Por Luc Boltanski
Tradução: Diogo Corrêa e Lucas Faial Soneghet*
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A Esquerda, Capitalismo e o Anseio pela Revolução Total Hoje
O que é hoje o anseio pela Revolução total? Esse anseio, como proposto no início do artigo, constitui o traço mais permanente e característico da esquerda, o cerne ideológico que ela não pode negar completamente sem quebrar definitivamente com uma identidade constituída na base de dois séculos de crítica e luta.
Nosso argumento será o seguinte: por um lado, sustentaremos que o anseio pela Revolução total é deslocado do domínio da produção de bens materiais para a reprodução de seres humanos; por outro lado, que esse anseio não está mais em oposição total ao capitalismo, mas encontra-se conjugado com o mesmo. Em outras palavras, se esta análise está correta, hoje temos duas esquerdas, cujas relações entre si vão do conflito ao compromisso. De um lado, há uma esquerda anticapitalista que mantém a crítica nos terrenos da economia, do trabalho e da produção, mas que não anseia mais pela Revolução total. Do outro, há uma esquerda que anseia pela Revolução total num terreno distinto, relativo a geração e reprodução de seres humanos e de relações de parentesco; essa é uma esquerda que não é mais anticapitalista.
A Esquerda Anticapitalista
A esquerda anticapitalista não anseia mais pela Revolução total – entendida como uma transformação radical das relações de produção – porque tal revolução falhou. A crítica social fracassou nos países capitalistas, como apresentado acima: mostrando-se incapaz de defender ganhos sociais, de prevenir a nova distribuição entre salários e lucros que beneficia o capitalismo, de opor-se ao aumento da desigualdade e, de maneira geral, a todo o tipo de destruição que acompanhou a reorientação do capitalismo nas décadas de 1980 e 1990. Assim, encontrou-se marginalizada. Por outro lado, nos países socialistas, e na área favorita da crítica social, a mudança no regime de propriedade não resultou, como era esperado, na libertação das forças produtivas e, em consequência, no fim da exploração. Capacidades produtivas estagnaram ou entraram em colapso, com a exploração continuando sob outras formas, assim como entenderam os Trotkistas e, particularmente na França, o grupo Socialisme ou Barbarie (Lefort e Castoriardis) na década de 1950. Pode-se argumentar que tais países de “socialismo existente” eram socialistas somente no nome e que não alcançaram a Revolução total, o que os invalidaria enquanto exemplos pertinentes. Entretanto, a natureza quase geral desses fracassos faz com que a ideia de revolução, em termos de movimentos dos trabalhadores e, em particular, do movimento comunista, deixe de ser uma palavra de ordem atraente.
A crítica social que reapareceu na França após 1995 parece então ter abandonado o anseio pela Revolução total. Começando a partir de direitos democráticos existentes, esta acaba trazendo a memória as revoltas populares no Antigo Regime, descritas por Charles Tilly. Os revoltosos iam em direção ao senhor contra o qual as revoltas eram dirigidas para colocá-lo na cabeça de sua procissão, visando mostrar que tudo que exigiam era o respeito dos direitos já garantidos sob o regime feudal. De maneira semelhante, os novos movimentos sociais só estão preocupados com democracia, direitos e cidadania. Eles demandam o respeito aos direitos existentes e, mesmo discretamente, o reconhecimento de novos diretos – frequentemente apresentados como derivados dos direitos humanos – mas não colocam as instituições existentes como um todo em questão. Eles insistem na natureza desumanizante das condições de vida daqueles excluídos socialmente, mas não condenam radicalmente as formas de vida prevalecentes nas sociedades democráticas contemporâneas do hemisfério norte. Estas são consideradas, pelo menos tacitamente, as melhores do mundo, apesar da denúncia de sua exploração dos países do Sul.
Similarmente, as organizações orientadas mais nitidamente para a esfera econômica, empresas e organização do trabalho também podem ser ditas reformistas. Estas não preveem uma saída do capitalismo no futuro próximo (na década de 1970 era uma opinião comum que seria possível sair rapidamente do capitalismo). Tais organizações também propõem medidas – que em sua maioria estão em estágio de planejamento atualmente – visando limitar o poder dos acionistas ou chegar novamente a um acordo entre a exigência do capitalismo por mobilidade e flexibilidade, e a procura por uma melhora na segurança dos trabalhadores. No livro O novo espírito do capitalismo, demos vários exemplos de tais dispositivos.
