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Sociologia da “boa morte”, por Lucas Faial Soneghet

Projeto de pesquisa

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Apresentação

O texto a seguir foi submetido como projeto de pesquisa para seleção de doutorado em dois programas de pós-graduação no Rio de Janeiro. Sendo assim, sua estrutura segue o modelo convencionalmente pedido por editais de seleção, tocando nos pontos usualmente exigidos: hipótese, objetivo, metodologia, entre outros. Uma vez que o texto foi desenvolvido e submetido no final do ano passado, não há muito a ser dito em termos de trabalho de campo. Em outra oportunidade, espero poder compartilhar meus relatos etnográficos no blog, dando continuidade ao caminho aberto pelo projeto a seguir.

Porque morrer significa que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver a morte; e vivê-la um só instante, é vivê-la eternamente. (Kierkegaard, 1979, pg. 324)

  1. O self terminal

 A questão de pesquisa desse projeto é a relação entre formas contemporâneas de cuidado no fim da vida e o processo de reconstrução e modelagem do self durante o morrer. Tal questão se situa numa área de estudos mais ampla das ciências humanas e sociais que estuda a morte e suas dimensões práticas, simbólicas e estruturais. As formas contemporâneas de cuidado no fim da vida as quais me refiro são o movimento hospice e os cuidados paliativos, dois modelos de cuidado no fim da vida que se dedicam à indivíduos terminais. Em poucas palavras, o movimento hospice é um movimento social de cuidado no fim da vida criado na década de 1960 por Cicely Saunders, profissional da saúde da Inglaterra, que surge como reação aos métodos de prolongamento da vida por vias tecnológicas empregados nos hospitais modernos. Um hospice seria, então, uma instalação distinta e separada de um hospital regular, onde pacientes terminais que escolhem recusar tratamentos para prolongamento da vida, decidem viver seus últimos dias em uma rotina de cuidado alternativa, baseada em controle de sintomas e buscando uma “boa morte” (Floriani, 2010). Os cuidados paliativos são um desdobramento da filosofia de cuidado hospice, consistindo na transposição desse método de cuidado para dentro do ambiente hospitalar, junto da ampliação do escopo temporal da discussão a respeito da decisão do não prolongamento da vida, de maneira a incentivar a reflexão sobre a morte antes de um diagnóstico terminal propriamente dito (Livne, 2017, no prelo). Sucintamente, os hospices e os cuidados paliativos são formas alternativas de cuidado no fim da vida que consistem na escolha pelo não prolongamento da vida em casos de diagnóstico terminal, prezando pela administração de sintomas e do bem-estar do sujeito terminal, com emprego de métodos paliativos em vez de métodos curativos.

Partindo de uma consideração da emergência histórica dessas formas de cuidado, procuro delinear suas implicações quanto a criação de um tipo específico de self na contemporaneidade, caracterizado, dentre outras coisas, pela sua capacidade de autodeterminação autônoma, pela sua reflexividade, e pela sua multidimensionalidade (Giddens, 1991; Beck, 2002; Wagner, 1995, Domingues, 1998). Não se trata de assumir que o saber médico cria, no sentido forte do termo, o self terminal contemporâneo, mas de enxergar a partir das novas formas de cuidado no fim da vida, uma nova forma de reconstrução (uma vez que o self não emerge no fim da vida) e modelagem (processo de formação contínua e reflexiva) do self. Os termos reconstrução e modelagem indicam uma compreensão processual do self, ou seja, o indivíduo é formado em um processo social que age sobre ele e sobre o qual ele age. A hipótese preliminar é de que as formas contemporâneas de cuidado no fim da vida apontam para novos processos de formação da individualidade que, como reação à um paradigma institucionalizado e tecnológico, baseiam-se numa concepção de self holístico, espiritual e expressivo (Wagner, 1995; Tacey, 2004), chamado preliminarmente aqui de self terminal.

