterrava porque tínhamos perdido a noção normal da morte. 

Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em si-próprios. O que viveram foi em negação, em descontentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro, sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida, entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros de não saber agir (Fernando Pessoa. Livro do Desassossego)

Uma profecia não realizada sempre pode ser reiterada. Mais do que isso, é da não-realização que a profecia se sustenta, pois, o seu não-cumprimento é a garantia de que as expectativas se mantenham voltadas para o futuro. Reinhart Koselleck faz esses apontamentos tendo em vista as sociedades pré-modernas. No mundo camponês, o futuro permanecia atrelado ao passado, havia transição quase perfeita das experiências passadas para as expectativas futuras. A insegurança provocada por novas expectativas com relação ao futuro só atingia esferas restritas das sociedades. As únicas expectativas que se projetavam fora da experiência mais imediata estavam voltadas não para este mundo, mas para o além, na espera do fim do mundo. Era a profecia não realizada que renovava essa expectativa de chegada do fim do mundo, atestando “retrospectivamente o contrário daquilo que a princípio pareciam afirmar”[1]. Era, portanto, um paradoxo que sustentava as expectativas de futuro. Um paradoxo da salvação.

A partir do século XVIII, as expectativas passaram a se distanciar das experiências vividas, com o surgimento da noção de progresso. Os grupos sociais passaram a ter consciência de que estavam à frente dos outros ou buscavam alcançá-los e ultrapassá-los rumo à perfectibilidade humana. A história passa a ser concebida como um processo contínuo de aperfeiçoamento crescente. As expectativas de mudanças e inovações no futuro saem das esferas restritas e adentram o mundo da vida. Se nas sociedades pré-modernas as expectativas de futuro fora da vida eram sustentadas pelo paradoxo da salvação, por uma profecia não realizada, o que sustenta as expectativas de futuro na vida dos indivíduos modernos?

Pensadores célebres desse novo mundo, como Alexis de Tocqueville, Georg Simmel, Max Weber, Michel Foucault e Alain Ehrenberg, identificam, cada qual a sua maneira, formas de liberação das estruturas deixadas pelo passado que criam expectativas de futuro. Não obstante, na linguagem de Simmel, esses mecanismos criados para sustentar essas liberações são objetivados e passam a obedecer suas próprias leis. Deixam de ser meros meios para se transformarem em fins. Quando isso ocorre, esses mecanismos se voltam contra si mesmos. Cabe, pois, questionar: até que ponto esses mecanismos de liberação objetivados, que seguem suas próprias leis, não fazem os indivíduos se voltarem para uma nova forma de além-vida e passarem a carregar profecias que não se realizam, mas que podem sempre ser reiteradas? Até que ponto essas novas profecias não “atestam retrospectivamente o contrário daquilo que a princípio pareciam afirmar”[2]?

O que buscaremos argumentar neste ensaio, a partir de Tocqueville, Simmel, Weber, Foucault e Ehrenberg, é que esses mecanismos objetivados de liberação que geram expectativas de futuro são sustentados por um paradoxo da liberação. Profecias que não se realizam, que são sempre reiteradas, mas que provocam o contrário do que postulam. Tendo isso em vista, o artigo está organizado em cinco seções, sendo a primeira esta introdução.

Na primeira seção, analisaremos a ideia de indivíduo fraco em Tocqueville. Nas sociedades democráticas, não obstante os indivíduos creiam presunçosamente na independência individual, a cada ação, diminuem seus próprios poderes e aumentam o poder social e político, o que os tornam cada vez mais dependentes. A partir da liberação do desejo promovida pela transição da aristocracia para a democracia, os indivíduos, na busca desenfreada pelo bem-estar, se encontram num paradoxo psicológico: a despeito de viverem em meio à bonança, têm sempre a sensação de que não alcançaram o suficiente. O sucesso objetivo se transforma em fracasso subjetivo. Além disso, para gozarem das fruições materiais, os indivíduos necessitam ser livres. Não obstante, sob o individualismo corrosivo das virtudes, não percebem que é necessário o imaterial para conquistar o material. A paixão pelo bem-estar se volta contra si mesma. Os indivíduos, tomados todos como igualmente fortes, são todos igualmente fracos.

Na segunda seção, com Georg Simmel, buscaremos demarcar como a economia de dinheiro, que promove a liberação formal do indivíduo das relações de dependência pessoal do mundo feudal, pode, por outro lado, ao dar uma sensação de liberdade atual, minar o que proporcionou esta mesma liberdade.

