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Os quatro muros de não saber agir: o paradoxo da liberação (parte 2), por Yago Paiva

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Jackson Pollock. Convergency, 1945

Por Yago Paiva

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  1. Weber: do homo religiosus ao homo oeconomicus ou do desejo à jaula de aço

Na introdução de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Max Weber afirma que, somente na civilização ocidental, surgiram fenômenos culturais que repousam numa linha de desenvolvimento que possui significância universal. Embora em outras partes do mundo povos tenham experimentado conhecimentos variados, apenas “no Ocidente a ciência existe em um estágio tal de desenvolvimento que reconhecemos atualmente como válido”[1]. A partir disso, a questão que guia as pesquisas de Weber é por que os interesses capitalistas em outras regiões não levaram o desenvolvimento científico, artístico, político e econômico pela via da racionalização como ocorreu no Ocidente?[2].

A princípio, ressalta Weber, a resposta a essa questão pode ir no sentido de que o desenvolvimento das possibilidades técnicas foram o que mais influenciaram a forma peculiar do capitalismo ocidental. Como se sabe, Weber escapa da obviedade da influência das possibilidades técnicas e sustenta a resposta bem conhecida de que a gênese do capitalismo moderno ocidental se deve ao ascetismo protestante.

Para o fim que perseguimos aqui, não nos interessa pormenorizar essa questão de forma ampla, mas apenas destacar alguns princípios e práticas econômicos do homo religiosus que, quando liberados, derivam no homo oeconomicus “puro”. A liberação desses princípios e práticas econômicas pelos puritanos – que rompe com as inibições tradicionalistas -, e que eram para eles técnicas de ascese e sinal da salvação, teve como consequência o assentamento do capitalismo em seus próprios fundamentos. O trabalho em uma vocação e a renúncia à espontaneidade da vida, que eram desejados pelos puritanos, se tornou algo forçado e que solapa os próprios fundamentos religiosos. Uma jaula de ferro.

Para analisar tal ponto, nos apoiaremos no Capítulo V da “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo“, “Ascetismo e o Espírito do Capitalismo”, o último capítulo da obra, pois neste Weber fundamenta o homo oeconomicus derivado do homo religiosus.

4.1 O aspecto providencial do trabalho e a racionalização econômica como prática ascética do homo religiosus

Com o fim de compreender a conexão entre as ideias religiosas do protestantismo ascético e as suas condutas econômicas religiosas, Weber se apoiar principalmente no puritanismo inglês, porque, como ele justifica, este dava base mais consistente à ideia de vocação. Nesse sentido, Richard Baxter, presbiteriano de Westminster, foi escolhido por Weber para embasar sua análise.

Weber se impressiona com a maneira pela qual Baxter trata a aquisição de riqueza, tida como um grande perigo e fonte de tentações. No entanto, a objeção moral com relação à busca por dinheiro e riqueza está ligado apenas à possibilidade de relaxamento da conduta por conta da seguridade que as possessões provocam. E o descanso, para os puritanos, ocorre no outro mundo A ascese puritana pregava, então, a renúncia ao lazer, à diversão, pois estas tomavam o tempo que poderia ser dedicado às atividades que servem para aumentar a glória de Deus. O desperdício para ou puritanos é, aponta Weber, o primeiro e o mais mortal dos pecados.

Em diversos temas, como o significado do trabalho, divisão do trabalho e da mendicância e da pobreza, Weber se vale de comparações entre a ética católica e a ética protestante. O trabalho, em Tomás de Aquino, era necessário apenas naturali ratione, para a manutenção do indivíduo e da comunidade. Feito isso, perdia todo significado. Para a teologia medieval, afirma Weber, a atividade mais elevada era a oração e o canto. Na ética protestante, o trabalho ganha outro sentido. A contemplação é vista como algo sem valor, sendo a realização ativa de uma vocação profissional mais de acordo com a vontade de Deus.

Baxter, ao contrário de Aquino, pregava o trabalho duro e contínuo, porque este é uma técnica ascética para o autocontrole com relação às tentações, a vida impura. O trabalho, afirma Weber, passou a ser considerado em si mesmo, como a finalidade da vida ordenada por Deus. O trabalho considerado em si mesmo é uma técnica ascética que serve inclusive para evitar que os ricos relaxem, pois, mesmo “os ricos não devem comer sem trabalhar, pois, […] Deus preparou uma vocação, que ele poderia professar e na qual ele deveria trabalha”[3].

No que tange à divisão do trabalho, Aquino interpretava-a como consequência do esquema divino das coisas, ex causis naturalibus, afirma Weber. Em Lutero, a diferenciação em classes e ocupações era resultado da vontade divina, a qual era um dever religioso resignar-se. No puritanismo, o interesse econômico privado ganha caráter providencial. O propósito da divisão do trabalho deve ser analisado pelos frutos que produz. Aqui, Weber estabelece conexão entre o pensamento puritano e Adam Smith, já que a especialização das profissões tem como consequência a melhora das habilidades e da produção, o que por fim serve ao bem comum.

A especialização não é vista pelos puritanos apenas desse ponto de vista utilitário, mas como uma maneira de evitar o ócio. Fora de uma profissão especificada, o trabalho é irregular e casual, o que abre muito espaço para o ócio, que, como vimos, é um pecado mortal para os puritanos. Na construção de uma técnica ascética mundana, os puritanos pregam o trabalho sistemático, metódico.