Os movimentos mais radicais são aqueles cujo objetivo principal não gira em torno de direitos nacionais, mas de organismos internacionais que asseguram a regulação do capitalismo, envolvendo assim uma conciliação entre, de um lado, a busca de um interesse comum compartilhado pelos portadores do capital e os diretores de grandes empresas e, do outro lado, a dura competição que existe entre os mesmos. Tais organismos emergem ou de acordos entre estados, como exemplificado pelo Banco Mundial, ou de grandes firmas consultoras trabalhando a nível multinacional, ou até mesmo de círculos privados de reflexão, negociação e conciliação. Entretanto, mesmo que tais movimentos tenham como objetivo pressionar poderes internacionais e impor reformas (como o famoso Imposto Tobin), eles não desenvolvem programas orientados para o horizonte de uma Revolução total.
Contrastando com o cenário, a crítica artística não fracassou. Na verdade, ela foi muito bem bem-sucedida. No Traité de savoir-vivre à l’usage des jeunes générations, publicado em 1967, Raoul Vaneigem escreveu: “Se alguém estudasse os modos de trabalho das pessoas primitivas, a importância da brincadeira e da criatividade nestes, não seria cem vezes mais eficiente o retorno obtido pelos métodos advindos da contribuição de técnicas modernas?”[1]. Pode-se dizer que ele foi ouvido, uma vez que essa frase poderia facilmente aparecer nos vários livros de gerenciamento publicados na década de 1990 e analisados n’O novo espírito. Como demonstramos naquela análise, seções inteiras da crítica artística ao capitalismo foram integradas na retórica do gerenciamento. Essa retórica, ela mesmo denunciante do Taylorismo e da padronização, reconheceu na década de 1980 a validade das aspirações dos produtores por autonomia e criatividade, e a justificação da esperança do consumidor em achar bens e serviços no mercado que eram, ao mesmo tempo, de melhor qualidade e únicos. A referência a autenticidade – termo emprestado da crítica a modernidade capitalista para se tornar lugar comum na auto-exaltação do capitalismo – resume essas novas demandas por uma vida profissional mais “autêntica”, em termos do quanto esta facilita o ganho pessoal, e a pela apropriação de bens mais “autênticos”, no sentido de bens que constantemente se adaptam a maleabilidade dos desejos mais íntimos e singulares da pessoa.
A referência à lógica de redes também é central para o novo gerenciamento e o novo marketing. No novo gerenciamento, ela serve para fazer sentido e valorizar os novos significados da organização da produção (subcontratação, contratos interinos, externalização, trabalho em termos autônomos, administração por projeto, etc.). Por outro lado, tal lógica também serve para desmontar referências aos coletivos de trabalho, à solidariedade baseada em condições similares e, de maneira geral, às classes sociais que, desde o século XIX, constituíram uma das bases mais sólidas da crítica. No novo marketing, a lógica de redes serve para revalorizar a ação da compra que está simbolicamente descolada dos comportamentos gregários denunciadas pela crítica à sociedade do consumo e associada a uma busca pessoal, como é sugerido pela abundância de excitação libertária mirada no novo consumidor, surfando pela rede.
O pareamento da referência à autenticidade com a da rede claramente não é óbvio, especialmente se considerarmos a maneira pela qual a lógica de redes se desenvolveu historicamente, com o fim de desmontar as definições de verdade, em oposição ao simulacro, que subentendiam o discurso da autenticidade. Mas essa tensão entre referências a autenticidade e referências a rede é parcialmente reabsorvida na formação progressiva de uma nova figura ideológica: o projeto. Podemos considerar que, nos anos que seguem, essa figura alcançará a robustez e a estabilidade de uma nova cité – no sentido do termo que Laurent Thévenot e eu desenvolvemos em De la Justification[2] –, enraizando-se em mecanismos organizacionais, legais e baseados em objetos. Assim, ela poderia se tornar suporte para julgamentos que permitem a ordenação de pessoas e coisas de acordo com a ordem de grandezas em relação à qual estas possam reivindicar seus interesses.