Na quarta seção, na segunda parte deste ensaio, com Weber, mostraremos como o paradoxo da liberação se manifesta na relação dos protestantes com as práticas econômicas. Weber sustenta que os puritanos utilizavam as práticas econômicas racionalizadas, base do capitalismo moderno, como forma de ascetismo religioso. Não obstante, eles sabiam que essa liberação das práticas econômicas, que rompe com as inibições tradicionalistas, poderia, a partir da geração de riqueza, minar a religiosidade. E foi a partir desse paradoxo que o homo oeconomicus “puro” surgiu e assentou o capitalismo em seus próprios fundamentos, enfraquecendo seu télos inicial, que era a regulação religiosa da conduta.

Na quarta e última seção, analisaremos, a partir de Foucault e Ehrenberg, os paradoxos da liberação nos quais se implicam o liberalismo e o neoliberalismo. Para Foucault, como veremos, o liberalismo clássico se coloca contra à razão de Estado, buscando abrir um espaço de liberdade econômica e constituir um governo frugal, mas acaba se tornando uma arte de governar que é um princípio de manutenção e de aperfeiçoamento da razão de Estado.

O neoliberalismo, por sua vez, é, para Foucault, menos disciplinar, porque institui, a partir do homo oeconomicus empresário de si, um sujeito ativo, uma estética da existência. Ancorando a busca pela generalização da concorrência ao projeto do imposto negativo, que garante renda mínima para aqueles que caem abaixo de certo nível de ganho, a sujeição neoliberal adquire um aspecto de opção pessoal. À generalização da empresarização de si, Ehrenberg objeta que as sociedades do espirito empresa passaram por uma transformação da normatividade social: da sociedade disciplinar à sociedade da autonomia. Essa sociedade do indivíduo da autonomia, empresário de si, que tem que responder às exigências da concorrência generalizada, “se pagam com a depressão nervosa generalizada”[3]. Da expectativa do sujeito ativo, de uma forma de sujeição que é uma opção pessoal, Ehrenberg mostra que se criou a autonomia como normatividade e a depressão como fato social.

2. O indivíduo fraco de Tocqueville: individualismo, solidão, desejo cambiante e paradoxo psicológico

Para Raymond Aron (1999), há em Tocqueville dois métodos sociológicos: por um lado, traçar o retrato de uma coletividade; por outro, apreender o problema histórico abstrato de um certo tipo de sociedade. Não obstante, além desses dos métodos sociológicos, em “A Democracia na América”, principalmente no volume II, Tocqueville faz uma análise psicológica do indivíduo moderno e os efeitos que disso decorre para a liberdade na democracia.

2.1 O individualismo

Um dos princípios fundamentais da democracia liberal é o individualismo, que Macpherson (2005) qualifica como individualismo possessivo. O indivíduo é tomado como livre à medida que compreende a si mesmo como proprietário de seu próprio corpo, de suas próprias capacidades, não de um todo moral. Thomas Hobbes e John Locke são os pais dessa maneira de apreender o indivíduo. Os homens, para Hobbes, não têm prazer algum na companhia uns dos outros. São feitos iguais pela natureza, mas a vaidade e as crenças (todas infundadas) nublam esta igualdade, levando-os aos conflitos. O medo da morte e a tendência natural de buscar a paz faz com que os homens renunciem a sua soberania em nome de um poder soberano e afastem-se[4]. Deixando de lado concepções tradicionais acerca da sociedade, Hobbes estabelece postulados individualistas, tomando os direitos e as obrigações a partir de indivíduos dissociados[5]

Já John Locke enfatiza a capacidade individual na sua teoria da propriedade baseada no trabalho. A primeira e fundamental posse que se tem é do próprio corpo, a propriedade que cada indivíduo tem da sua própria pessoa e do trabalho que executa por seu corpo individual. A partir disso, o que é comum passa a ser propriedade de alguém. “Qualquer coisa que ele retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade”[6].

Em Tocqueville, o afastamento entre as pessoas e a busca por bens materiais tendo como referência a capacidade do indivíduo isolado é a base do individualismo nas sociedades democráticas, que Tocqueville teoriza e combate.