  1. As dimensões do morrer

A morte é objeto da reflexão filosófica há muito tempo. Schopenhauer definiu a morte como “musa da filosofia”, afirmando que o reconhecimento da finitude do ser humano é um corolário da razão e uma condição dos sistemas filosóficos e religiosos de pensamento, definidos como “metafísicas consoladoras” (Schopenhauer, 2000, pg. 59). Um marco na abordagem filosófica da morte é o existencialismo, vertente onde a morte toma foro central. De maneira geral, a filosofia existencialista considera a morte como “situação limite”, como horizonte da experiência em que a existência pode encontrar seu sentido pleno. É nesse sentido que Heidegger (1997) define o ser humano como um ser-para-a-morte, um ser que sempre pende para a morte e que, só através do encontro reflexivo com esta, pode abrir-se para todas as possibilidades de sua vida. Sören Kierkegaard (1979), precursor do existencialismo e filósofo cristão, entende a morte como situação limite na qual o ser humano encontra-se consciente de sua finitude, e, diante dessa consciência, responde com três formas de lidar: a estética, a ética e a religiosa. A forma religiosa seria a culminação da consciência da morte, a única capaz de desdobrar a plenitude da existência, sendo essa entendida então como encontro com a transcendência divina. As relações entre existência e transcendência permeiam a filosofia existencialista, às vezes aparecendo como alienação – no caso das filosofias existencialistas de Martin Heidegger (1997) e Jean Paul Sartre (1973) – e às vezes compreendida como plenitude – no caso da filosofia de Kierkegaard e Karl Jaspers (1951). De maneira geral, a morte aparece como situação limite onde as ligações do ser com o mundo tornam-se contingentes, sendo abertas as possibilidades de saída: para alguns, como Heidegger, a saída está na reflexão a respeito da existência individual e da experiência da morte como algo inalienável e irredutivelmente individual. Para outros, como Jaspers, a saída está no contato com a transcendência e no encontro com o outro em amor, ou seja, na ligação com outras existências que partilham da mesma experiência existencial fundamental.

O pressuposto da universalidade da morte, entretanto, permeia todas as filosofias, existencialistas e anteriores, em certa medida. Há divergência a respeito do que esse morrer significa para aqueles que vivem, e para a existência do ser humano enquanto ser social e individual. Da tradição filosófica, destaco a importância do morrer como ponto onde o indivíduo é desdobrado em todas as suas possibilidades, ou seja, onde sua existência é desvelada. Tomando a filosofia existencialista como pano de fundo, considero que os indivíduos em processo de morrer engajam-se em reflexões substantivas sobre a natureza de suas escolhas, buscando entrar em acordo com seu passado, e questionando o que deixam para o futuro – Staundinger (2001) faz uma avaliação geral quanto aos benefícios encontrados nas práticas de reflexão e retrospectiva de vida, e Andrews (1997) usa esse aparato conceitual em um contexto de pesquisa sociológica.

O esforço de relativizar a universalidade do morrer, típica na filosofia, foi empreendido pelas ciências sociais, também a partir de abordagens distintas. Na antropologia, é possível apontar um antepassado distante no Ramo Dourado de Sir James Frazer, para quem a morte era importante como indício de origem da religião. A partir da década de 1940, com a virada em direção ao paradigma funcionalista, a abordagem de Frazer perde lugar, e a antropologia trata do morrer a partir de rituais estudados em contextos etnográficos, dando relevância à traços socioestruturais (Cabral, 1984). Os tratamentos funcionalistas da morte na antropologia bebem da fonte da teoria social de Emile Durkheim, focando nos rituais mortuários como formas de manutenção da ordem social. Da abordagem antropológica, destaco a importância da dimensão ritual e simbólica do morrer como índices de solidariedade social, ou seja, como expressões das formas de relação entre indivíduos. Nesse sentido, Mauss (2003) estuda os efeitos no indivíduo da concepção de morte em sua unidade coletiva, apontando para o efeito de coesão social das concepções em torno do morrer. Abordagens contemporâneas, como a de Glauser e Strauss (1965), apontam para o status limiar da morte, investigando as relações entre médicos, familiares e pacientes na construção de um quadro temporal para o self terminal, e de Menezes (2000), estudam a reprodução cotidiana das práticas em torno da morte em contextos hospitalares modernos, descrevendo os códigos usados pelos profissionais de saúde na classificação de pacientes de um Centro de Tratamento Intensivo (CTI). A consideração do nexo entre práticas e símbolos em torno do morrer é fundamental para desdobrar o processo de modelagem do self terminal, situando-o num contexto simbólico rico.