De maneira semelhante, a referência dupla à rede e à autenticidade reunidas na noção de projeto também constitui o centro de uma nova concepção de excelência humana: é grande aquele que é capaz de envolver-se completamente em projetos sabendo que estes são transitórios e permanecem flexíveis, ou seja, é grande aquele que está sempre pronto para procurar novas conexões mais improváveis e, portanto, mais valiosas. Nessa nova concepção do valor humano, tem-se mais chances de tornar-se a si mesmo, de ser mais autêntico, ao ser o mais leve, adaptável, flexível, afinado com as demandas da situação e tolerante com os outros quanto possível.
Vários apontamentos são necessários. O primeiro é que essa nova concepção da grandeza das pessoas, mecanismos e coisas é compatível com o liberalismo. Sendo assim, ela permite a reconciliação com as origens de esquerda do capitalismo, a reconciliação dos laços entre capitalismo e sua crítica e a emergência da crença na quimera de um capitalismo de esquerda. O segundo é que essa nova concepção não deveria ser levada muito a sério. Logo, a título de exemplo, tomemos a autonomia do trabalho: pode-se dizer que a valorização da confiança – questão favorita da sócio-economia do trabalho na década de 1980 – correspondeu a um período específico do “gap de controle” (control-gap), para retomar a famosa fórmula de Beniger[3]. Esse “gap” foi caracterizado pelo abandono das velhas formas tayloristas de controle fechado diante da instalação de técnicas computadorizadas de controle a longa distância e em tempo real, atualmente sendo desenvolvidas. Pode-se assumir que em alguns anos a famosa noção de “confiança”, tema de tantas conferências eruditas nas décadas de 1980 e 1990, deixe de ser debatida.
Por outro lado, como pode ser visto em um conjunto de monografias de campo e estudos estatísticos, novas formas de organização econômica resultaram na intensificação do trabalho realizado por empregados. Isso é acompanhado pelos problemas psicológicos e físicos relativos ao trabalho trazidos, por exemplo, pela polivalência, fluxos fortes ou horas flexíveis que buscam primariamente a diminuição de horas perdidas, a visibilização deficiências pelo gerenciamento e fazer os empregados arcarem com os custos resultantes dos riscos do mercado. Paralelamente, como mostrado n’O novo espírito do capitalismo, novas formas de exploração estão sendo desenvolvidas com base em níveis diferenciados de mobilidade que são adicionadas àquelas baseadas em graus diferentes de propriedade que, todavia, não tem menos peso na produção da desigualdade.
É preciso acrescentar que a intensificação do trabalho e as novas formas de exploração parecem afetar não somente aqueles envolvidos em empregos subalternos, mas também aqueles outrora referidos como executivos (cadres). Essa categoria vem crescendo significativamente, mas sua realidade e sua legitimidade são fortemente contestadas, não mais com base em análises marxistas como no passado, mas pelos organismos patronais. Tudo se passa como se estivéssemos testemunhando a aparição de uma nova forma, uma burguesia capaz de se auto-explorar. Todavia, pode-se duvidar se o termo “burguesia”, usado aqui na ausência de um termo melhor, deve realmente ser usado. Sem dúvidas, uma nova classe está em processo de formação, o termo “classe” também sendo usado aqui na falta de um melhor e sob a impressão de que não é realmente apropriado. Na verdade, o termo “classe”, na França das décadas de 1930 até 1980, serviu não somente para designar grupos compostos de pessoas reunidas com base na similaridade de condições. Ele designou grupos constituídos notadamente de acordo com uma lógica sindical, e representados no Estado. A “classe social” enquanto instituição correspondia então a uma construção muito particular da relação entre sociedade civil e Estado na qual o último garantia justiça social, concebida como redistribuição de ganhos da produtividade entre os grupos sociais[4]. Ora, o que viso quando falo da aparição de uma nova classe não tem de modo algum a pretensão de torná-la representável por organizações com contornos bem definidos ou dentro do Estado. Mesmo que despida de representação institucional, ela é fortemente representada no sentido de uma auto-representação, como conceituado por Goffman. Todos devem ter observado o seguinte: homens e mulheres jovens, geralmente graduados, vivendo no centro de grandes cidades como Paris, Londres, Berlim, Nova York, São Francisco, etc., que são consumidores cultos e significativos de produtos culturais, solteiros ou vivendo como casais, mas preferem não ter filhos ou tê-los muito mais tarde do que a geração anterior (“dupla renda sem filhos”). Todos visam sucesso financeiro. Entretanto, muitos sem dúvida não o alcançam, uma vez que a desigualdade de renda é particularmente marcante nesses grupos (especialmente entre artistas, pintores ou escultores, atores, etc.). Eles estão envoltos numa vida profissional que, generalizando o velho modelo do artista, é cada vez mais dificilmente distinguida de suas vidas privadas. Eles estão envolvidos em setores em que as margens são muito amplas e nos quais os lucros globais do capitalismo são mais seguros. Estes incluem finanças, arte, moda, tecnologia de informação, comunicação e mídia. Eles também são, frequentemente ao mesmo tempo, encontrados nos domínios da universidade e da pesquisa, campos nos quais a distinção entre pertencer ao setor público ou privado perde qualquer significado. É muito difícil dizer se os membros dessa nova classe são exploradores ou explorados. Sem dúvida são os dois, de maneiras diferentes. Eles mesmos não sabem disso e transitam, de acordo com o seu nível de sucesso, entre a celebração do novo mundo e a sua crítica; entre direita e esquerda.