O individualismo é uma maneira de referir tudo a si mesmo. Nas sociedades aristocráticas, em que as pessoas são intimamente ligadas e dispostas a esquecerem de si mesmas, esse “referir tudo a si” se manifesta como egoísmo, que é um amor apaixonado, um instinto cego, um desvio da virtude que existiu em todas as épocas. Nas sociedades democráticas o “referir tudo a si” aparece de forma peculiar, como individualismo. Este não é um desvio da virtude, mas um sentimento tranquilo e refletido, que “dispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes e a se retirar isoladamente com sua família e seus amigos”[7]. O individualismo, ao isolar os indivíduos, destrói, a princípio, as virtudes públicas, mas com o tempo ataca de destrói todas as outras e se absorve no egoísmo.

Esse “referir tudo a si” que não é tomado formalmente como desvio, vício, mas como fundamento mesmo das sociedades democráticas, têm como consequência, para Tocqueville, a crença demasiada nas capacidades individuais. Nas democracias, como impera a soberania do povo e cada indivíduo constitui uma porção igual do soberano, o ente unitário é tomado “como tão esclarecido, tão virtuoso, tão forte quanto qualquer outro de seus semelhantes”[8].

A despeito de serem formalmente apreendidos dessa maneira, para Tocqueville os indivíduos na democracia são todos igualmente fracos. As sociedades democráticas, sob o afastamento que o individualismo provoca, não são constituídas de indivíduos fortes, autônomos, mas de indivíduos independentes. Tocqueville, portanto, distingue força, autonomia de independência. Embora tenham bens suficientes para viverem por si mesmos, de forma independente, os indivíduos são cada vez menos autônomos, no sentido de que são menos capazes de fazer o que necessitam por si mesmos e de serem senhores de si mesmos. Os indivíduos lançam-se ao mundo como se dependessem só de si, sem perceber que o poder social aumenta progressivamente. Essa confiança presunçosa em si mesmo é, para Tocqueville, exacerbada, ilusória, uma embriaguez, pois “não imaginando que possam, dali em diante, necessitar de requerer o socorro de seus semelhantes, não opõem dificuldade a mostrar que só pensam em si”[9].

A despeito de se acharem independentes, os indivíduos das sociedades democráticas, a cada esforço, diminuem o próprio poder e aumentam o poder social e político. Com relação ao poder social: “É fácil prever que está se aproximando o tempo em que o homem será cada vez menos capaz de produzir por si mesmo as coisas mais comuns e mais necessárias à sua vida”[10]; no que tange o poder político: à medida que ficam mais independentes, os cidadãos são menos capazes de lidar com questões básicas da vida pública e corre-se o risco de “A administração pública terminará dirigindo todas as indústrias a que não basta o empenho de um cidadão isolado?”[11]. Sob o individualismo, o homem perde a capacidade de agir e de pensar por si mesmo.

2.2 A solidão de seu próprio coração

Do ponto de vista psicológico, a independência não provoca apenas a ilusão do bastar de si, do referir tudo a si. Ela provoca uma “inquietude secreta” na relação entre os indivíduos. Sabe-se que a igualdade era, para Tocqueville, a grande paixão dos povos democráticos. Mas a despeito de prezarem a igualdade, não é possível produzir condições perfeitamente iguais. Sempre resta algo da antiga desigualdade que se busca desmantelar. No caso da “inquietude secreta”, ela é provocada pelo ódio das pregressas relações de desigualdade. A democracia, portanto, “leva os homens a não se aproximar de seus semelhantes; mas as revoluções democráticas dispõem-nos a fugir uns dos outros e perpetuam no seio da igualdade os ódios que a desigualdade fez nascer”[12].

Os mais pobres conservam os preconceitos dos seus pais sem suas crenças; os cidadãos que estavam no topo da hierarquia da sociedade desigual, conservam muito de seus sentimentos da antiga grandeza. As revoluções democráticas causam certo descompasso nas relações sociais, fazendo com que os indivíduos não sintam simpatia por seus concidadãos e sensação de que nutrem interesses comuns. Esse sentimento de estranheza nas relações ameaça encerrar o indivíduo na “solidão de seu próprio coração”[13].

Esta bela e célebre frase de Tocquevile sobre a solidão é, muitas vezes, mal interpretada[14]. Não obstante a solidão seja uma das características marcantes do individualismo, ela não é, necessariamente, negativa. A solidão não é algo próprio do individualismo, ligado à sua negatividade. Da mesma maneira que o “referir tudo a si” ganhou novo significado nas sociedades democráticas, a solidão também foi ressignificada, transformada, duplicada.