O centro da discussão sobre a obtenção de riqueza, no entanto, está mais ligado à perseguição da lucratividade, que é o critério mais importante da conduta puritana para Weber. Sabe-se que segundo o calvinismo “Pelo decreto de Deus e para a manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterno e outros preordenados para a morte eterna”[4].

A questão é: como saber quem é eleito? O trabalho e aproveitamento de cada chance de lucro são os sinais mundanos da salvação. “Pois se aquele Deus, cuja mão o puritano via em todas as eventualidades da vida, mostrava a um dos Seus eleitos uma chance de lucro, Ele deveria fazer isso com algum propósito”[5]. A oportunidade de lucro é tomada, pois, como um chamado. Caso se negue tirar o máximo possível de ganhos que uma determinada profissão pode oferecer, viola-se os fins desta e recusa-se a ser servo de Deus e a aceitar suas dádivas. A riqueza, pois, só é rechaçada do ponto de vista ético, caso seja utilizada para a tentação e o ócio.

4.2 Da manta leve do homo religiosus à jaula de aço do homo oeconomicus

A justificação religiosa do fazer lucro, diz Weber, justifica as atividades dos homens de negócio. Mas, ao mesmo tempo, mantêm os puritanos asco pela ostentação da riqueza, apreciando a “ética do homem empreendedor sóbrio de classe média”[6]. Aqui, Weber destaca que o Deus do Velho Testamento, que abençoa os Seus ainda nesta vida pela sua obediência, exerce influência forte nos puritanos, como Baxter, que interpretava os ensinamentos das Escrituras como artigos de um livro de leis.

É inevitável, nesse ponto, pensar em relações entre o espírito puritano, que enfatiza o Velho Testamento e as Escrituras como leis, a recompensa ainda nesta vida pela obediência, e por isso a justificação da perseguição ao lucro, e o judaísmo, mais especificamente na análise que Marx faz sobre o espírito judeu em “Sobre a Questão Judaica”. Marx questiona “Qual é o culto secular do judeu? O negócio. Qual é o seu deus secular? O dinheiro” […] “Identificamos, portanto, no judaísmo um elemento antissocial universal da atualidade”[7].

Weber, por sua vez, ressalta que diversos escritores caracterizavam o puritanismo inglês como “hebraísmo inglês”. Assim, poderia se pensar, com Marx, que o ethos capitalista moderno já se encontrava no judaísmo. Não obstante, Weber faz um alerta: “deve-se ser muito cuidadoso ao formular paralelos”[8]. Os judeus, afirma Weber, se posicionaram ao lado do capitalismo aventureiro e o seu ethos era o capitalismo pária. Já o puritanismo carregava o ethos da organização racional do capital e do trabalho.

Por conta disso, para Weber, a valorização religiosa do trabalho sistemático, contínuo, incansável, numa profissão mundana como meio elevado para o ascetismo, devem ter sido “a mais poderosa alavanca para a expansão daquela atitude perante a vida, a que chamamos espírito do capitalismo”[9]. A limitação do consumo aliada a liberação da atividade lucrativa teve como resultado óbvio, aponta Weber, a acumulação de capital. Como a fruição era limitada, investia-se o capital produtivamente. À medida que essa perspectiva puritana se espraiou, ela favoreceu o desenvolvimento de uma vida racional econômica burguesa. A difusão dessa “atitude perante a vida” era, para Weber, mais importante do que o mero encorajamento da acumulação de capital e estava no berço do homem econômico moderno.

A secularização do homo religiosus em homo oeconomicus para Weber era um risco que tanto os protestantes quanto os católicos sabiam que corriam. Quando a atividade econômica liberada chegava em sua plenitude, o risco era a regulação da conduta se enfraquecer. Aqui, Weber cita um texto de John Wesley, bastante elucidativo quanto a essa relação “aparentemente paradoxal” entre essência religiosa e riqueza. Wesley afirma que onde os ricos se multiplicam, a essência religiosa declina na mesma proporção: “Pois a religião deve necessariamente produzir tanto a indústria quanto a frugalidade, e elas não podem senão produzir ricos. Entretanto, conforme os ricos aumentam, assim o farão a vaidade, o ódio e o amor do mundo em todas as esferas”[10].  

Sabia-se, portanto, que, ao utilizar a aquisição de riqueza como método de regulação da conduta e do conteúdo religioso, era possível ter como consequência a morte do conteúdo pelo método. Quando o entusiasmo religioso com as práticas econômicas passou, o pleno efeito econômico se manifestou, sem o sentido de implicar num modo de vida pleno. As raízes religiosas morreram lentamente abrindo caminho para o utilitarismo mundano. Esse método sem conteúdo transformou-se num travesseiro vazio. Nos termos de Simmel, o meio se tornou fim último. Ou, na concepção de Tocqueville, o método de vida se voltou contra si mesmo, afastando o télos que se buscava.

O puritano utilizava o trabalho como vocação para produzir uma vida plena. O homem econômico é o obrigado a isso, sem ter o sentido de plenitude da vida. Assim, Weber afirma: “O puritano desejava trabalhar em uma vocação; nós somos forçados a fazê-lo”[11]. O ascetismo religioso liberou as práticas econômicas que se liberaram da moralidade religiosa. Aqui, repousa a tese da jaula de aço de Weber.

