Por Luc Boltanski (EHESS, Paris)
Tradução: Diogo Corrêa e Lucas Faial Soneghet*
Nota: O pdf completo do texto será lançado no sábado, dia 26 de maio, junto com a segunda parte do texto.
É um lugar comum constatar que é cada vez mais difícil, nas democracias da Europa ocidental, distinguir as políticas de esquerda daquelas de direita. Nenhum dos critérios habituais permite traçar uma nítida linha de demarcação[1]. Assim, para levantar alguns exemplos, a preferência pela propriedade do Estado sobre a propriedade privada, a primeira sendo considerada mais favorável à justiça social e como garantia da qualidade e da imparcialidade do serviço público, que caracterizaria a esquerda no tempo em que o socialismo constituía ao mesmo tempo um modelo e um contraponto, não é mais um marcador que diferencia uma época em que os governos de esquerda se apressam para privatizar assim que chegam ao poder. Da mesma forma, a crença no progresso, o culto da ciência e da tecnologia, a vontade de “modernizar” são, faz bastante tempo (e na França, ao menos desde os anos de reconstrução que se seguiram à Segunda Guerra Mundial), igualmente compartilhados entre a esquerda e a direita. Poder-se-ia mostrar do mesmo modo que as medidas justificadas pela busca por uma maior justiça social foram, há cinquenta anos, assumidas tanto pelos governos de direita (ainda que mais frequentemente sob pressão de movimentos sociais de esquerda) quanto pelos governos de esquerda. Seria muito difícil hoje, na França, descrever duas políticas coerentes, uma de esquerda e outra de direita, que, sob a maior parte dos temas pertinentes, permitira traçar fronteiras nítidas; nada seria mais fácil do que enumerar problemas inscritos na agenda política que suscitam tantas separações no interior da esquerda e da direita quanto entre a esquerda e a direita. Contudo, a polarização, ao menos no nível dos comportamentos verbais, entre a esquerda e a direita permanece muito viva, quase tão intensa quanto na época da Guerra Fria, quando as posições políticas se definiam relativamente à existência de um partido comunista poderoso. Para compreender um tal paradoxo, é preciso voltar muito rapidamente à especificidade histórica da esquerda, ao que a constitui, para retomar um termo emprestado de Péguy, a “mística”, esse termo sendo tomado aqui no sentido de um núcleo ideológico que não pode ser totalmente abandonado sem uma completa denegação, mesmo se aquilo na direção do que ele aponta não é, ou é de modo muito incompleto, realizado nos fatos.
A esquerda e as origens da ideia de Revolução total
Seguindo as análises de Bernard Yack[2], nós diremos que a esquerda está ligada, desde o fim do século XVIII, ao horizonte da Revolução total. É impossível resumir em algumas linhas a análise de Yack. Depois do fracasso da Revolução francesa, os filósofos do idealismo alemão que Bernard Yack atrela ao que ele chama de esquerda kantiana, consideram que uma revolução realizada apenas no plano político não basta para retirar os obstáculos que permitem reduzir os motivos de insatisfação em relação ao mundo tal como ele é. Eles empreendem, então, um desvelamento das fontes de insatisfação ligadas às formas históricas ou societárias que caracterizam a forma como se estabelece o elo entre os homens. Eles então enfatizam o caráter desumanizante da sociedade “moderna” e o “espírito” das relações sociais que prevalecem em tal tipo de sociedade. O mundo moderno é desvalorizado à medida que condena os homens a serem não humanos ou não completamente humanos. A Revolução total consiste, portanto, em identificar e desvelar o que, no núcleo das relações sociais, entrava a plena realização da humanidade, para em seguida transformar radicalmente as condições sociais de modo a permitir a aparição de um novo homem, este agora plenamente humano. A mudança propriamente política pode ser concebida, nessas condições, como o resultado mecânico da Revolução total, não como sua origem. O termo Revolução total foi introduzido por Schiller (em A educação estética do homem) que identifica a fonte primária de insatisfação na esfera das relações estéticas e será retomado por Marx, que a transporta para aquela das relações econômicas e de propriedade. Yack mostra que, para a esquerda kantiana, a capacidade de escapar das condições desumanizantes é derivada de uma interpretação rousseauniana da autonomia kantiana. O caráter verdadeiramente humano dos homens se afirma em sua liberdade, que permite opor seus próprios fins àqueles que lhes foram impostos pela natureza ou pela sociedade, o que supõe que seja afastada toda referência a uma “natureza humana” imutável. O anseio pela Revolução total assume, com isso, um caráter historicista. Todo fenômeno, para ser compreendido, deve ser relacionado não a uma natureza humana, mas ao seu contexto histórico. Cada momento histórico possui seu “espírito” particular tanto quanto ações individuais isoladas são impotentes para provocar mudança. Apenas uma ação global pode transformar o mundo. No entanto, a transformação global está subordinada a um trabalho teórico para identificar o que, no mundo histórico tal como ele se dá, constitui a fonte principal da inumanidade.