Por um lado, a solidão é divina, como uma bênção que Deus criou para que os homens tenham a habilidade de se afastarem do mundo para encontrar libertação, alívio. É a essa forma de solidão que Tocqueville atribui o despertar da sua curiosidade intelectual. Ao encontrar-se na solidão, foi levado a conhecer o desconhecido, a questionar suas próprias crenças[15]. Por outro lado, Tocqueville compartilhava do que descrevia como “inquietude secreta”. Em cartas, revela que se sentia como um estranho na nova sociedade que via nascer:

 […] você não poderia imaginar o sofrimento e a crueldade que experimento ao viver nesse isolamento moral, sentindo-me fora da comunidade intelectual do meu tempo e do meu país. Solidão em um deserto me pareceria menos dura do que esse tipo de solidão entre os homens”[16].

A “solidão de seu próprio coração” é essa, mais dura do que estar só no deserto. É uma solidão moral. Não é uma solidão que se objetiva, mas uma solidão da qual não se consegue fugir. É como se, ao estar junto com seus concidadãos, o indivíduo estivesse cercado de quatro muros invisíveis. Ele enxerga o outro, mas não consegue se aproximar verdadeiramente dele, sentir que compartilham de interesses comuns. A solução para aplacar a “inquietude secreta” é o isolamento.

2.3 O desejo cambiante

Nos Estados Unidos, Tocqueville diz encontrar os homens na mais feliz condição que há. Mas, ao mesmo tempo, “pareceu-me que uma espécie de nuvem toldava habitualmente seus traços”[17]. A razão disso é uma inquietude possessiva – para fundir os termos de Tocqueville e Macpherson -, o afã por conquistar bens que não se possui. A transição das sociedades aristocráticas para a democracia provocou a liberação de desejos. A multiplicação de desejos faz com que se perca a capacidade de perceber com quanto bem-estar já se vive e faz com que o indivíduo ponha “tanta precipitação em se apossar dos que passam ao seu alcance que até parece temer a cada instante que vai deixar de viver antes de ter desfrutado deles”[18]. Por isso, se apossam dos bens e os largam logo em seguida em busca de novas fruições, o que Tocqueville chama de “desejo cambiante”.

Os indivíduos passam a agir como Pahóm, personagem do conto “De quanta terra um homem precisa?”, de Liev Tolstói. Pahóm, camponês incomodado pela pouca quantidade de terra que tinha, diz que se tivesse mais terra não teria medo do próprio diabo. Este, atento, diz: “Eu vou lhe dar terra suficiente; e através desta terra vou mantê-lo em meu poder”. No ponto alto de sua busca, ao conhecer um povoado que tinha terra em tamanha quantidade que parecia infinita, Pahóm é desafiado pelo chefe do povoado. Este lhe disponibilizaria, por valor ínfimo, quanta terra fosse capaz de marcar do raiar ao pôr do sol.

Na expectativa pela quantidade de terra que poderia amealhar, Pahóm vai em direção ao sol para marcar as terras que seriam suas. Mas sua ambição era tanta que ele foi longe demais. No desespero de voltar para circundar o terreno, cansado, correu o máximo que pôde. Conseguiu chegar ao ponto que precisava para conquistar as terras, mas estava morto. Tolstói, então, afirma: “O criado pegou a pá e cavou uma sepultura longa o bastante para acolher Pahóm e o enterrou nela. Um metro e oitenta da cabeça aos calcanhares era tudo de que ele precisava”[19].

Tanto Tolstói quanto Tocqueville enxergam uma busca possessiva que só encontra como freio a morte. Mas esta, além de funcionar como freio, opera também como uma espécie de mola propulsora. A perspectiva da morte é um estimulante, que faz com que os indivíduos imaginem “a cada instante mil outros [bens] de que a morte o impedirá de fruir, se não se apressar”[20]. Essa inquietação e ardor do desejo cambiante torna as almas dos indivíduos “ao mesmo tempo ardente e frouxa, violenta e esmorecida”[21]. Os indivíduos, nota Tocqueville, perdem a capacidade de persistência e esforço. Já que seus desejos mudam de foco o tempo inteiro, o melhor é alcançar os bens de forma rápida e fácil. Por isso, “muitas vezes a morte é menos temida do que a continuidade dos esforços na mesma direção”[22].