Outra vertente das ciências humanas que tem tradição forte no estudo da morte é a historiografia, sendo notáveis os estudos de Phillipe Ariès (1975, 1982), bem como o clássico A solidão dos moribundos de Norbert Elias (2001). Os estudos de Ariès contribuem para a contextualização do objeto aqui estudado, uma vez que o historiador francês traz uma descrição compreensiva das representações e rituais ocidentais sobre a morte ao longo da história. Assim como Elias, Ariès conclui que a morte na sociedade contemporânea é objeto de ocultamento e negação, estando confinada aos hospitais e cemitérios, sob um pesado véu de ignorância. Uma abordagem sociológica e histórica do morrer permite enxergar mudanças nas práticas, representações e estruturas em torno da morte, como é o caso das abordagens de Michel Foucault (1979, 1994), ou pode ser feito a partir das funções da morte na estrutura social, como é em certa medida o caso da abordagem de Anthony Giddens (1991) e de Michael C. Kearl (1989). Outra abordagem possível pode partir de uma sociologia econômica de inspiração pragmática, como é o caso de Roi Livne (no prelo, 2017). A partir das perspectivas sociohistóricas do morrer, contextualizo meu objeto de pesquisa – a relação entre formas contemporâneas de cuidado no fim da vida e uma forma de self terminal – em termos de um tipo específico de modernidade. Antes de tratar da temática da modernidade, procuro delinear o campo teórico sobre formas contemporâneas de cuidado no fim da vida no Brasil, fortemente influenciado pela obra de Michel Foucault.

  1. O self e o morrer na máquina hospitalar

O paradigma do estudo sociológico da temática é largamente definido pelos estudos de Michel Foucault (1994) a respeito da hospitalização e da emergência do saber médico, sendo adotada, em graus variados, sua descrição do paradigma de hospitalização e institucionalização da morte. A influência da teoria de Foucault aparece na forma da constatação de um paradigma de “tecnologização” e institucionalização da morte hospitalar, sendo colocado o saber médico como articulador do poder no hospital, lócus para onde a morte foi transportada, sanitarizada e organizada. Críticas semelhantes à hospitalização e medicalização da vida são feitas a partir de pontos de vista teóricos distintos – Goffman (1961) por exemplo, aposta numa análise da profissão do médico do ponto de vista de um rito social, demonstrando as dinâmicas hospitalares num nível micro – mas todos compartilham do mesmo ponto de partida, descrito da seguinte maneira:

“Com o nascimento do hospital como instrumento terapêutico – uma inven­ção datada do final do século XVIII – este horizonte se transforma signifi­cativamente. Antes do século XVIII, o hospital era uma instituição de assistência aos pobres. A função do hospital, até esta mudança histórica e epistemológica, era dirigida ao pobre em processo do morrer. O hospital era um morredouro, e o pes­soal que ali trabalhava fazia uma obra de caridade, com a intenção de salvar sua própria alma. Em uma longa trajetória histórica, o hospital se medicalizou. A reorga­nização desta instituição consistiu no primeiro passo do amplo processo de medicalização, ocorrido a partir de uma tecnologia política, a disciplina.” (Menezes, 2013, pg. 484)