Com base nessas análises, pode-se extrair algumas caraterísticas que marcam a autodescrição da esquerda ao longo do século XX (e também, por contraste, os traços “típicos” da direita, ao menos tal como vista do ponto de vista da esquerda). A característica principal da esquerda é que ela é crítica. Ao contrário, a direita sente-se à vontade em uma postura que é o exato oposto da crítica: a celebração. Enquanto que, do ponto de vista da esquerda, se manifesta uma insatisfação constante diante da vida e do mundo tal como ele é e do qual convém desvelar as fachadas hipócritas, a direita celebra os grandes homens, as instituições, o mundo vivido, a natureza, os costumes e, com a vinculação à moral, a ordem que rege as interações entre os homens. Se a direita não nega a existência do mal, ela lhe confere um caráter ontológico. O mal é inerente à condição humana, mesmo se esforços meritórios, realizados pelos indivíduos, permite atenuá-lo. Ao contrário, a esquerda, tendo uma visão historicista do curso do mundo, identifica o mal com a existência de condições sóciohistóricas determinadas e dominantes. É nesse sentido que a insatisfação conduz, para a esquerda, a uma exigência de revolta e se exprime em uma retórica particular: a do protesto. A essas diferentes relações com a história estão associadas antropologias igualmente diferentes. A direita crê, com toda as suas forças, em uma natureza humana. O homem é o que é e nada poderá fundamentalmente mudar alguma coisa de sua natureza. Ao contrário, visto da esquerda, o homem do passado e o homem atual não são o todo do homem. O homem está por fazer e, nesse sentido, ele é sempre, em sua essência, não passível de ser conhecível. É a razão pela qual a crítica de esquerda não se sente instada a desvelar os fundamentos éticos de sua indignação. Pois, para desvelar e para compreender completamente o que suscita a indignação, seria preciso poder apoiar-se em um bem que ainda não existe e que é, mesmo nas condições atuais, não conhecível em sua totalidade, até mesmo inimaginável. É apenas quando, sob o efeito da crítica, as condições de aparição de um novo homem serão realizadas que se poderá então desvelar o bem que sustentava, na obscuridade de um destino histórico, a indignação que o fizeram surgir.
A esquerda crítica no capitalismo
Qual é o objeto mais global sobre o qual convergem as múltiplas críticas emitidas pela esquerda? Desde a segunda metade do século XX, essa questão está associada àquela do capitalismo. A esquerda foi muito amplamente conhecida (mesmo nessa forma híbrida que constitui o fascismo) na crítica ao capitalismo. Contudo, a relação da esquerda com o capitalismo é complexa porque, se a esquerda constitui a instância crítica por excelência do capitalismo, ela foi também, faz dois séculos, incorporada pelo capitalismo. Essa ambiguidade foi, diga-se de passagem, reconhecida por Marx, que nunca deixou de fazer elogios ao capitalismo em seu papel histórico como instrumento de libertação da sociedade tradicional e, portanto, como motor da história (uma posição que pode ser identificada hoje em relação às novas formas do capitalismo, nos escritos de um pensador “radical” como Antonio Negri). Além disso, a relação entre a esquerda e o capitalismo tornou-se ainda mais complexa, ao longo do último século, pela capacidade do capitalismo de se reapropriar ao menos de uma parte da crítica desenvolvida pela esquerda.