2.4 O paradoxo psicológico

É possível perceber que Tocqueville traça, aos poucos, uma psicologia paradoxal do indivíduo. O que ele via era que a revolução igualitária abria um universo de novas expectativas e possibilidades para um número crescente de pessoas, criando a ilusão de que os esforços revolucionários construíram boas estradas que permitiriam a todos uma trajetória fácil rumo ao sucesso. Mas Tocqueville assevera que a “mesma igualdade que permite que cada cidadão nutra vastas esperanças toma todos os cidadãos individualmente fracos. Ela limita de todos os lados suas forças, ao mesmo tempo que permite que seus desejos se expandam”[23]. Essa oposição “entre os instintos que a igualdade faz surgir e os meios que ela fornece para satisfazê-los atormenta e cansa as almas”[24]. O excesso de desejo cambiante cansa. É nesse ponto que o paradoxo psicológico de Tocqueville ganha contornos mais claros. O indivíduo moderno, das sociedades democráticas, tem uma infinidade de possibilidades para alcançar o sucesso, mas também é o que mais se cansa e se decepciona. O sucesso não é, para Tocqueville, algo meramente objetivo, mas tem caráter subjetivo.

Stephen Holmes (2009), na análise que faz das “Lembranças de 1848”, em que Tocqueville relata suas memórias da revolução desse ano, depreende a maneira como o francês, ao analisar as ações dos eventos, enxergava a psicologia da ação humana numa tese de “saved by danger and destroyed by sucess”, na qual a busca desenfreada pelo sucesso leva ao resultado oposto. Nas eleições de 1849, por exemplo, os componentes do partido moderado, mesmo vencendo com folga, sentiam-se como derrotados, porque a vitória não foi tão retumbante quanto eles imaginavam. Nesse caso, o sucesso ou insucesso das ações não é objetivo, mas subjetivo. O imenso desejo de sucesso faz com que não se enxergue a vitória.

Na busca pelos bens materiais ocorre o mesmo, o que Tocqueville explica de forma mais clara nos capítulos XIV e XVI do volume II de “A Democracia na América”. Assim como todos os animais, os seres humanos têm paixões materiais. Mas os humanos conseguem multiplicar suas fruições ao infinito. O que permite essa multiplicação é a capacidade humana de se elevar acima dos bens do corpo. Por isso “o que eleva, aumenta, amplia a alma, torna-a mais capaz de ter êxito naquelas empresas em que não se trata dela”[25]. A busca pelos bens materiais do desejo cambiante, em que é necessário alcançar os bens de forma mais rápida e fácil, faz com que se perca a noção de que é necessário o imaterial para alcançar o material. Contentar-se com o bem-estar material tem como efeito, portanto, perdê-lo pouco a pouco.

Para alcançarem o sucesso, as fruições materiais, os indivíduos necessitam ser livres. Mas a busca excessiva pelo sucesso e por esses bens “entrega-os ao primeiro amo que se apresenta. A paixão pelo bem-estar se volta então contra si mesma e afasta sem perceber o objeto de sua cobiça[26].

Em suma, para Tocqueville, os povos democráticos, nivelados pela igualdade, são os que produzem maior bem-estar material para número maior de pessoas. Mas são, também, os menos capazes de senti-los. Na inquietude possessiva e na insatisfação constante despertada pela busca desenfreada pelos bens materiais, os indivíduos das sociedades democráticas produzem o oposto do que desejam.

3. Simmel: o dinheiro como liberação e como perda de sentido da vida

A postura de Georg Simmel em relação à modernidade é ambivalente[27]. Se por um lado a economia de dinheiro, a monetarização, a despersonalização e a funcionalização das relações sociais provocam a liberação formal do indivíduo das relações de dependência pessoal do mundo feudal e possibilita uma reunificação em formas de associação que não seriam possíveis sem o caráter objetivo do dinheiro; por outro, estes mesmos aspectos abrem caminho para a predominância dos meios sobre os fins. O dinheiro, que inicialmente interpõe uma instância objetiva de valor monetário entre a pessoa e a coisa, passa a ser tido como um equivalente total e exato do objeto, derivando disso a inquietação e a insatisfação da época moderna[28]. O sociólogo alemão, portanto, refuta a tese da perda de liberdade e a substitui pela tesa da perda de sentido[29].