Em que termos eles são de direita? Eles certamente o são de acordo com critérios antigos, no sentido de que eles não são mais habitados por um senso de injustiça social e pela culpa com a qual intelectuais das gerações passadas se expressavam ao falarem de si mesmos. A noção de exploração é-lhes completamente estranha. Eles esqueceram-se amplamente que sempre existiram trabalhadores, camponeses e pessoas pobres, ingloriosos pelo sublime dos banlieues. Poder-se-ia dizer que eles são de direita porque o mundo como é, é muito conveniente para eles. Eles estão perfeitamente incorporados ao novo capitalismo. Eles abandonaram completamente a ideia da Revolução total no domínio das relações de produção e na ordem econômica. Não há necessidade de esperar por ela; para eles, ela já chegou.
Por que deveriam ser considerados de esquerda? Porque rejeitaram, na maioria das situações em suas vidas, os traços correspondentes ao tipo de ordem que Laurent Thévenot e eu descrevemos como “cité doméstica”. Se de fato quiséssemos dar uma descrição apta para o que ocorreu na França em maio de 1968, sem dúvida seria conveniente dizer que essa crise resultou em livrar a maioria das situações da ordem doméstica. Tal afirmação é especialmente verdadeira em situações de trabalho onde essa ordem, durante as décadas de 1950 e 1960, continuou a desempenhar um papel importante para fazer julgamentos de grandeza. A ordem doméstica esteve mais envolvida no comprometimento com outras cités, como aquelas que chamamos de cité cívica e industrial. Nesse sentido, maio de 1968 facilitou o movimento de liberação em relação às dependências pessoais começado com Rousseau. Para ser mais exato, estas dependências pessoais reapareceriam na metáfora da rede. Todavia, as novas dependências (cada pessoa não é nada senão a relação entre os elos que ela/ele pôde criar) podem se apresentar como eletivas, arriscadas e excitantes em contraste com suas predecessoras prescrevidas.
Revolução na reprodução: um novo horizonte para a Revolução total
Concluo esse artigo com a seguinte hipótese: o anseio pela Revolução total é mantido dentro de uma parte significativa – talvez preponderante – da esquerda num formato mais ou menos semelhante àquele do século XIX. Entretanto, a questão das relações econômicas, relações de propriedade e relações de produção foi abandonada para investir-se, em vez disso, na questão da geração, reprodução humana e da relação entre sexualidade, paternidade/maternidade e parentesco.
Uma olhada diária pelos jornais é suficiente para mostrar que a esfera econômica não é mais o local de debates nos quais campos claramente polarizados se constituem e que se inflamam paixões políticas intensas. Há opiniões fortemente divergentes a serem encontradas em assuntos como propriedade, trabalho e o papel do Estado na administração da economia, etc. Mas não há formação de campos claramente opostos com posições coerentes em torno desses temas. A discussão existe, mas não é conduzida sobre o modo da injúria e da excomunhão mútua. Todos, ou quase todos, são educados. Todos, ou quase todos, são bem compreensivos. Todos, ou quase todos, são bem habermasianos, bem democráticos e bem deliberativos. De fato, nenhum grupo exprime mais claramente a esperança de associar sua formação de identidade com causas relevantes a ordem econômica. Um testemunho disso, por exemplo, é o fracasso de grupos que tentam se autoconstituir com base no desemprego e na exclusão. Isso sem mencionar o semi-abandono das referências às origens sociais feitas por intelectuais de origem proletária ou rural, tão frequente na década de 1970, que indissociavelmente expressava solidariedade com os explorados, protesto e um tipo de honra social.