Sendo assim, na convergência da mudança no saber e nas práticas médicas (com o surgimento do regime epistêmico da biologia que tem a “vida” como objeto, e o corpo como espaço de intervenção) e da disciplinarização do espaço hospitalar “confuso”, emerge a forma moderna de tratar a morte. Essa forma é caracterizada como “impessoal” e “fria”, estando o indivíduo à mercê de tecnologias que não compreende, usadas por profissionais que o tratam como objeto. O paradigma da tecnologização e institucionalização da morte é reconhecido no campo de estudos (Kearl, 1989; Menezes et al; Glaser e Strauss, 1965), e tem sido questionado nas últimas duas décadas (Seale et al). Entretanto, grande parte da pesquisa que questiona o paradigma da medicalização da morte é produzida nos Estados Unidos, onde novas formas de lidar com o processo de morrer vem emergindo desde a década de 1970, e já se estabeleceram como alternativas legítimas à morte hospitalar. Esse é o argumento de Seale (1998) que, partindo do tratamento de Giddens (1991) sobre a morte como momento que revela o processo reflexivo de narrativas sobre o self, fala de uma nova modalidade de morrer na contemporaneidade. Essas novas formas de cuidado no fim da vida são estudadas no Brasil por Rachel Aisengart Menezes do ponto de vista antropológico. Menezes (2000) estuda o processo de morrer em CTIs de hospitais públicos e privados, empreendendo uma descrição das estratégias de pacientes e familiares, bem como de profissionais da saúde, para lidar com a morte. Partindo do contexto de dominância do saber médico-tecnológico no CTI, a antropóloga aponta para o conceito de “ortotanásia”, entendida como uma “boa morte” que é contraponto à morte hospitalar, entendida como impessoal, fria e sem dignidade. O paradigma da ortotanásia tem sua expressão em movimentos sociais como o hospice e o cuidado paliativo, formas alternativas de cuidado no fim da vida. Estudando as estratégias de construção de uma “boa morte”, Menezes (2014) conclui que o saber médico permanece dominante, e, quando escreve sobre as novas formas de cuidado no fim da vida, define-as como “tecnologias da esperança”, ainda sujeitas à expertise médica, porém afirmando os limites do saber médico em face da autonomia do paciente. Cabe agora, uma breve reconstrução da história dos hospices e dos cuidados paliativos, para entender como essas formas de cuidado se situam ao paradigma de tecnologização e institucionalização do morrer, descrito por Foucault e incorporado pelas abordagens subsequentes desse objeto.

  1. Formas contemporâneas de cuidado no fim da vida

A primeira instituição hospice é fundada em 1967, na cidade de Londres, pela enfermeira Cicely Saunders. O St. Christopher’s Hospice surge num período de efervescência social e política, com a emergência de movimentos reivindicatórios na sociedade civil, marcada pela discussão dos direitos reprodutivos pelo movimento feminista, pelas mobilizações contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, pelo movimento estudantil aliado a intelectuais na França e em outras partes do mundo, entre outros. O contexto era marcado pela emergência de movimentos sociais que formulavam formas alternativas de vida cotidiana em contraponto à sociedade industrializada e burocratizada do pós-Segunda Guerra Mundial. Saunders, uma enfermeira e militante católica, diagnostica o paradigma hospitalar altamente tecnológico e institucionalizado, afirmando que o indivíduo que morre nos hospitais daquela época encontrava-se alienado de seu próprio processo de morrer, fragmentado e objetificado. Articulando-se com uma rede ampla e internacional de profissionais da saúde, especialmente àqueles na margem da profissão como enfermeiros e assistentes sociais hospitalares, Saunders delineou os contornos do que seria a filosofia hospice, uma nova forma de cuidado no fim da vida que se apresenta como alternativa. A morte hospitalar na sociedade moderna industrializada era avaliada a partir do ponto de vista dos indivíduos que ela implica, ou seja, a questão era qual é o tipo de pessoa que morre. Essa questão é respondida por Saunders e pelo movimento hospice com uma maneira de cuidar que se preocupava com a integralidade do indivíduo, com sua multidimensionalidade, sua dignidade e sua autonomia. Entender o indivíduo enquanto ser íntegro e multidimensional implicou, para Saunders, considerar o aspecto emocional e espiritual do cuidado, principais vítimas da hospitalização e institucionalização do morrer. Para esse cuidado holístico do indivíduo, torna-se necessária uma equipe multidisciplinar, envolvendo profissionais da saúde como enfermeiros, médicos, psicoterapeutas, além de outros profissionais de áreas próximas, como assistentes sociais.