 Antes de expormos esses dois lados da compreensão de Simmel acerca da modernidade, cabe uma análise sobre a diferenciação do sujeito e do objeto e da objetivação do desejo e do valor dos pontos de vista cognitivo e volitivo, já que o dualismo entre sujeito e objeto é a base da sociogênese do sistema econômico[30]

3.1 O dualismo entre sujeito e objeto: diferenciação e objetivação do desejo e do valor

Do ponto de vista cognitivo, essa diferenciação entre sujeito e objeto é um distanciamento entre o eu e o objeto que o precede. Ao nascer, o eu do sujeito e seus objetos são indivisíveis, as impressões que o mundo causa preenchem a consciência sem que o sujeito esteja separado dela. O processo de diferenciação cinde essa unidade quando o homem diz “Eu” e se distingue do mundo exterior, se distanciando dele. O eu, o sujeito, e o objeto se distanciam[31].

Do ponto de vista volitivo, há distanciamento da razão prática com relação à razão teórica, uma clivagem entre o eu e o objeto que aparece como a distância que o sujeito se esforça em superar e que está na base do desejo do objeto. Se o sujeito é o corolário do objeto, o valor é o complemento objetivo do desejo, sua objetivação. O valor do objeto deriva do fato de que a obtenção desse objeto exige esforço por parte do sujeito para superar as distâncias que separam o desejo da sua realização. O valor é a medida da distância entre desejo e sua realização. O valor como complemento do desejo o transforma em objeto[32]

Essa objetivação do desejo que instaura uma distância entre o sujeito desejante e o objeto desejado é condição da troca, porque é apenas quando o desejo é objetivado (ganha um valor) que se torna possível que eu deseje a mesma coisa que outro. Pela comparação dos desejos, pela correlação dos objetos desejados, surge um valor determinado. O valor é, pois, relacional, não sendo determinado nem pelo sujeito nem pelo objeto, mas pela relação com a totalidade dos objetos[33].

Na troca, a relação fundamental do sujeito com o objeto passa aos próprios objetos, de forma a poderem medir-se uns pelos outros. Essa correlação de valor entre objetos, que coloca entre eles a relação que há entre sujeito e objeto, faz com que os valores subjetivos passem a um nível objetivo. O valor, relativo ao sujeito, é, no entanto, autônomo com relação a ele, supra-objetivo.

3.2 O dinheiro como liberação e multiplicação dos laços entre os homens

A destruição da unidade, que Simmel enxerga no próprio processo de desenvolvimento cognitivo da pessoa, é, também, o que provoca a contradição da época moderna em oposição à época medieval. Na Idade Média, o homem estava intrincado em relação a uma comunidade ou a uma propriedade feudal, com uma associação ou com uma corporação. A personalidade individual era incorporada nos círculos de interesses sociais[34]. Essa unidade foi dissolvida pela modernidade, o que possibilitou a autonomia da personalidade e deu a ela liberdade de movimentos, por um lado; mas deu por outro um caráter objetivado aos conteúdos práticos da vida. Passou-se a impor nos mais diversos domínios da vida as próprias leis das coisas separadas das personalidades singulares.

Dessa forma a modernidade conseguiu separar e autonomizar o sujeito e o objeto, para que ambos realizassem o próprio desenvolvimento de forma mais pura e mais rica”[35]. O que permite essa separação entre sujeito e objeto é a economia de dinheiro, que interpõe entre a pessoa e a coisa uma instância objetiva em si mesma do valor monetário. Nessa função, o dinheiro atribui caráter impessoal a toda atividade econômica e aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa.

Um exemplo que Simmel dá dessa independência individual é a relação da pessoa com as associações ou corporações que integra. Na Idade Média, a corporação integrava o homem por inteiro. Mesmo se se dedicasse a interesses específicos, ela existia diretamente nos seus membros, os absorvendo completamente. A partir da economia de dinheiro, as associações puderam exigir somente contribuições monetárias aos seus membros, libertando-os da colaboração pessoal, já que estes passaram a se vincular às associações pela doação e recepção de dinheiro e não como pessoas inteiras. Formou-se, assim, um novo fio condutor para os conteúdos da vida.