A ordem econômica moderna ficou sujeita às suas próprias condições técnicas e econômicas maquinais, que passou a determinar a vida de todos os indivíduos. Como mostra Weber, para Baxter o cuidado dos bens deveria assentar-se sobre os ombros do “santo como uma manta leve, que pode ser jogada de lado a qualquer momento”[12]. “Mas o destino decretou que o manto deveria tornar-se uma jaula de ferro”[13]. Os bens materiais ganharam importância inexorável na vida dos homens, como nunca.

O cumprimento da vocação, assim, como “travesseiro vazio”, não podendo ser relacionado a valores elevados, deixa de ser justificado pelo indivíduo e passa a associado não a uma ética, mas a paixões puramente mundanas, de puro desempenho, o que, para Weber, o atribui caráter de esporte. Poderá se pensar, ainda, afirma Weber, que essa “petrificação mecanizada” é o último estágio do desenvolvimento cultural, um nível de civilização nunca alcançado, de desempenho esportivo generalizado e sem sentido, de “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração”[14].

  1. Foucault e Ehrenberg: o paradoxo da razão de Estado no liberalismo clássico, a estética da existência positiva do empresário de si neoliberal e o problema da autonomia

O homo oeconomicus que Weber traça, como vimos, é o da jaula de ferro e do travesseiro vazio. A manta leve do cuidado com os bens materiais e o trabalho numa vocação como forma de ascese, algo desejado, se converte num fardo pesado, mecanizado e forçado. A prática econômica altamente racionalizada, de meio para uma vida elevada, transforma-se em fim em si mesmo, da mesma maneira que Simmel pensava sobre a economia de dinheiro. A liberação dessas práticas econômicas como método ascético e a busca do sucesso nas aquisições materiais como sinal de garantia da salvação se voltou contra si mesma, afastando o sentido religioso que era seu fim último, da mesma forma que postula Tocqueville sobre a perseguição do bem-estar nos Estados Unidos.

Michel Foucault, em suas aulas do Collège de France entre 1978 e 1979, intituladas “O Nascimento da Biopolítica”, descreve esse homo oeconomicus clássico como correlato a arte liberal de governar, por um lado; e, por outro lado, mostra como é desenhada uma nova racionalidade de governo e um novo homo oeconomicus sob o neoliberalismo.

A pretensão de Foucault era tratar da arte liberal de governar, mais precisamente a transformação da racionalidade liberal com o surgimento do neoliberalismo, como introdução a uma análise maior sobre biopolítica. Mas a introdução ocupou todo o curso. Essa ênfase que Foucault deu ao neoliberalismo suscitou amplo debate. O nosso objetivo nesta seção não é inquirir os motivos pelos quais Foucault se interessou pelo neoliberalismo, tampouco se o célebre filósofo francês se tornou liberal no fim da vida.

Para nosso o trabalho, o mais importante é apreender a abordagem de Foucault em dois pontos: (1) a lógica de análise foucaultiana sobre a liberação que os economistas clássicos perseguem no interior e contra a razão de Estado, mas que acaba reforçando e ampliando seus fundamentos. Essa lógica, buscaremos sustentar, é a mesma de Tocqueville, Simmel e Weber quanto às formas de liberação que se voltam contra seus próprios criadores; (2) como Foucault mostra que a nova racionalidade da arte liberal de governar, a neoliberal, constrói um novo homo oeconomicus. Diferentemente do homo oeconomicus weberiano e da tradição liberal clássica – sem desejo, controlado, disciplinado, tratado na análise econômica como mero número de mercadoria -, esse novo homo oeconomicus é sujeito ativo, desejante, que em vez de ser tratado como mercadoria é tido como um capital, que investe em si mesmo, que cuida de si mesmo tendo em vista ser competitivo no mercado, como empreendedor de si mesmo.

Trataremos de questionar, ainda, a partir Ehrenberg e do problema da autonomia, se essa nova estética da existência da forma empresa – que é, para Foucault, menos disciplinar – não cai na mesma lógica que identificamos nos autores anteriores, de se voltar contra si mesma. Qual é o resultado dessa busca pela totalização da concorrência, que formata o homo oeconomicus empresário de si, um sujeito concorrencialmente ativo? É possível enquadrar essa perseguição no paradoxo da liberação que vimos em Tocqueville, Simmel, Weber e Foucault?

5.1 O paradoxo da razão de Estado no liberalismo clássico

No modelo da razão de Estado, segundo Foucault, duas práticas se encontram: a ilimitação interna e a autolimitação externa. Para concorrer com os outros Estados, é necessário tirar o máximo dos cidadãos para aumentar o poder do Estado; mas, externamente, para evitar uma unificação que elimine a pluralidade e a concorrência, os Estado devem se autolimitar, num sistema de limitação extrínseca do poder estatal. Outra forma de limitação externa à razão de Estado é o direito. A partir do século XVI e XVII, surgem embates em torno das leis fundamentais do Estado que não podem ser violadas pelos governantes. 

No século XVIII, começa a ser constituída o que Foucault chama de “razão governamental moderna”, que formula limitações internas ao Estado, tendo em vista o funcionamento intrínseco do Estado. A noção de direitos deixa de ser importante, dando lugar à ideia de que as práticas estatais têm uma forma de operação correta e racional.

