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Hegel sobre a negatividade e o Self, por Stephan Fucs

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Por Stephan Fucs (Universidade de Virginia)

Tradução: Carlos Fabris, Lucas Faial Soneghet e Alberto Cordeiro

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Com o idealismo alemão, a metafísica completa a filosofia do Sujeito, inaugurada no modernismo de Descartes, Leibniz e Kant. Quem é o Sujeito? Quem é o observador na Fenomenologia e como esse observador se relaciona com o observador da Fenomenologia? O Sujeito não é um ego acidental que se poderia encontrar, por assim dizer, “pessoalmente”, não é a soma de todas essas pessoas, e não é a construção estatística de uma pessoa “média”. Em vez disso, o Sujeito é subjetividade. Subjetividade é aquilo que faz de um Sujeito um Sujeito, Sujeito como Sujeito, a “condição de Sujeito” (Subjecthood) como tal, em que a “condição” da “condição de Sujeito” deve ser compreendida da mesma forma que a “condição” em “condição de Estado” (Statehood), por exemplo, ou em “condição da vida adulta” (Adulthood).

A condição de Sujeito constitui o Self. O Self não é uma entidade acabada, mas uma rede em evolução ou, mais próximo de Hegel, um sistema de relações em curso de formação (in-the-making). Hegel distingue entre três encarnações do Sujeito – o “Espírito” ou Sujeito “absoluto”, o “Self” como a autoconsciência, e a “consciência” como a atitude natural ou o senso comum. Entretanto, como as três encarnações são em um mesmo Sujeito, mesmo que em diferentes modos de existência, a noção de “Self” é escolhida aqui para indicar a unidade do Sujeito nas diversas etapas que marcam a história do seu próprio devir.

Hegel pensa o Self não primariamente como um quê, mas como um quem de um como. Como um “quê”, o Self é pessoa, o “Mim” de um “Eu”, fixado nos e pelos seus papéis, tipos, atributos, propriedades, e características pesquisáveis objetivas. Como pessoa, o Self aparece como um “objeto” para si mesmo, e para os outros é parte de um “eles”. Esse é o Self em seu senso como ou uso cotidiano, o portador de certos traços empíricos que podem ser observados e mensurados de alguma forma. Desta forma comum, a identidade do Self se solidifica em um robusto e estável self central, que é o que é, sem mais perguntas. No seu centro, o Self se protege contra distúrbios e perturbações da sua identidade atual. Ele resiste à mudança e se estabelece em uma relutância ou incapacidade de se considerar como sendo diferente ou de outra forma. Como substância ou essência, o Self representa um fechamento do seu horizonte e uma prisão da sua transcendência e autossuperação.   

No entanto, esta é só uma das possibilidade de ser do Self, e quando ele existe desta maneira “objetiva”, é porque de alguma forma ele permitiu e deixou-se tornar algo como um objeto, talvez para evitar a prestação de contas e fugir da responsabilidade. Então, nada nunca é culpa de ninguém. Algo ou outra pessoa me fez fazer isso, e eu não devo ser culpado pelo que eu fiz. Porém, seja com pessoa ou “eu”, o Sujeito continua sendo Sujeito, embora no modo de objeto, como Sujeito permitindo-se ser visto e encarado como objeto, digamos no olhar de ciências como a psicologia e a fisiologia. Mesmo existindo no modo de objeto, o Sujeito mantém-se responsável por sua própria irresponsabilidade, por sua própria objetividade. Pois é o Sujeito, não o Objeto, que distingue entre Sujeito e Objeto em primeiro lugar.     

Um Sujeito ou Self não existe do mesmo modo que as rochas, as cadeiras ou a matemática. Ele não ocorre simplesmente no mundo como algo que se pode “encontrar” lá. Diferente das rochas e das cadeiras, o Self é tanto a origem como o resultado do seu próprio devir. O seu “fim” é o seu “começo”, um retorno a si mesmo depois de ter se tornado alienado de si mesmo, e ter superado essa alienação. O fim do Self não é uma mera repetição do seu ser original, como se não houvessem diferenças entre dois conjuntos de estados idênticos de Self, um no começo e outro no fim. O Self é, e não é, o mesmo nas suas várias manifestações; é a unidade de uma diferença entre as diversas várias fases e transições de fases na história do seu devir. Do mesmo modo, quando se aprende ou se experiencia algo, se é tanto o mesmo que era (como se aprendeu) quanto diferente (como se sabendo o que não sabia antes).    