A esquerda foi incorporada ao capitalismo por intermédio do liberalismo e da crítica das ordens tradicionais, isto é, na França, da sociedade do Antigo Regime. Com efeito, não é exagero dizer que o capitalismo, em suas formas mais liberais ou radicais, flerta continuamente com a ideia da Revolução total. Esse enraizamento da esquerda no capitalismo se vê, ainda mais do que na França, nos países da Europa central. Assim, por exemplo, na Hungria do período entre guerras, uma esquerda liberal, comerciante e industrial, essencialmente baseada em Budapeste e em sua maioria judia, austríaca ou alemã, opôs-se ao direito agrário, provincial, da qual os membros da administração central foram recrutados. A esquerda revolucionária emerge, em parte, desta esquerda liberal, da qual radicaliza alguns de seus ideais estabelecidos. A esquerda é, portanto, aliada do liberalismo, ao ponto de se fundir praticamente com ela, quando se voltam para o seu inimigo comum: a sociedade tradicional fundada sobre uma extensão da ordem que prevalece no “mundo doméstico” (Boltanski e Thévenot, 1991), na sociedade como um todo e, em particular, no Estado.
No entanto, é necessário, como lembrou Fernand Braudel[3], evitar confundir liberalismo e capitalismo. O liberalismo é um princípio regulador, uma exigência e uma garantia moral do capitalismo que, na prática, nunca foi verdadeiramente aplicado no século XIX (dinastias familiares, alianças monopolistas, pressões sobre o Estado para obter medidas protecionistas, etc.), a não ser no caso do mercado de trabalho em que a aplicação do “credo liberal”, como Polanyi[4] assim chamava, permitiu obter uma mão de obra barata e maleável.
Por outro lado, o capitalismo do século XIX passa, na Europa e particularmente na França, por um tipo de aliança com as classes vinculadas à ordem doméstica cujo patrimônio familiar, frequentemente de origem agrária, pode ser reinvestido em novas formas de realização de lucros. É a essa aliança – de um certo modo antinatural – que, aliás, dar-se-á o nome de “burguesia” aquilo que faz Francois Furet[5] dizer (na introdução do Passado de uma ilusão) que, diferentemente da Europa, os Estados Unidos conhecem o desenvolvimento de um capitalismo sem burguesia. Mas é bem o elo entre os valores do capitalismo (o liberalismo) e a esquerda que dá conta, como o sinala Furet no mesmo texto, da forma como os membros da burguesia, em sua adolescência e sua juventude, se revelam frequentemente contra a burguesia em nome dos próprios valores que a burguesia reconhece à medida que adere ao liberalismo (equidade na concorrência, inovação, etc.) e que ela trai na medida em que permanece como patrimonialmente dominante. Aliança essa, diga-se de passagem, que expõe a própria burguesia a um constante revés cuja causa é apontada por Marx e Engels no Manifesto comunista quando eles descrevem o cosmos capitalista como um universo no qual todos os valores herdados do passado, tudo aquilo a que a burguesia valoriza quando se alia com os valores domésticos, se autodestrói sob o efeito da concorrência acirrada pelo lucro em que se envolvem os detentores de capitais uns com os outros: “Tudo o que era sólido se esvai como fumaça” – como está escrito no Manifesto comunista –, tal é o fundamento da relação eterna nostálgia que a burguesia entretém com seu passado, como desenvolve o belo livro de Marshal Berman sobre a experiência da modernidade cujo título é All that is solid melts in the air[6].
A esquerda e as duas críticas do capitalismo
A esquerda se desvincula do capitalismo e o toma por alvo de sua crítica quando sai da luta contra a sociedade tradicional, rompe em alguma medida sua aliança com o capitalismo e, por meio de um trabalho de interpretação, identifica todos os traços que caracterizam a sociedade moderna enquanto um fator de desumanização e os reúne novamente associando-os ao capitalismo. Para dizer a verdade, essa junção não chega a uma forma única, a uma boa forma porque os diferentes fatores de desumanização que a crítica de esquerda identifica na modernidade capitalista entram em tensão uns com os outros.
Devo agora mostrar como essa tensão se desenvolve resumindo um dos temas que nós desenvolvemos, Eve Chiapello e eu, n’O novo espírito do capitalismo: o das duas críticas.