Essa nova maneira de autolimitação do Estado deixa de ser calcada no direito e na concorrência externa e passa a ser baseada nos princípios liberais de economia política. Nesse sentido, o mercado, que era um instrumento de força do Estado, passa a ser o que Foucault chama de “lugar de veridição”[15]. O bom governo deixa de ser o que funciona com base na justiça e passa a ser o que opera de acordo com uma verdade, a verdade dos mecanismos naturais de mercado. O bom governante passa a ser aquele que conhece tais mecanismos e os respeita, como postulam os fisiocratas. 

A questão de Foucault ao fazer a genealogia dos regimes de veridição não é criticar o excesso de racionalidade que tais regimes implicam. Mas entender o que haveria de “continuamente opressivo sob a razão, porque, afinal de contas, acreditem, a desrazão é igualmente opressiva”[16]. Portanto, o que há de “continuamente opressivo” no regime de veridição liberal? Foucault nesse ponto se aproxima dos nossos autores anteriores.

O problema da economia política está ligado à limitação do poder público. A questão do direito público não é mais a fundação da soberania e o estabelecimento de suas condições de legitimidade, como nos contratualistas. Mas como limitar por dentro o próprio exercício do poder público, como transformar o Estado de governo interno ilimitado da razão de Estado em um Estado de governo frugal. A despeito disso, a premissa básica dessa governamentalidade liberal é o respeito aos mecanismos espontâneos da economia. O central é o governo ser bem sucedido, o que é medido pelo regime de verdade, não pela legitimidade. Ora, se a premissa é o sucesso tendo como base um lugar de veridição que é o mercado, o que garante que para alcançar esse fim não se utilize de governos autoritários ou de um Estado ainda mais extensivo?

Nesse ponto, Foucault identifica paradoxos na forma de governo liberal, um certo paradoxo da frugalidade governamental. Os pontos de ancoragem dessa razão governamental são o mercado e a elaboração do poder público limitado pela utilidade. A categoria que abrange esses dois termos é o interesse. Não o interesse do Estado referido a si mesmo da razão de Estado, mas um emaranhado de interesses individuais e coletivos, de utilidade e benefício econômico, de mercado e poder público, de direitos fundamentais e independência dos governados.

A garantia da “independência dos governados” tem como base o princípio da utilidade. Qual é a premissa básica da utilidade? Mais com menos. Portanto, na perseguição da conexão entre mercado e poder público pelo interesse, pela independência individual, o que se construiu não foi menos Estado, mas menos governo. Em suma, mais Estado com menos governo. Esse é o paradoxo da frugalidade. Na busca por limitar o poder do Estado, com menos governo possível, o que se alcançou foi um poder estatal ainda maior.

Nesse sentido Foucault afirma que essa arte de governar é um “burilamento interno da razão de Estado, é um princípio para sua manutenção, para o seu desenvolvimento mais completo, para o seu aperfeiçoamento”[17]. É durante o período do governo frugal que são desenvolvidas práticas governamentais ainda mais extensivas e intensivas, que surge o Estado disciplinar, do panóptico de Bentham. A busca por limitar o Estado levou à necessidade de um Estado ainda mais poderoso. Podemos recordar aqui do que afirma Tocqueville sobre o crescimento do poder social e político à medida que os indivíduos agem para se libertar deles. Ou de Simmel, que nos mostra como a conversão de meios em fins nos torna reféns do Reino dos meios. Ou ainda de Max Weber, para quem as práticas econômicas racionalizadas, meios ascéticos protestantes para evitar a fruição da carne, no protestantismo, passam a se guiar por suas próprias leis e a corroer a religiosidade.

É a mesma lógica do raciocínio de Foucault com relação à razão governamental liberal: a perseguição da liberação de um mecanismo (neste caso a economia da razão de Estado) que opera como meio faz com que este se torne fim, produzindo o inverso do que pretende. “É, digamos assim, o equívoco de todos esses dispositivos que poderíamos chamar de “liberógenos”*, de todos esses dispositivos destinados a produzir a liberdade e que, eventualmente, podem vir a produzir exatamente o inverso”[18].

5.2 A estética da existência positiva do empresário de si neoliberal

Para Foucault, o neoliberalismo não é uma mera ressurgência de velhas práticas liberais, mas uma nova racionalidade governamental. A análise de Foucault dessa nova governamentalidade é baseada principalmente no neoliberalismo alemão da Escola de Friburgo – também conhecido como ordoliberalismo -, e no neoliberlismo americano da Escola de Chicago.

O liberalismo do século XVIII, como vimos, opera a partir de um Estado existente, o da razão de Estado, e busca fazer do mercado um lugar de veridição para as práticas estatais. O neoliberalismo alemão inverta essa fórmula: a liberdade de mercado não deve procurar um espaço no Estado, mas deve ser seu princípio organizador e regulador desde o início de sua existência até a última forma de intervenção.

Para tanto, o neoliberalismo alemão pratica uma crítica que se prende à República de Weimar, à crise de 1929, ao desenvolvimento do nazismo e à reconstrução do pós-guerra. Foucault atribui grande importância à questão do nazismo, porque foi a partir da crise do Estado nazista no pós-Guerra, em que o Estado alemão foi destruído e deslegitimado, que os neoliberais puderam tentar resolver a situação de “um Estado que não existe, um Estado que é preciso conseguir legitimar, um Estado que é preciso tornar aceitável aos olhos dos que dele mais desconfiam”[19]. Foi dessa forma que puderam pensar num Estado ao mesmo tempo fundado e limitado pela liberdade de mercado, invertendo a relação histórica entre Estado e mercado: ao invés de um mercado vigiado pelo Estado, era necessário estabelecer um Estado vigiado pelo mercado para dissipar a fobia do Estado.