No outro lado, ao longo dos últimos 30 anos, debates novos, vivos, polarizados e mal-educados apareceram, lidando com questões como aborto, inseminação artificial e liberdade de menores em relação a métodos contraceptivos, casamento, coabitação, família e a legalização de relações familiares equivalentes (conhecidas na França sob o acrônimo PACS), relacionamentos homossexuais, a constituição de famílias homossexuais e, finalmente, o status legal do embrião ou do feto. Até hoje, esses últimos permanecem não somente além da lei, mas também na interseção de todas as relações sociais, como testemunha por exemplo, o fato de que o aborto, conhecido e praticado na maioria das sociedades, nunca foi acompanhado por qualquer tipo de ritual[5].
A amplitude desses debates pode ser explicada de várias maneiras, muitas das quais longas demais e, por consequência, de difícil tratamento para esse artigo. Mas sua intensidade parece estar ligada à autoconstituição de grupos em torno de novas identidades como o feminismo, particularmente em sua forma radical, centrado na questão da reprodução. Tal é oposto do que, nos Estados Unidos, é chamado de feminismo igualitário, baseado na demanda pela não discriminação no trabalho e pela igualdade salarial. Seguindo no rastro do feminismo, temos outro exemplo no desenvolvimento de uma homossexualidade militante e identitária.
Em que sentido esses movimentos expressam anseios que se relacionam fortemente com o tema da Revolução total? O feminismo radical teorizado nos Estados Unidos, no fim da década de 1960 e início de 1970, por ativistas advindos do movimento pelos direitos civis e geralmente de orientação marxista, enfatizou um obstáculo para o alcance da humanidade no tempo presente. Esse obstáculo não é somente a discriminação enfrentada pelas mulheres, mas fundamentalmente, a opressão que elas experimentam. Essa opressão é definida como sexual, ou seja, não só a opressão de um sexo pelo outro, mas algo que é perpetuado na arena particular da sexualidade e na relação que esta tem com geração, maternidade e relações de parentesco. Opressão sexual está então enraizada na instituição das relações sexuais, uma construção política baseada nos mecanismos do casal e da família, mantida por uma ideologia de amor romântico e amor materno.
Autoras como Shulamith Firestone ou Kate Miller marcaram os movimentos feministas que apareceram em torno dos eventos de maio de 1968. Transpondo os esquemas marxistas, elas enfatizaram a reificação das mulheres dentro da família patriarcal nas quais eram definidas somente em termos da função de procriação, tratadas como capital a ser explorado por homens para reproduzirem a si mesmo e, por conseguinte, alijadas da possibilidade de alcançar uma humanidade plena[6]. Seguindo um esquema também inerente ao discurso da Revolução total, homens também são vistos como seres alienados pela opressão sexual. Logo, a revolução feminista não libertaria somente as mulheres enquanto classe sexualmente oprimida, mas a humanidade como um todo. Desde 1970, no livro The dialectic of sex, Shulamith Firestone vê essa liberação como algo que ocorre através da mudança no modo de reprodução, colocando em uso métodos de reprodução artificial para repartir a responsabilidade pela gestação e pela educação ao longo da sociedade como um todo.
Colocada no domínio da opressão sexual e da administração da procriação, a construção de uma identidade feminista foi fortalecida por meio das lutas intermediárias a favor da legitimação do aborto nas décadas de 1960 e 1970. Foi de fato o deslocamento do centro das demandas feministas, da luta por direitos políticos iguais e contra discriminação na educação, trabalho e salário para a questão do aborto que marcou a radicalização do movimento. Isso levou, mais nos Estados Unidos do que na Europa, à polarização de dois campos opostos no meio dos quais tornou-se impossível alcançar algum acordo. Em todos os domínios que concernem à reprodução e ao status do embrião, essa polarização prefigura a reestruturação da oposição entre esquerda e direita que está em vias de se fazer desde o começo da década de 1970, e que sem dúvida só está começando – só que agora centrada no domínio da biopolítica, em vez da economia política.