Com efeito, pode-se identificar na crítica do capitalismo tal como ela se desenvolveu a partir de meados do século XIX duas críticas diferentes realizadas por dois grupos distintos. A primeira é a crítica social: ela enfatiza as desigualdades, a miséria, a exploração e o egoísmo de um mundo que estimula o individualismo por oposição à solidariedade. Seu principal vetor foi o movimento operário. A segunda forma de crítica, nós chamamos de crítica artística. Ela desenvolveu-se, em primeiro lugar, em pequenos círculos de artistas e intelectuais, e enfatiza outros traços do capitalismo: ela critica a opressão em um mundo capitalista (dominação do mercado, a disciplina das usinas), a uniformização da sociedade de massa e a mercadorização de tudo, e valoriza um ideal de liberação e de autonomia individual, a singularidade e a autenticidade.
Essas duas críticas são orientadas, uma e outra, na direção do horizonte de uma Revolução total e na direção da formação de um novo homem, plenamente humano, porque liberado das coerções desumanizantes que a modernidade capitalista impõe sobre a humanidade atual. Mas nem os meios para atingir tal revolução, nem as orientações principais são as mesmas.
A crítica social se alia com a ciência, a tecnologia e a indústria. Ela é, como o próprio capitalismo, vinculada à ideia de progresso. Ela subordina a liberação a uma mudança de regime de propriedade e, mais radicalmente, de modo de produção. A propriedade coletiva deve liberar a produção entravada pelo regime de propriedade privada. É a conjunção da mudança de regime de propriedade e de uma expansão assombrosa da produção que fará cessar a exploração, isto é, o obstáculo principal à descoberta e à realização pelos homens de sua plena humanidade. Enfim, essa crítica tem uma perspectiva solidarista e igualitária (mesmo se a predominância das vanguardas, únicas suscetíveis de orientar a crítica na direção da positividade do mundo por vir, que advém da adesão ao determinismo histórico, faz frequentemente desse anseio pela igualdade uma falsa promessa. A revolução se realizará quando todos os explorados coordenarão suas ações e as liberarão todos.
A crítica artística, por sua vez, é tão fortemente anti-industrial quanto anticapitalista. Ela defende a posição, na tradição do romantismo, da singularidade do gênio (que pode ser identificada em todo homem quando é autônomo), e se mostra exasperada por tudo que é estandardizado, uniformizado, massificado. Se ela critica o capitalismo é, antes de tudo, porque ela vê nele o fator principal que engendra uma sociedade de produção e consumo de massa. Mas a crítica artística não é, contudo, um tradicionalista. Ela não defende – ou raramente o faz – o retorno a um passado idealizado. Assim como o capitalismo, ela odeia o passado anticapitalista, ainda que esse horror possa ser misturado por vezes com uma certa nostalgia pelo sublime aristocrático. Ela também olha para o futuro e para a possibilidade de uma humanidade sem precedente. Mas, na medida em que ela enfatiza a espontaneidade criativa individual, a crítica artística é, se não igualitária, ao menos fracamente orientada para uma exigência de igualdade. Para que a liberação tenha chances de se realizar, é preciso antes de tudo que alguns homens manifestem, diante da modernidade capitalista, uma resistência radical. A força de alguns pode ser suficientemente poderosa para, por meio da provocação que desvela a sub-estrutura arbitrária de uma ordem sem fundamento, fazer explodir essa ordem. É, de fato, o caráter sensivelmente elitista da crítica artística que favorecerá alianças com o fascismo – cujas variantes clamam também pela Revolução total – ou, em outros casos, o complicado movimento de idas e vindas entre o fascismo e a extrema esquerda.
As duas críticas e maio de 1968
No livro O espírito do capitalismo, a relação entre capitalismo, espírito do capitalismo e as duas críticas da qual ele trata – a crítica social e a crítica artística – constitui um dos instrumentos que nos servem para restituir sob a forma de uma narrativa coerente (essa forma desvalorizada, seguindo as críticas pós-modernas, é propositalmente assumida aqui) certas modificações que intervieram desde meados dos anos 1960 na ordem econômica e social. Sem resumir o conteúdo dessa obra, eu lembraria certos elementos dela que nos parecerem esclarecer a situação da esquerda hoje. O modelo adotado baseia-se numa cenografia que comporta três actantes: o capitalismo, o espírito do capitalismo e a crítica, ela mesma dividida em crítica social e crítica artística.