O ponto de partida do movimento hospice é a constatação de que, no paradigma da morte hospitalizada e institucionalizada, a tecnologia hospitalar permite o prolongamento da vida para além da vontade e do bem-estar do indivíduo terminal. Sendo assim, trata-se de uma escolha pelo não prolongamento da vida através de tecnologias e práticas médicas, geralmente associadas ao ethos heroico da medicina moderna (Menezes, 2014). Opondo-se à “obsessão” médica por salvar e prolongar uma vida de qualquer modo, o hospice aposta na escolha do indivíduo de não querer prolongar sua vida em casos onde a morte é vista como inevitável. Essa filosofia será rotinizada e institucionalizada na década de 1990 na forma dos cuidados paliativos, forma de cuidado no fim da vida que é semelhante ao hospice, mas que procurou se instaurar dentro do espaço hospitalar. Além disso, os cuidados paliativos procuram começar o processo de “aceitação da morte” antes mesmo de ser diagnosticada a condição terminal do paciente, procurando provocar reflexões sobre o processo de morrer desde antes. Uma questão suscitada pelo presente projeto de pesquisa diz respeito à desigualdade social nas formas de cuidado paliativo e hospice. O perfil dos indivíduos que fazem uso dessas formas alternativas de cuidado no fim da vida é majoritariamente branco, de classe média, e com ensino superior. Além disso, os principais críticos do cuidado institucionalizado e tecnológico, na época da formação do movimento hospice, compartilham desse mesmo perfil sociológico (Livne, 2017, no prelo). Em que medida as formas de cuidado alternativas, e as concepções de self que elas carregam, respondem a uma demanda universal? Quais são as desigualdades que atravessam os processos de formação do self no cuidado do fim de vida?

A primeira instância de uma forma alternativa de cuidado no fim de vida surge no Brasil em 1944. O então diretor do Instituto Nacional de Cancerologia, Mário Kroeff, fundou o Asilo da Penha no Rio de Janeiro que “tinha por função assistir pacientes pobres com câncer avançado que não conseguiam vaga nos hospitais gerais nem no Serviço Nacional de Cancerologia” (Floriani & Roland Schramm, 2014). Sendo de caráter filantrópico e privado, o Asilo da Penha surge, semelhante às origens medievais do hospice, em parte como resposta ao contingente de pacientes terminais que não encontravam lugar no sistema de saúde tradicional devido à sua terminalidade. Decorre disso que o Asilo da Penha reafirmava o paradigma da medicina curativa de prolongamento da vida, pois dedicava-se somente àqueles que, por não conseguirem lugar em instalações de saúde tradicionais, ficavam “desamparados”. Diante desse desamparo, sugere “que esses pacientes deveriam ser cuidados por entidades privadas, de caráter religioso e filantrópico, em espaço destinado só para isso, reduzindo o desconforto dos hospitais gerais de terem de negar leito a estes pacientes.” (Idem, pg. 176). Aparte dessa iniciativa isolada, as formas alternativas de cuidado no fim da vida só foram retomadas no Brasil na década de 1980, com o surgimento de centros de cuidado paliativo, geralmente ligados ao câncer ou ao tratamento da dor crônica, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná (Idem, ibidem). Em 1997, foi fundada a Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP) e em 2005, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Enquanto a ABCP se dedica à difusão do tema dos cuidados paliativos no território nacional, a ANCP procura formalizar o cuidado paliativo como especialidade médica legítima, dedicando-se ao ensino e a pesquisa.