Se o dinheiro separa sujeito e objeto, ele possui, também, um efeito agregador, possibilitando a reunião de pessoas que, por diferenças marcantes, não se uniriam de outra forma, porque as contribuições monetárias disfarçam “as diferenças confessionais”[36]. Simmel dá o exemplo da associação Gustav-Adolph, uma grande comunidade de ajuda às comunidades protestantes pobres que não existiria sem a objetividade do dinheiro, porque reunia em um projeto comum luteranos, reformados e unidos, três ramos da igreja protestante alemã “que não aceitariam outro motivo para se unir”[37].

Nesse ponto, Simmel critica quem lamenta o feito separador e alienador do intercâmbio monetário, sustentando que a necessidade de trocar dinheiro para obter valores definidos e concretos gera ligação altamente forte entre membros de um setor econômico. O homem moderno, aponta Simmel, encontra-se numa rede de ligações tecida por centenas de interesses monetários sem os quais ele não poderia existir, o que contribui para o encadeamento. É o dinheiro que possibilita a divisão do trabalho, conectando os homens de maneira irresistível, tendo como consequência que “apenas o trabalho de todos gera a união econômica abrangente que completa os desempenhos unilaterais do indivíduo”[38]. A consequência disso é que o dinheiro instaurou mais laços entre os homens que nos estágios de associação feudal.

3.3 A consequência estranha: o dinheiro como fonte de individualismo, ilusão entre meios e fins e perda de sentido da vida

Se por um lado o dinheiro gera essa reunificação, por outro faz surgir o que Simmel qualifica como uma “consequência estranha”, que é abrir espaço vasto para a individualidade e para o sentimento de independência. Na modernidade os homens dependem de muito mais pessoas, fornecedores, do que em épocas anteriores, mas pode permutá-los como bem entender. Essa relação, para Simmel, produz forte individualismo.

Aqui Simmel se aproxima de Tocqueville: “não é o isolamento em si que aliena e distancia os homens, reduzindo-os a si próprios. Pelo contrário, é uma forma específica de se relacionar com eles, de tal modo que implica anonimidade e desinteresse pela individualidade do outro, que provoca o individualismo”[39] . Como vimos em Tocqueville, não é a solidão em si que enfraquece e distancia os homens, mas uma maneira específica de solidão que surge nas sociedades democráticas, modernas: a solidão entre os homens, que é fonte de individualismo.

O dinheiro, que é uma forma de liberação de “laços constrangedores”, pode provocar, a despeito disso, uma opressão. Dois exemplos que Simmel dá em “O Dinheiro na Cultura Moderna” são elucidativos: o da abstração do desempenho pessoal por meio do dinheiro e o dos camponeses que trocam terra por dinheiro.

A abstração do desempenho pessoal apoia a liberdade individual, porque libera o indivíduo de obrigações desde que pague por isso. Uma clássica lei romana, conhecida como “a magna carta da liberdade pessoal”, exemplifica Simmel, garantia a possibilidade do indivíduo liberar-se de todos os seus deveres mediante pagamento do seu valor em dinheiro. Em Atenas, os tributos em naves e tripulações foram substituídos pelo pagamento em dinheiro. Dessa forma, a pessoa não dá mais a si mesma como pagamento, mas algo abstrato. A substituição do “dar a si mesmo” pelo pagamento em dinheiro libera o indivíduo da cadeia específica que se estava implicado pela obrigação do trabalho. Mas Simmel alerta: essa liberação do desempenho pessoal provoca a renúncia, no caso de Atenas, a uma atividade política autônoma. Na economia monetária as pessoas não se dão conta de que “nos deveres, dos quais nos livramos comprando, existem muitas vezes ainda direitos e significações mais sutis que abandonamos junto com eles”[40].

O mesmo ocorre com as vendas. Quando vendemos algo, afirma Simmel, temos um sentimento de libertação. O valor que estava preso a um objeto fixo é transformado numa multiplicidade de possibilidades ao ser convertido em dinheiro: é possível dar ao valor do objeto a forma que desejarmos. Essa liberdade, porém, pode significar ausência de conteúdo da vida.

Tendo isso em vista, uma legislação do século XVIII, que Simmel não precisa qual, ao mesmo tempo que permitia a substituição dos serviços de camponeses por dinheiro, proibia que os senhores forçassem os camponeses a esta substituição. À primeira vista não haveria problema nesse tipo de transação e, pelo contrário, o camponês estaria livre do jugo do senhor ao vender seu direito à terra. Mas, ao abrir mão de suas terras por dinheiro, o camponês abria mão ao mesmo tempo da chance de atividade útil, de uma orientação do conteúdo da vida que a terra o permitia.