O capitalismo é caracterizado por uma fórmula mínima que enfatiza a exigência de acumulação ilimitada por meios formalmente pacíficos, a concorrência e o assalariamento. Nosso argumento é que o capitalismo visto dessa forma é, a vários respeitos, um sistema absurdo: os assalariados perderam nele a propriedade dos resultados de seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida ativa fora da relação de subordinação. Quanto aos capitalistas, eles se encontram encadeados em um processo sem fim e insaciável. Ora, a acumulação capitalismo exige a mobilização de um grande número de pessoas das quais uma boa parte, ao menos, não se encontra particularmente motivada a se envolver nas práticas capitalistas, para não mencionar quando estas lhes são hostis. Nós chamamos espírito do capitalismo a ideologia que justifica o envolvimento no capitalismo e que torna esse envolvimento desejável. É, portanto, porque ele foi objeto de críticas que o capitalismo foi levado a se justificar. Na ausência de críticas, a justificação seria inútil.
A justificação do capitalismo possui uma base relativamente estável que comporta de argumentos fundados principalmente pela teoria econômica. Isso inclui o progresso indissociavelmente tecnológico e econômico, a eficácia e a eficiência de uma produção estimulada pela concorrência e o fato de que o capitalismo seria um regime favorável às liberdades individuais e, em particular, às liberdades políticas. Mas, ao lado das justificações muito gerais, pode-se identificar justificações mais especificas, e assim melhor sensibilizar as pessoas. Elas variam historicamente. De um exame na literatura sobre a evolução do capitalismo, pode-se extrair o desenho de três “espíritos” que se sucederam desde o século XIX. A um primeiro espírito, cuja descrição encontramos, por exemplo, em Sombart, corresponde um capitalismo de domínio doméstico, cujo burguês empreendedor é a figura dominante, se sucede, nos anos 1930, um segundo espírito centrado sobre a grande empresa integrada. A sua figura dominante é o diretor assalariado e as formas de justificações invocadas dizem respeito à garantia assegurada por mecanismos tais como a carreira e à associação do capitalismo privado ao desenvolvimento do Estado providência, e às expressões meritocráticas da justiça calcadas no julgamento de competências certificadas por diplomas. O novo espírito do capitalismo tem por objeto principal o apagamento, no curso dos anos 1970, do espírito do capitalismo que foi formado nos anos 1930, e aparição de um terceiro espírito nos anos 1980. Nós ilustramos essa transformação por meio de uma comparação sistemática entre a literatura de gerenciamento dos anos 1960 e a dos anos 1990.
Para compreender como se operou essa mudança, nós propomos o seguinte processo que pôs em funcionamento de forma dinâmica os três actantes dos quais falei há pouco: o capitalismo, o espírito do capitalismo e a crítica. Eis, muito sumariamente resumidos, as etapas desse processo.
Os anos 1965-1975 foram marcados por uma elevação muito alta do nível de crítica a que o capitalismo foi submetido, período esse que culmina em 1968 e nos anos seguintes. Essas críticas ameaçaram o capitalismo com uma crise significativa. Elas estiveram longe de ser apenas verbais e foram acompanhadas de greves, violência. Elas tiveram, com efeito, uma desorganização da produção que baixou a qualidade dos produtos industriais e, segundo certas estimativas, dobraram os custos salariais. Essas críticas tomam por alvo praticamente todas as provas[7] instituídas sob as quais repousava a legitimidade da ordem social. São assim criticadas:
– As provas que legitimam as assimetrias em termos de poder e de relações hierárquicas (no trabalho, mas também na família)
– As provas sob as quais repousam a seleção social: as provas escolares, as provas de recrutamento profissional, aqueles da qual as pessoas dependem para avançar em sua carreira, etc.
– A crítica desvela o que, nessas provas, transgride a justiça. Esse desvelamento consiste particularmente em revelar as forças escondidas que vêm parasitar a prova e desmascaras as vantagens imerecidas das quais se beneficiam certos protagonistas. Esse alto nível de crítica alarma os responsáveis das instituições do capitalismo e, no primeiro nível, o empregador, que se inquieta fortemente com a “crise de autoridade” e com a “recusa do trabalho na empresa”, particularmente pelos mais jovens.