A luta pela legalização das formas de cuidado paliativo é relativamente recente no Brasil, tendo como marco importante a Resolução CFM nº 1.805/2006. Em 2007, o Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública contra o Conselho Federal de Medicina (CFM), conseguindo uma liminar de suspensão para a Resolução. A liminar foi contestada e retirada em 2010, quando passou a ser reconhecida como válida novamente a legislação supracitada (Menezes & Ventura, 2013). Além da legislação a respeito dos cuidados paliativos e das associações formais, é possível destacar os CTIs como espaço propício para as práticas de cuidado alternativo no fim da vida, uma vez que, nesses espaços, o saber médico-tecnológico e as opções de prolongamento ou não da vida tornam-se tematizados.

  1. O self contemporâneo como objeto

Sendo assim, a abordagem da morte que aparece em Foucault, desemboca numa consideração do self como formado por “tecnologias de subjetificação”, uma vez que o único processo de formação da individualidade reconhecido é aquele que passa pelo “assemblage” de dispositivos e discursos que produzem o self (Rose, 1998). O saber psicoterapêutico é fundamental nesse panorama, pois é o principal articulador dos dispositivos e discursos que orientam a invenção do self no mundo contemporâneo. É possível também descrever uma abordagem estrutural-funcionalista da morte, que investiga os rituais e práticas em torno do morrer como parte da manutenção da ordem social. Tendo raízes também nos estudos de Durkheim, essa abordagem é encontrada em uma variação parsoniana na história social da morte em Michael C. Kearl (1989) e ganha tratamento mais complexo em Giddens (1991) e Seale (1998). Partindo do pressuposto de que, na morte, as fronteiras entre cultura e natureza, entre mundo social e mundo natural, tornam-se fragilizadas, as práticas em torno do indivíduo moribundo seriam organizadas com o objetivo implícito de garantir a “segurança ontológica” dos envolvidos (entes queridos e cuidadores), reforçando que a sociedade continua mesmo com o fim de um self em particular, de suas relações, e daquilo que ele implica em seu meio social.

É ponto comum nas abordagens sociológicas sobre a morte a colocação da problemática do indivíduo, do self, ou do sujeito. Tal convergência pode ser devida à compreensão ocidental da morte como algo irredutivelmente individual, pessoal e íntimo. Ou ainda, pode ser resultado do efeito da morte na vida social, indicando a contingência e fragilidade dos laços, das práticas, das estruturas e dos sentidos que a preenchem. De todo modo, o estudo do morrer na sociologia se interessou pouco por uma abordagem que tente considerar os processos de formação da individualidade a partir do ponto de vista dos indivíduos. É feita uma tentativa nesse sentido a partir de uma abordagem estrutural-funcionalista com uma perspectiva histórica, e é predominante a abordagem do indivíduo como sujeito forjado pelas tecnologias e discursos na conjunção saber-poder, porém, é pouco presente uma abordagem hermenêutico-interpretativa que lida com os efeitos da morte no processo de formação e modelagem do self. Como se trata do estudo de um tipo de self contemporâneo, é necessário algum contato com teoria social de viés histórico, para situar as novas formas de cuidado e os novos processos de modelagem do self. Nesse sentido, retomo as considerações de Peter Wagner (2002) a respeito da modernidade contemporânea, bem como a ideia de modernização reflexiva de Anthony Giddens (1991) e a noção de biografia individual em Ulrich Beck (2002).