Nesse sentido, a Escola de Frankfurt e a Escola de Friburgo partem da mesma problemática, que Foucault chama de weberianismo, que é a questão da racionalidade irracional da sociedade capitalista. A primeira escola pensa numa racionalidade social que poderia anular a irracionalidade econômica; já a segunda, busca reencontrar a racionalidade econômica que permitiria anular a irracionalidade social do capitalismo.

A arte de governo neoliberal alemão é definida, segundo Foucault, pela Gesellschaftspolitik (política de sociedade). Para evitar a racionalidade irracional da sociedade capitalista, não se deve corrigir os efeitos destruidores do mercado sobre a sociedade, mas intervir na própria trama social. Aqui Foucault salienta que o neoliberalismo não assume a postura passiva do liberalismo clássico. Não é um modelo contra a intervenção. Pelo contrário, a Gesellschaftspolitik é uma maneira de governar ativa, intervencionista, “é possível que nessa política liberal o número de intervenções econômicas seja tão grande quanto numa política planificadora, mas sua natureza é diferente”[20]. Foucault sustenta que para o ordoliberalismo o problema não é saber em quais coisas pode-se intervir, mas sim como intervir.

Dessa maneira, são duas as formas de intervenção ordoliberais: por ações ordenadoras e por ações reguladoras. Como ação ordenadora, Foucault cita o exemplo da agricultura. O problema não é encontrar o melhor sistema econômico levando em conta os dados básicos existentes da agricultura, mas sim pensar como o mercado pode modificar sua base material, tendo em vista que o essencial não é mais, como para o liberalismo, a troca e o respeito à propriedade individual, mas sim a concorrência.

Esse é o papel do Estado no modelo ordoliberal. Em vez de buscar corrigir os efeitos destruidores do mercado, deve-se intervir na própria sociedade, para que os mecanismos concorrenciais a alterem de forma a possibilitar a constituição de um regulador de mercado geral da sociedade, sendo o mercado um princípio de racionalidade política. 

O mercado como princípio de racionalidade política significa a mercantilização da sociedade, uma sociedade de mercadorias? Para Foucault, não. A sociedade regulada com base nos princípios de mercado que os neoliberais pensam não é a da troca de mercadorias, mas da concorrência, que deve ocupar o maior espaço social possível. Não é uma sociedade submetida ao efeito-mercadoria, mas à dinâmica concorrencial, uma sociedade empresarial. Esse ponto da análise de Foucault é fundamental, porque identifica uma mudança no homo oeconomicus, que deixa de ser aquele tradicional, que se constitui pela troca, pela mercadorização, pela jaula de aço e passa a ser caracterizado como homem da empresa e da produção. A racionalidade política neoliberal trata de difundir a forma empresa, de retomar uma espécie de ética social da empresa.

Partindo dessa ideia da necessidade de generalização da concorrência e da forma empresa, há uma maneira de abordar a economia e o Estado que é comum ao neoliberalismo alemão, ao americano e ao francês: a economia é um jogo entre parceiros que deve permear o máximo possível da sociedade, tendo o Estado a função de definir as regras do jogo e garantir que sejam aplicadas. Essas regras devem ser tais que o jogo econômico seja o mais ativo possível e beneficie o maior número de pessoas. Nesse sentido existe uma regra suplementar fundamental: que deve ser impossível que um dos parceiros perca tudo e fique definitivamente fora do jogo.

Essa maneira de entender o papel do Estado como definidor e assegurador de regras tem o objetivo de impedir que a Seguridade Social provoque efeitos econômicos, como, por exemplo, nas políticas de pleno emprego. Dessa forma, para os neoliberais, a Seguridade deve garantir simplesmente a não-exclusão de um jogo, com um projeto conhecido como imposto negativo, que tem como objetivo garantir subsídios somente a quem não alcançar patamar de consumo considerado socialmente decente. A ideia aqui não é criar serviços sociais universais, mas atuar apenas para atenuar a pobreza, não buscando incidir sobre suas causas, mas sobre seus efeitos. Essa renda suplementar deve ser concedida de forma que o indivíduo se mantenha com vontade de voltar ao jogo, de forma que seja preferível trabalhar a receber um benefício.

O imposto negativo permite, assim, que se abandone as políticas de pleno emprego. Se no século XVIII e XIX a população camponesa era uma reserva perpétua de mão-de-obra e produzia na terra o mínimo que necessitava até ser solicitada pelo mercado, a partir do século XX, a urbanização e a impossibilidade de as pessoas não empregadas produzirem por si mesmas o mínimo cria pressões no sentido do pleno emprego, o que os neoliberais buscam atenuar com o imposto negativo, que permite manter uma reserva de mão-de-obra e diminui os problemas com a oscilação do nível de empregos.  Além disso, esse mecanismo estabelece a indiferença entre quem não trabalha involuntariamente e quem fica desempregado voluntariamente. A única coisa importante é se o indivíduo está abaixo de certo nível ou não.