Uma particularidade importante da crise cujos acontecimentos de maio de 1968 são o centro é que as duas críticas, a crítica social e a crítica artística, desempenham nela um papel mais ou menos equivalente, enquanto que, nas crises sociais anteriores, a crítica artística só se manifestava em círculos intelectuais restritos. Pode-se atribuir essa mudança ao aumento muito importante do número de estudantes nos anos 1960 e também à importância igualmente crescente do papel desempenhado no processo de produção de executivos (cadres), engenheiros e técnicos detentores de competências técnicas, científicas e cultural de nível elevado. No mundo empresarial, a crítica artística se manifesta essencialmente nas reivindicações autogestionárias (presentes sobretudo no seio do sindicato CFDT) que exigem a participação dos assalariados no controle do patronato a partir de 1975. Primeiro realizadas de modo disperso, essas mudanças serão mais ou menos coordenadas pelas organizações de empregadores que, notadamente sob influência de sociólogos do trabalho e de novos consultores oriundos do movimento de maio de 1968, adotaram uma nova interpretação da crise, entendendo-a como revolta contra as condições de trabalho e contra as formas tradicionais de autoridade.
Essas mudanças consistem em larga medida no reconhecimento da validade da exigência de autonomia e da aplicação ao conjunto do pessoal modos de gestão até então reservados aos executivos (equipes autônomas, horários flexíveis, bônus, salário por eficiência, etc.). No nível do aparelho de produção, esses modos são compatíveis com a série de transformações que desmantelam a grande empresa integrada para substitui-la por uma frota de pequenas unidades ligadas por redes de contratos (trabalho temporário, subcontratação, terceirização de funções que não correspondem ao ofício principal da empresa, etc.).
Essa segunda via consiste, em resumo, em abandonar os lugares de prova até então instituídos (o sistema de relações profissionais) em prol de uma série de deslocamentos. Esses deslocamentos introduzem novas provas (por exemplo, novas exigências para os operários cuja capacidade de comunicação torna-se um critério de seleção importante). Mas essas provações novas são difíceis de identificar por aqueles que a ela se encontram submetidos porque elas não foram objeto de um trabalho, notadamente jurídico, de categorização e de regulamentação. O trabalho de gerenciamento, nos anos 1980, consistirá em coordenar essas mudanças e a dar-lhes um sentido, notadamente interpretando-as na linguagem das redes, tomada de empréstimo das ciências sociais.
Essa segunda via terá êxito precisamente onde a primeira fracassou. Essas mudanças permitirão uma retomada da força de trabalho e uma reorientação do capitalismo. Essa nova reorientação encontra um campo livre à sua frente porque essas mudanças tiveram por efeito calar a crítica, e isso de duas formas diferentes. A crítica social, sustentada pelos grandes sindicatos, se encontrou mais frequentemente desarmada diante dessas mudanças que ela não soube interpretar. Construída em isomorfia com seu adversário, a grande empresa integrada, a crítica social perdeu, no curso desse processo, as ancoragens que lhe permitiam até então mudar a direção, com uma certa eficácia, das decisões dos empregadores. Quanto à artística, ela perdeu sua impetuosidade por uma razão diferente. Uma grande parte dos porta vozes, isto é, dos que a realizaram nos anos que envolvem maio de 1968, se satisfez com as mudanças que intervieram na organização do trabalho e, mais geralmente, da sociedade, e isso para não falar de quando os próprios porta-vozes foram integrados, ao apoiarem o governo socialista, aos novos dispositivos de poder.
A reorientação do capitalismo nos anos 1980 está ligada, por conseguinte, à sua capacidade de dobrar e tornar obsoletas as coerções que eram pertinentes no quadro do segundo espírito do capitalismo. O deslocamento das provas durante esse período e o silêncio de uma crítica desorientada permitiram a reorientação de um capitalismo liberado da maior parte das coerções que ele deveria até então respeitar.