O Self é quem ele se torna e se torna quem é ele é. O seu ser, como todos Seres para Hegel, é um Devir. Porém, o seu devir não é algo que simplesmente aconteceu paracomo o Self, como se fosse causado ou iniciado por forças exteriores a ele. Pelo contrário, o Self deve se encarregar de si próprio e do seu devir. Caso contrário, ele vai permanecer preso em qualquer forma acidental em que esteja no momento. O Self é suas possibilidades, e uma dessas possibilidades é de renunciá-las e continuar sendo pessoa, um em-si, um Ego acidental, um qualquer um e um todos. De fato, isto é o que geralmente acontece;  o desdobramento do Self como possibilidade é interrompido e preso em algum momento, e então simplesmente se é o que é, a soma de seus traços pessoais e objetivos.

O Self é apenas como suas próprias possibilidades. Como tal, não é detectável e descritível do modo como objetos ou pessoas são quando observados por uma ciência, por estatísticas ou pela burocracia. Como possibilidade, o Self não é uma “coisa”, mas uma complexa e evolutiva rede ou sistema de relações. Sua identidade consigo mesmo não é estática, vazia, puramente formal ou tautológica. Fichte descobre que “Eu sou Eu” [I am who I am] não é o mesmo tipo de relação que “A = A;” a identidade ipse não é idêntica à identidade idem. O Self não é quem ele é – ele também está em, e como, seus futuros possíveis. O Self não é que ele era – ele existe também nos poderiam-ter-sidos e nos deveriam-ter-sido-feitos de passados alternativos, possibilidades que falharam em se realizar.

Como possibilidade, o Self pode encontrar-se a si mesmo ou falhar ao fazê-lo. O encontro do Self por si mesmo é diferente de encontrar um centavo na rua, que se “tem” e “possui” para sempre. Pois o Self só pode se encontrar quando ele, de alguma forma, já “sabe” quem ele é e a quem precisa encontrar. O Self também pode falhar em se encontrar, e mesmo que ele de fato se encontrear, ele pode se perder novamente, o que só é também possível porque ele já “tem” a si mesmo de alguma maneira. Porque não se pode perder o que nunca se teve. Quando o Self está “perdido”, ele não desaparece completamente, mas ele existe em um modo de ausência, de não ser quem ele é, ou ser que ele não é. Este é o Self no modo de ausência, negação e negatividade – um NÃO. O Self carece de si mesmo, uma co-incidência consigo mesmo, e assim “passamos grande parte das nossas vidas enchendo buracos e preenchendo vazios…” (Sartre, p. 1048).

O Self é tanto mais e menos do quê e quem ele é. É mais que ele mesmo porque existe, em termos metafísicos, como horizonte e transcendente. É horizontal ao ser aberto ao mundo e a si mesmo. É transcendental na medida em que supera qualquer das suas condições atuais. Porém, quando sua abertura horizonte se estreita, ou mesmo se fecha, o Self torna-se o seu outro, um objeto, um em-si, uma pessoa com certas características, um tipo ou uma média. É então menos do que ele mesmo. No entanto, o Self pode suplantar descrições objetivas de si mesmo, como seções transversais psicológicas de seus estados e condições atuais. O relato e o experimento psicológicos insistem que eles revelam os verdadeiros parâmetros das pessoas, enquanto as pessoas participam de tais experimentos apenas no modo de “pessoas que participam de um experimento”.  Afinal, a psicologia é apenas uma possibilidade que o Self (moderno) estabeleceu para investigar a si mesmo como um objeto da ciência. Outra tentativa recente é a neurociência. Mas o Self é o seu cérebro, e nada mais, apenas para e de acordo com a neurociência. É o Self, não o cérebro, que vê o Self como cérebro. Psicologia e neurociência são apenas duas possibilidades que o Self estabeleceu para se relacionar e observar a si mesmo. Nenhuma ciência chega ao Eu “verdadeiro” – o Self como possibilidade e processo. Muito menos é qualquer fato psicológico ou neurocientífico sobre pessoas ou cérebros o “todo” da verdade do Self.