O imposto negativo é importante para a análise de Foucault porque ele entende esse método liberal como menos disciplinar do que o do pleno emprego, por exemplo. Sobre isso, Foucault afirma o seguinte:

“A única coisa importante é que o indivíduo caiu abaixo de certo nível, e o problema é, nesse momento, sem olhar mais longe e, por conseguinte, sem ter de fazer todas essas investigações burocráticas, policiais, inquisitórias, conceder-lhe um subsídio tal que o mecanismo pelo qual [ele] lhe é concedido o estimule a voltar ao nível do patamar e ele se sinta suficientemente motivado, ao receber a assistência, para ter vontade, apesar de tudo, de passar de novo acima do patamar. Mas, se não tem vontade, não tem a menor importância, e ele permanecerá assistido”[21].

Aqui, a título comparativo, podemos ressaltar uma consideração de Foucault sobre a ética clássica: 

“Vejamos, o que tentei mostrar é que ninguém, na ética clássica, é obrigado a se comportar de maneira a ser fiel com suas esposas, não tocar nos rapazes etc. Porém, se pretendessem uma existência bela, uma boa reputação, poder governar os outros, teriam que se comportar assim. Portanto, aceitavam estas obrigações de uma forma consciente em nome da beleza ou da glória da existência. A escolha estética ou política, pela qual decidiram aceitar esse tipo de existência constitui um modo de sujeição. Trata-se de uma escolha pessoal”[22].

É possível identificar aqui semelhanças entre a análise de Foucault sobre a governamentalidade neoliberal e a ética clássica. Não obstante todo o debate em torno da suposta afinidade de Foucault com o neoliberalismo, o próprio explica no “Nascimento da biopolítica”, aula do dia 7 de março de 1979, que se se deteve “demasiado longamente sobre esse problema do neoliberalismo alemão, foi primeiro por razões de método, [..] portanto de testar essa noção de governamentalidade e tratava-se, em segundo lugar, de ver […] com essa grade da governamentalidade também pode valer quando se trata de abordar fenômenos de outra escala”[23].

Dessa maneira, ao testar essa grade de governamentalidade na escala dos problemas neoliberais, identifica que, a governamentalidade neoliberal baseada na forma empresa e no imposto negativo – que, aliás, Foucault assinala ser um projeto que não foi levado até o fim – tem como característica um tipo de existência que constitui um modo sujeição que se decide aceitar, que é uma escolha pessoal. A forma empresa constitui uma estética da existência. Foucault destaca que para Hayek o liberalismo precisa ser um pensamento vivo, fabricar utopias e não deixar a atividade utópica apenas para o socialismo.  

Nos Estados Unidos, o neoliberalismo aparece ancorado à crítica do New Deal, do intervencionismo federal, das administrações de Harry Truman, John Kennedy e Lyndon Johnson. Mais do que uma adaptação do neoliberalismo alemão, Foucault entende a versão americana como um fenômeno endógeno, porque a renovação do liberalismo foi constante nos Estados Unidos. Se o ordoliberalismo alemão é altamente ligado à Escola de Friburgo, nos Estados Unidos o think tank do neoliberalismo é a chamada Escola de Chicago, na qual se destacam figuras como Theodore Schultz, Milton Friedman, Gary Becker, entre outros.

Um dos aspectos mais importantes dessa corrente é a teoria do capital humano. Como assinala Foucault, para os neoliberais americanos, os economistas clássicos sempre indicaram que a produção de bens depende de três fatores: terra, capital e trabalho. Para aqueles, o fator trabalho permaneceu inexplorado. A economia clássica reduzia a natureza do trabalho à variável quantitativa. É nesse sentido que Marx, segundo Foucault, depreende o trabalho no capitalismo como uma força que é vendida por certo tempo. O trabalho é tido como abstrato, “amputado de toda sua realidade humana”[24]. Isso se deve à própria lógica do capital.

Os neoliberais americanos entendem que essa abstração do trabalho não pertence à lógica do capitalismo em si, mas à teoria econômica da produção que foi formulada. Nesse sentido, a economia para a Escola de Chicago deixa de ser a análise da lógica histórica de processos e passa a ser a abordagem da racionalidade interna da atividade dos indivíduos. A questão deixa de ser por quanto tempo se compra o trabalho e passa a ser o que é trabalhar para quem trabalha e que sistema de racionalidade essa atividade obedece, para, a partir disso, entender como as diferenças qualitativas podem ter efeito econômico.  Isso faz com que se situe no ponto de vista do trabalhador para fazer dele pela primeira vez, de acordo com Foucault, um sujeito ativo, não um objeto de uma oferta e de uma procura. O trabalhador deixa de ser uma mercadoria no sentido de Marx e passa a ser ele mesmo um capital, um homo oeconomicus que é empresário de si mesmo.

Os neoliberais decompõem, pois, o trabalho em capital. O trabalho não é, do ponto de vista do trabalhador, o preço de venda da sua força de trabalho, mas uma renda. Essa renda é o produto ou o rendimento de um capital. Capital é definido como tudo o que pode ser fonte de renda futura, o conjunto dos fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar seu salário. O trabalhador como capital comporta uma série de capacidades para obter rendas, não sendo alienado, porque é um capital cuja aptidão não pode ser separada dele mesmo. O indivíduo é um homo oeconomicus que é uma empresa para si mesmo, pois investe em si próprio tendo em vista determinado ganho. Se o homo oeconomicus clássico era aquele sem desejo, parceiro da troca, ligado à problemática das necessidades, o neoliberal é um empresário que é seu próprio capital, sendo para si mesmo seu produtor, fonte de sua renda.    