Posto de maneira sucinta, Wagner descreve em um plano macro histórico o processo de modernização ocidental, marcado por duas grandes “crises”. A primeira crise marca a passagem do mundo tradicional para o mundo moderno, enquanto a segunda crise marca passagem de uma “modernidade organizada” para a modernidade contemporânea. O autor fixa o ano de 1968 como marco da segunda crise da modernidade distinguindo duas orientações do movimento: o protesto e rejeição da maneira de organização das práticas sociais como estava estabelecida, e a tentativa de construir um novo sujeito coletivo histórico. Entretanto, olhando a partir do presente, a grande contribuição do movimento de 68 é melhor demonstrado pelo movimento em direção a pluralidade e diversidade do que pelo projeto de um novo sujeito coletivo. A “revolução cultural” de 68 é, em essência, um movimento em direção a maior individualidade, contra a imposição de qualquer ordenação de práticas concebidas na modernidade organizada, demandando autonomia no sentido de que o indivíduo, desde seu nascimento, estaria encarregado de considerar a ordem natural e as convenções sociais como restrições para a escolha de seu próprio curso de vida. Giddens (1991) situa essa nova forma de criação do self no paradigma da “modernidade reflexiva”, caracterizada também pela contingência e fragilidade de formas de pertencimento, instituições e trajetórias de vida. Segundo Giddens, o indivíduo deve então sempre considerar suas práticas sociais enquanto práticas contingentes e situadas, refletindo e se responsabilizando pelos riscos e consequências de suas escolhas. Sendo assim, a pesquisa se insere numa tradição de estudo sociológica do self, situando historicamente seus processos de formação, modelagem e criação.

Entretanto, não basta uma abordagem histórica do self, uma vez que também é necessário considerar as dinâmicas entre este e seu entorno de um ponto de vista “sincrônico”. Isso significa entender os efeitos situados de certas concepções a respeito do self nos processos de modelagem do mesmo. Para isso, recorro à noção de self presente na sociologia de Margaret Archer, pois procuro entender como o self emerge como realidade social, mas não é redutível a essa. Não se trata, todavia, de assumir um self essencial, primordial e desvinculado da sociedade, mas de considerar o self em sua riqueza interna, que toma a forma de uma “conversa interior”. A ideia de uma conversa interna como processo reflexivo do self é desenvolvida pioneiramente por Peirce em termos da conversa entre o “I”, entendido como self presente e ativo, o “You”, self futuro e receptor das decisões presentes, e o “myself”, self resultante de todas as experiências passadas. A dialética entre I, You e myself é ordenada como uma espécie de conversa que o self carrega consigo mesmo, podendo chegar a certos compromissos e ordenar suas prioridades. Archer retoma o conceito de conversa interna de Peirce e acrescenta o elemento afetivo, definindo a conversa como “dialectic between our human concerns and our emotional commentaries upon them” (Archer, 2000, pg. 230). Junto à abordagem de Archer, cabe recuperar as raízes do interacionismo simbólico, especialmente na teoria de Mead (1934) a respeito da constituição do eu pela intersubjetividade. O conceito de “outro generalizado” de Mead aponta para instâncias formativas do self que independem do mesmo, agem sobre ele, e tem efeito normativo em sua percepção do mundo. Assim, o self não se reduz nem às instâncias externas que o determinam nem à sua interioridade dinâmica, mas é resultado do encadeamento temporal entre as duas, que é construído narrativamente pelo indivíduo a todo o momento (Ricoeur, 1992). Argumento que com o estudo do morrer e das formas de cuidado contemporâneas em torno do mesmo, é possível situar o self contemporâneo, tratado de variadas maneiras pela teoria social de perspectiva macro histórica (Giddens, 1995; Beck, 2002; Wagner, 2002). Para, além disso, o estudo do morrer no Brasil pode jogar luz nos limites dessas abordagens teóricas, uma vez que a modernidade em contexto brasileiro não é de todo semelhante à “alta modernidade” ou “pós-modernidade” (Domingues, 1998).