Um dos resultados dessa reorientação foi ter direcionado em um sentido favorável ao capital a resdistribuição entre salário e lucros que, nos anos 1970, havia se inclinado na direção dos assalariados. Mas isso ao preço de um crescimento das desigualdades, da precariedade e de um empobrecimento de camadas importantes dos assalariados. Essas degradações das condições salariais produziram, nos anos 1990, um retorno das críticas das quais as greves, notadamente aquela do outono de 1995, são um testemunho. Esse renovo da crítica, que se manifesta atualmente sobretudo no terreno da crítica social (a crítica artística permanece amplamente silenciosa ou rotineira, ao menos no que concerne à esfera econômica) vai no sentido de uma reflexão que conduz à regulamentação de novas provas e do estabelecimento de novos dispositivos de justiça no terceiro espírito do capitalismo. É neste sentido que se pode considerar que um grande número de dispositivos atualmente em estudo na França visa ao estabelecimento de novas exigências de justiça nascidas com o terceiro espírito do capitalismo (o que chamamos, retomando o conceito de cité[8] desenvolvido em De la justification[9], a cité por projetos) nos dispositivos dotados de uma existência jurídica. Sabendo que o novo espírito do capitalismo valoriza maximamente o ponto da mobilidade, esses dispositivos visam, sobretudo, estabelecer compromissos entre uma exigência de mobilidade e uma exigência de segurança. É o caso, por exemplo, do “contrato de atividade” que se acrescentaria ao contrato de trabalho e que possibilitaria aos assalariados que sua empresa não possa ou não pretenda conservar e fazer um trabalho de formação ou de serem empregados por organizações com fins não lucrativos.
(Fim da parte 1)
Notas
[1] Esse texto retoma sob uma forma mais curta a conferência dada à École de Mines Paris em janeiro de 2001, no cliclo “Recalcitrâncias”, animado por Isabelle Stengers e Bruno Latour.
[2] Bernard Yack,The Longing for Total Revolution. Philosophic Sources of Social Discontent from Rous seau to Marx and Nietzsche, Princeton, Princeton UP, 1999
[3] Ferdinand Braudel, Civilisation matérielle, economie et capitalisme, vol. 2, Paris, Armand Colin, 1979.
[4] Karl Polanyi, La grande transformation, Paris, Gallimard, 1983.
[5] François Furet, Le passé d’une illusion, Paris, Robert Laffont-Calman Levy, 1995.
[6] Marshall Berman, All that is solid melts into air.The experience of modernity, New York, Simon and Schuster, 1982.
[7] O conceito de prova (épreuve) remonta a um conjunto de discussões que Luc Boltanski realizou junto com Laurent Thévenot no livro De la justification. Para uma síntese do conceito tal como trabalhado pelos autores, ver o artigo A crítica e os momentos críticos: De la justification e a guinada pragmática na sociologia francesa, escrito por Diogo Silva Corrêa (um dos tradutores do presente texto) e Rodrigo de Castro, pps. 78-83. Disponível online em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v22n1/1678-4944-mana-22-01-00067.pdf . N.T.
[8] Para uma síntese do conceito de cité, ver o artigo A crítica e os momentos críticos: De la justification e a guinada pragmática na sociologia francesa, escrito por Diogo Silva Corrêa (um dos tradutores do presente texto) e Rodrigo de Castro, pps. 73-78. Disponível online em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v22n1/1678-4944-mana-22-01-00067.pdf . N.T.
[9] Luc Boltanski,Eve Chiapello,Le nouvel esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999.
[10] Rauol Vaneigem, Traité de savoir- vivre à l’usage des jeunes géné rations, Paris, Gallimard, 1967, p. 55.
[11] L. Boltanski,L.Thévenot, De lajustification,Paris,Gallimard, 1991 .
[12] James Beniger, The control revolution, Cambridge, Mass, Harvard UP, 1986.
[13] Luc Boltanski, Les cadres. La formation d’un groupe social, Paris, Minuit, 1982.
[14] Vale notar que o artigo foi escrito em 2002, logo, quaisquer mudanças legislativas ocorridas desde então não foram consideradas pelo autor.
[15] Ginette Castro, Radioscopie du féminisme américain, Paris, presses de la FNSP, 1984.
[16] Michael Tooley, “Abortion and infanticide”, in Philosophy and public affairs, vol 2, n o 1 ,1972,pp. 37-65.
Referências Bibliográficas:
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*Fontes para tradução:
– BOLTANSKI, Luc. La gauche après mai 1968 et l’aspiration à la révolution totale “i. Cosmopolitiques (République cherche démocratie et plus si aff.), v. 3, p. 19-39, 2003.
– BOLTANSKI, Luc. The left after May 1968 and the longing for total revolution. Thesis Eleven, v. 69, n. 1, p. 1-20, 2002.
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