Esse indivíduo é um capital humano que é composto por elementos inatos, que são hereditários, e elementos adquiridos, que são investimentos, como em educação, dedicação dos pais na criação dos filhos, o ambiente cultural. Quem viaja para estudar, por exemplo, age como empresário de si, investindo em si mesmo para obter certa melhoria. Dessa forma, os neoliberais americanos promovem uma extensão da racionalidade econômica mais radical que a dos alemães. O funcionamento do capitalismo não depende apenas de inovação, como em Schumpeter, porque esta existe justamente como a renda de certo tipo de capital, que é o capital humano, o conjunto de investimentos que foram feitos pelo ou no próprio indivíduo. 

Essa generalização mais exaustiva que os americanos fazem da forma econômica do mercado tem, para Foucault, duas consequências: (1) a forma econômica funciona como princípio de intelegibilidade, de decifração das relações sociais e dos comportamentos. Por exemplo: na teoria do capital humano, a relação pais-filho se torna um investimento. A maneira como os pais criam seus filhos pode produzir, acumular ou não capital humano que será fonte de renda futura; (2) a grade econômica deve permitir testar a ação governamental. A aplicação dessa grade ao Estado visa ancorar e justificar uma crítica política permanente da ação governamental. Trata-se, nas palavras de Foucault, de uma crítica mercantil, “o cinismo de uma crítica mercantil oposta à ação do poder público”[25].

A economia se transforma numa espécie de “tribunal econômico permanente em face do governo”[26]. Do ponto de vista da relação entre economia e Estado, a situação se inverte: no liberalismo clássico o governo devia respeitar o espaço do mercado, o Estado devia deixar fazer, quieta non movere. No neoliberalismo, o laissez-faire se transforma em “não deixar o governo fazer, em nome de uma lei do mercado que permitirá aferir e avaliar cada uma das suas atividades. O laissez-faire se vira assim no sentido oposto”[27]

A partir desse novo homo oeconomicus, Foucault questiona: no limite, por que não definir toda conduta racional, todo comportamento racional como objeto de uma análise econômica? Gary Becker, por exemplo, entende que se a conduta do indivíduo não for aleatória, a economia terá pontos de ancoragem, porque toda conduta que responde de forma sistemática a modificações do meio pode resultar de uma análise econômica. O homo oeconomicus é, portanto, aquele que aceita a realidade, e a economia é a ciência da sistematicidade, que analisa o conjunto de respostas sistemática que um indivíduo dá às variáveis do meio. Dessa forma, a economia pode utilizar técnicas comportamentais, buscando saber como determinados estímulos acarretam respostas sistemáticas. O homo oeconomicus neoliberal é, nesse sentido, manejável, porque responde sistematicamente às modificações das variáveis do meio em que atua. Não se age mais sobre o indivíduo de forma disciplinar, mas sim sobre o meio. Esse homo oeconomicus governável é a solução neoliberal para o paradoxo weberiano da racionalidade irracional.

Assim, o homo oeconomicus é analisado por Foucault como algo que ultrapassa o homo juridicus. Ou seja, o sujeito de interesse ultrapassa o sujeito de direito. Esse atrito entre interesse e direito remonta, segundo Foucault, à teoria do sujeito de David Hume. Para este, sujeito é definido por opções individuais que são irredutíveis, porque sempre se chega no limite da opção entre doloroso e não-doloroso, e intransmissíveis, porque mesmo alguém que prefira ficar doente do que ver outra pessoa doente, faz isso de acordo com sua preferência, porque acha que é mais doloroso ver alguém doente do que ficar doente. Essa opção individual é o interesse.

Portanto, enquanto o sujeito de direito é aquele que aceita a negatividade, aceita a renúncia a certo número de direitos naturais tendo em vista constituir um outro sujeito de direito, o sujeito de interesse é o homo oeconomicus, para quem o direito, o soberano, o Estado, é incapaz de transcender o interesse. O homo oeconomicus, pois, até certo ponto destitui o soberano, porque faz surgir nele uma incapacidade, que é a de dominar a totalidade da esfera econômica. Na arte liberal de governar, então, há atrito constante entre sujeito de direito e sujeito de interesse, em que se define um novo conjunto que envolve ao mesmo tempo o direito e o interesse, fazendo surgir outros elementos em relação aos quais eles se integram.

5.3 O estilo de existência “empresa” e o problema da autonomia em Ehrenberg

Para expressar a noção de “vida” os gregos não possuíam apenas uma palavra, mas usavam dois termos: zoé e bios. Enquanto a zoé é o mero fato de viver comum a todos os seres vivos, a bios é uma vida qualificada, é uma existência, construída, para Aristóteles, essencialmente em vista do viver bem[28]. Se a forma empresa passa a ser uma estética da existência, é necessário questionar o que ela produz, que tipo de vida qualificada ela produz. Se esse novo homo oeconomicus neoliberal identificado por Foucault como empresário de si se sujeita à busca pela totalização da concorrência, qual é o resultado disso? É possível enquadrar essa perseguição da totalização da concorrência, que formata sujeitos concorrencialmente ativos, no paradoxo da liberação que vimos em Tocqueville, Simmel, Weber e Foucault? Alain Ehrenberg nos dá algumas indicações nesse sentido.