Para concluir rapidamente, dois apontamentos podem ser feitos a respeito do anseio pela Revolução total que atualmente está em construção no campo da reprodução humana. Primeiramente, trata-se de uma revolução muito mais radical do que aquela pela qual nossos predecessores almejaram no século XIX e na primeira metade do XX, ao colocarem suas esperanças nos domínios do direito à propriedade, da economia e do Estado. Ela é mais radical porque ela se insinua em zonas onde as antigas definições de revolução não tinham direito de entrada: aquelas das interações mais íntimas entre seres humanos, isto é, interações sexual e familiar. Mas também porque ela afeta as estruturas de parentesco, que até agora constituíram a base sólida de todos os arranjos sociais. Finalmente, isso ocorre porque envolve uma redefinição radical da antropologia.
Essa nova antropologia pode de fato ser facilmente colocada em harmonia com a antropologia subentendida no anseio pela Revolução total. Um dos principais elementos dessa nova antropologia é a separação entre humanidade primária, até certo ponto biológica ou de fato, e uma humanidade secundária, até certo ponto eletiva. Essa separação está institucionalizada hoje na distinção, primeiramente proposta na primeira metade da década de 1970 por filósofos morais como Michael Tooley[7] antes de ser inscrita em regulamentos legais, entre “seres humanos” que podem ter direitos, mas não necessariamente o direito de viver, e “pessoas humanas”, caracterizadas pelo fato de que lhes é garantido tal direito. Essa dicotomia pode constituir uma maneira de repensar a distinção, com a qual comecei, entre uma subumanidade, cujo desenvolvimento é impedido pelas condições presentes de sua existência, e uma humanidade futura que, pela sua libertação, pode ser totalmente realizada. Para se convencer, seria suficiente reler as propostas de filósofos de todos os gêneros, frequentemente incríveis, que suscitam regularmente os sucessos tecnológicos atuais no campo da biologia.
O segundo apontamento é que essa nova forma de anseio pela Revolução total é indiferente à questão do capitalismo. Ao contrário do pensamento das primeiras feministas radicais da década de 1970, a revolução total pode ser desenvolvida perfeitamente no domínio da reprodução humana sem afetar de maneira nenhuma a produção de bens materiais e serviços. A Revolução total no domínio da reprodução certamente teria efeitos importantes na economia, mesmo que somente a partir dos laços muito próximos, reconhecidos unanimemente por Malthus, entre economia e demografia. Entretanto, tais efeitos são totalmente compatíveis com a manutenção dos direitos de propriedade sob sua forma presente e com a expansão do capitalismo global. Vários indicadores podem até levar a pensar que os efeitos da Revolução total no domínio da reprodução beneficiariam a expansão do capitalismo.
Referências Bibliográficas:
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YACK, B. (1986) The Longing for Total Revolution. Philosophic Sources of Social Discontent from Rousseau to Marx and Nietzsche. Princeton: Princeton University Press.
Notas
[1] Rauol Vaneigem, Traité de savoir- vivre à l’usage des jeunes géné rations, Paris, Gallimard, 1967, p. 55.
[2] L. Boltanski,L.Thévenot, De lajustification,Paris,Gallimard, 1991 .
[3] James Beniger, The control revolution, Cambridge, Mass, Harvard UP, 1986.
[4] Luc Boltanski, Les cadres. La formation d’un groupe social, Paris, Minuit, 1982.
[5] Vale notar que o artigo foi escrito em 2002, logo, quaisquer mudanças legislativas ocorridas desde então não foram consideradas pelo autor.
[6] Ginette Castro, Radioscopie du féminisme américain, Paris, presses de la FNSP, 1984.
[7] Michael Tooley, “Abortion and infanticide”, in Philosophy and public affairs, vol 2, n o 1 ,1972,pp. 37-65.
*Fontes para tradução:
– BOLTANSKI, Luc. La gauche après mai 1968 et l’aspiration à la révolution totale “i. Cosmopolitiques (République cherche démocratie et plus si aff.), v. 3, p. 19-39, 2003.
– BOLTANSKI, Luc. The left after May 1968 and the longing for total revolution. Thesis Eleven, v. 69, n. 1, p. 1-20, 2002.
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