No século XVIII, os pagamentos aos camponeses por suas terras “deram-lhes uma liberdade atual, mas tiravam-lhes o impagável, que proporcionou, antes de tudo, o valor da liberdade: o objeto fundamental da atividade pessoal”[41].

Simmel opera no mesmo sentido que Tocqueville com relação à busca pelo bem-estar, com a ideia de que uma ação que gera um sentimento de liberdade atual pode anular justamente o que proporcionou esta liberdade. Se em Tocqueville a “paixão pelo bem-estar se volta, então, contra si mesma”, para Simmel a liberação que promove uma liberdade atual pode se voltar contra si mesma.

Essa libertação que se volta contra si porque, à medida que mais coisas podem ser compradas com dinheiro, este se apresenta como “polo imóvel no fluxo fugaz das aparências”[42]  e as pessoas deixam de levar em consideração que os objetos da transação econômica têm aspectos que não são expressos em dinheiro. O aspecto qualitativo perde importância psicológica por conta da economia monetária. É isso que faz com que o dinheiro apareça na época moderna como fim absoluto: “O cálculo necessariamente contínuo do valor em dinheiro faz com que este apareça, finalmente, como o único valor vigente”[43].

A ilusão de que se possui “no dinheiro o equivalente exato e total do objeto”[44] é a fonte da inquietação e da insatisfação dos modernos. Com isso, sem perceber, os indivíduos são tomados por sentimentos que enfraquecem. Nesse mundo em que o dinheiro é o fim absoluto, o sentido da vida escapa sempre, de um objeto quantitativo a outro. Há, em Simmel, portanto, assim como em Tocqueville, a tese de que a liberação que ocorre na modernidade provoca o enfraquecimento dos indivíduos, porque as satisfações definitivas são cada vez menos realizadas e “o esforço e toda atividade, na verdade, não valem a pena”[45].   

O dinheiro como fim passa a ser a medida de toda a felicidade e satisfação. O que era meio torna-se fim. “Mas quando este alvo é alcançado, finalmente, surgem, inúmeras vezes, um aborrecimento e uma frustração mortais”[46]. Um bom exemplo para ilustrar essa frustração é o dos homens de negócios que poupam dinheiro para gozar a aposentadoria. Ao se afastarem dos negócios, que são as circunstâncias que concentram suas consciências no aspecto valorativo do dinheiro, este começa a revelar seu caráter como simples meio e se torna inútil quando a vida passa a depender somente dele. O dinheiro, que era tudo, revela-se como “nada mais que uma ponte aos valores definitivos, e não podemos morar numa ponte”[47].

Notas

[1] KOSELLECK, p. 316.

[2] Ibidem.

[3] EHRENBERG, 2010, p. 132.

[4] HOBBES, 2014.

[5] MACPHERSON, 2005.

[6] LOCKE, 2005, p. 409.

[7] TOCQUEVILE, 2004, p. 409.

[8] TOCQUEVILLE, 2005, p. 75.

[9] Ibidem, p. 123.

[10] TOCQUEVILLE, 2004, p. 146.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, p. 124.

[13] Ibidem, p. 121.

[14] PATIELI, 2016.

[15] Ibidem.

[16] TOCQUEVILLE apud PATIELI, 2016, p. 184, tradução nossa.

[17] TOCQUEVILLE, 2004, p. 165.

[18] Ibidem.

[19] TOSLTÓI, 1886, p. 138.

[20] TOCQUEVILLE, 2004, p. 166.

[21] Ibidem, p. 167.

[22] Ibidem.

[23] Ibidem.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem, p. 181.

[26] Ibidem, p. 172.

[27] VANDENBERGHE, 2005.

[28] SIMMEL, 1886.

[29] VANDENBERGHE, 2005.

[30] Ibidem.

[31] Ibidem.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

[34] SIMMEL, 1886.

[35] Ibidem, p. 1.

[36] Ibidem, p. 4.

[37] Ibidem.

[38] Ibidem, p. 5.

[39] Ibidem, p. 6.

[40] Ibidem, p. 7.

[41] Ibidem, p. 8.

[42] Ibidem.

[43] Ibidem.

[44] Ibidem.

[45] Ibidem, p. 9.

[46] Ibidem, p. 10.

[47] Ibidem, p. 11.

Referências

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