As sociedades nas quais impera o espírito de empresa, o estilo de vida que empresariza os comportamentos, como vimos no caso do neoliberalismo, faz funcionar uma solidariedade sem assistência. Esse espírito busca unir eficácia e responsabilidade, uma “mentalidade de massa na qual cada um seja impulsionado a se governar por si mesmo”[29]. Já que carregam em suas próprias existências a forma empresa, por que, ao se encontrarem desempregas, as pessoas não buscam como alternativa abrir uma empresa? Essa aventura empresarial e a rarefação de seus contrapesos e o recuo dos modos de proteção assistenciais têm uma consequência: cada vez mais, nesse estilo de existência, as pessoas suportam suas responsabilidades, e essa sociedade em que a concorrência “não tem um lado de fora se pagam com a depressão nervosa generalizada”[30].

Ehrenberg sustenta que essas sociedades do espírito empresa passaram por uma transformação da normatividade social: da sociedade disciplinar à sociedade da autonomia. Autonomia no sentido da decisão e ação pessoais. Ou da patologia do conflito em torno do desejo à patologia da insuficiência, que coloca em questão a ação. O indivíduo depressivo, que Ehrenberg define como alguém “incapaz de mensurar; ele está cansado de ter que se tornar ele mesmo”[31], é o indivíduo sujeitado à forma empresa, à regra da autonomia, “que prevalece hoje, regra que está instituída no sentido de que ela está em todos os espíritos”[32].

Novamente, o que era para ser uma manta leva, se transforma em algo pesado. O que era para ser uma conduta de vida que se adota caso se tenha vontade, mas “se não tem vontade, não tem a menor importância”[33], uma estética da existência cuja conduta ninguém é obrigado a seguir, uma forma de sujeição que, assim como na ética clássica, só devem se obrigar aqueles que desejam uma vida bela e gloriosa, se transformou numa normatividade que está em todos os espíritos. Ao invés de produzir sujeitos ativos, fortes, produziu uma série de indivíduos cansados, incapazes de mensurar, assim como Tocqueville já apontava em “A Democracia na América”.

A despeito de o neoliberalismo não ser uma mera ressurgência de velhas práticas do liberalismo clássico, caiu no mesmo equívoco que este, ao criar uma forma de existência visando à liberdade à autonomia, mas produzir o inverso. Ao não ser uma manta leve como deveria, talvez essa normatividade social da autonomia, da forma empresa, não tenha nos encerrado numa jaula de aço, mas nos quatro muros de não saber agir.

Referências:

“A Confissão de Fé de Westminster”. 1643-46.

AGAMBEN, Giorgio. “Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua”. Editora UFMG. Belo Horizonte. 2002.

EHRENBERG, Alain. “The Weariness of the Self: Diagnosing the History of Depression in the Contemporary Age”. McGill-Queen’s University Press e Montreal & Kingston. Londres e Ithaca. 2010.

________________. “Depressão, Doença da Autonomia?”. Ágora, v. VII, n. 1, jan/jun, pp 143-153. 2004. Entrevista concedida a Michel Botbol.

________________. “O Culto da Performance: da Aventura Empreendedora à Depressão Nervosa”. Ideias e Letras. 2010.

FOUCAULT, Michel. “Nascimento da Biopolítica”. Martins Fontes. São Paulo. 2008.

__________________. “Sobre a Genealogia da Ética: uma Revisão do Trabalho”. In: DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul (Orgs.). “Michel Foucault. Uma Trajetória Filosófica Para Além do Estruturalismo e da Hermenêutica”. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 1995. Entrevista concedida a Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow.

MARX, Karl. “Sobre a Questão Judaica”. Boitempo. São Paulo. 2010.

VANDENBERGHE, Frédéric. “Georg Simmel, Max Weber, Max Scheler e a Tradição Sociológica Alemã. Grandeza e Miséria do Homem Econômico”. In: CAILLÉ et al. “História argumentada da filosofia moral e política: a felicidade e o útil”. Editora Unisinos. 2007.

WEBER, Max. “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Editora Martin Claret. São Paulo. 2013.

 

[1] WEBER, 2013, p. 13.

[2] VANDENBERGHE, 2007.

[3] WEBER, 2013, p. 241.

[4] Confissão de Fé de Westminster, 1643-46.

[5] WEBER, 2013, p. 243.

[6] Ibidem, p. 244.

[7] MARX, 2010, p. 56.

[8] WEBER, 2013, p. 246.

[9] Ibidem, p. 251.

[10] WESLEY apud Weber, 2013, p. 254.

[11] WEBER, 2013, p. 258.

[12] BAXTER apud WEBER, 2013, p.259.

[13] WEBER, 2013, p. 259.

[14] Ibidem, p. 260.

[15] FOUCAULT, 2008, p. 46.

[16] Ibidem, p. 49.

[17] Ibidem, p. 40.

[18] Ibidem, p. 93.

[19] Ibidem, p. 159.

[20] MIKSCH apud FOUCAULT, 2008, p. 184.

[21] Ibidem, p. 282.

[22] FOUCAULT, 1995, p. 266.

[23] FOUCAULT, 2008, p. 258.

[24] Ibidem, p. 305.

[25] Ibidem, p. 338.

[26] Ibidem, p. 339.

[27] Ibidem.

[28] AGAMBEN, 2002.

[29] EHRENBERG, 2010, p. 131.

[30] Ibidem, p. 132.

[31] EHRENBERG, 2010, p. 4, tradução nossa.

[32] EHRENBERG, 2004, p. 148.

[33] FOUCAULT, 2008, p. 282.

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