 

  1. Metodologia: O acompanhamento até a morte

Para melhor considerar as dimensões da experiência individual, parto de uma metodologia qualitativa, com o uso de entrevistas em formato aberto, acompanhada de uma observação participante em contextos de cuidado no fim da vida. A aposta é de que, observando o processo de discussão e negociação em torno do self em processo de morrer, é possível desdobrar questões a respeito do cuidado médico no Brasil, das desigualdades nas formas de morrer, e nos processos de formação do self contemporâneos. Parto do pressuposto teórico-metodológico de que os atores têm capacidade de julgar, conferir sentido e analisar as situações sociais nas quais se encontram, e que é a partir das negociações dessas situações que a vida social é reproduzida (Mead, 1934).

Os locais para pesquisa serão: uma instalação hospice no Rio de Janeiro, o CTI de um hospital público, e o CTI de um hospital privado. Embora não estejam ainda definidas exatamente as instituições na qual a pesquisa ocorrerá, pretendo empreender uma abordagem comparativa, para que as questões da desigualdade social nas formas alternativas de cuidado no fim de vida sejam colocadas em perspectiva. Além disso, a comparação entre um hospice e um ambiente hospitalar permite desdobrar questões a respeito da influência do local da morte nos demais processos que a envolvem. Por meio de entrevistas em formato aberto com profissionais de saúde (médicos e enfermeiros), assistentes sociais, capelães, psicoterapeutas – categorizados previamente como cuidadores – procuro delinear os termos do cuidado multidimensional do self em processo de morrer. A eventual dissonância entre profissionais também pode suscitar questões a respeito da autoridade profissional, dos saberes legítimos e dos dispositivos formais capazes de gerar consenso (mesmo que involuntário). Também serão entrevistados familiares e entes queridos que participam do processo de morrer, mas não em capacidade estritamente profissional. O foco principal estará nas entrevistas com os pacientes terminais, sendo estes o nexo principal dos processos sociais que ocorrem em torno do morrer.

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2 comentários em “Sociologia da “boa morte”, por Lucas Faial Soneghet

  1. Juliana Marques

    Muito relevante e singular o projeto! Surpreendeu-me que não haja uma seção para discutir e esclarecer aspectos éticos da pesquisa, no que diz respeito à metodologia qualitativa e o necessário planejamento para a garantia do respeito à dignidade da pessoa humana, à minimização de possíveis danos, para além da proteção dos dados e do consentimento informado de todos os participantes. Essa é uma discussão política e metodológica, a meu ver, bastante importante na produção cientifica de modo geral e que ainda é incipiente na nossa área (por mais contraditório que isso pareça!). Por um lado, acredito que precisamos pensar e discutir mais sobre isso. Por outro lado, precisamos também nos defender dos ataques feitos em geral por outras áreas de conhecimento à metodologia qualitativa nas ciências sociais. No mais, fiquei curiosa para acompanhar os relatos de campo e o desenvolvimento da pesquisa. Parabéns!

    • sociofiloblog

      Muito obrigado pelos comentários, Juliana! Estou atualmente no processo de submeter o projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa pela Plataforma Brasil. Para tal, fiz um levantamento bibliográfico com foco na área da saúde mental, buscando justamente os métodos e procedimentos adequados para lidar com pacientes terminais. Em suma, os principios a serem mantidos são: a total autonomia do paciente na condução da entrevista, o que implica a prerrogativa de interromper, editar ou retirar qualquer coisa dita; a colaboração e consulta constante aos profissionais encarregados do cuidado da pessoa, de maneira a conciliar seu estado de saúde com um cronograma flexível de conversas; o contato e aprendizado com metodologias já testadas na conversa com pacientes terminais, por exemplo, trabalhos desenvolvidos sob a categoria “life review” (ver Haber, 2006 para um levantamento de dados compreensivo; Andrews, 1997 para uma aplicação sociológica do método; e Wallace, 1992 para uma pesquisa aplicada).
      Abraços,
      Lucas Faial

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