O Self se distingue do que não é, através da definição, e, ao mesmo tempo, se relaciona com o que tem agora, uma vez que a distinção é feita, e não antes, a sua diferença e o outro lado. O Self é em si mesmo “negativo” e “relacional”. Para o hegeliano Kierkegaard, “o Self é uma relação que estabelece consigo próprioa” (Kr.z.T., p. 9). O Self se distingue e se relaciona com o objeto, consigo mesmo, e como outros Selves [plural de Self, no inglês]. Ser relacional é existir como relação: “No começoa é a relação” (Buber). Relacionar-se não é algo que o Self faz às vezes, mas poderia muito bem não o fazer. Relacionalidade não é uma propriedade do Self dentre outras propriedades. Muito menos é a sua relacionalidade uma propriedade acidental ou contingente, cuja ausência manteria o Self mais ou menos como é. O Self é relacional – ele existe como, através, e nas suas relações, tanto como unidade quanto diferença dessas relações.

O Self relacional é relativo, não absoluto. Mas na história da experiência, que é o contínuo desdobramento e movimento das suas relações, o Self consegue se desengatar da sua incorporação no mundo e se ab-solver do Objeto como seu outro. O movimento que o Self é para a retirada do mundo, para tornar-se o Self como Sujeito absoluto, uma identidade pura e unidade consigo mesmo. No entanto, essa unidade não vem facilmente. É uma unidade a ser realizada e, uma vez alcançada, mantida. Selves quebrados precisam de conserto. Há a possibilidade iminente e crônica ou endêmica de falha em realizar a unidade. O Self não pode tomar a si mesmo como certo. Pode perder-se, desmoronar-se ou perder-se no outro lado de si mesmo, no objeto ou no mundo. Heidegger chama isso de condição “normal” do Da-sein como Benommenheit e Zerstreuung. A unidade do Self consigo mesmo nunca é terminada ou completa, até que, isto é, o Self se torne “absoluto”. Porém, o devir do Self, seu vir-a-ser próprio, requer contínuas lutas, conflitos, até mesmo batalhas pela vida e a morte, como Hegel afirma (citação em: GA 45:71).

O Self se relaciona com coisas e objetos do mundo, consigo mesmo e com outros Selves. Isto é, ele se realiza, ou falha em fazê-lo, com a unidade de uma tripla distinção e relação com o que está sendo distinguido.

Figura: A Estrutura Relacional do Self

Mas sua realização de si mesmo não é algo que simplesmente aconteceu com ele. Antes, o devir do Self, que Hegel chama de “experiência”, leva muito tempo e esforço, algo como um “trabalho” sustentado. Esse é o trabalho de superar sua alteridade ou negatividade, sua objetividade ou mundanidade. A “experiência” hegeliana mostra que esse mundo, o mundo supostamente “real”, o mundo dos sentidos, do corpo, e a vida ordinária são decepção e ilusão, carecendo de verdade como um todo sem verdade alguma. Uma vez que tenham passado pela experiência de decepção na vida, os outrora cativos da caverna olham para trás e agora, mas não antes, podem ver as sombras como elas são, como sombras. Mas para fazer isso, eles devem se mover em direção a luz e ao sol, rompendo as correntes amarrando-os ao senso comum. O movimento de toda a metafísica está contida no símile da caverna de Platão, até em Nietzsche, cujo Zaratustra também deixa a caverna para ensinar o Übermensch.

O Self enfrenta o possível fracasso de não se tornar quem é, ou se tornar o que não é. Nesses casos existe como negatividade ou desespero. Existe no jeito de não ser quem é, como Objeto. Desespero não é dúvida; dúvida é cognitiva, desespero é existencial. Existir em desespero é não ser nem um nem outro, algo entre. No desespero, o Sujeito não é Sujeito e sim Objeto, mas também não é totalmente Objeto a ponto de perder toda a Subjetividade. Pedras não existem em desespero; elaes co-incidem consigo mesmos totalmente mesmas. Desespero é o privilégio e oportunidade do Self, a possibilidade de superar a si mesmo no suportar do desespero. Desespero não é uma condição para a qual remédios rápidos e úteis estão prontamente disponíveis.

Estar em desespero é algo muito mais sério do que entreter meras dúvidas sobre uma coisa ou outra. Em alemão, dúvida é Zwei-fel; desespero é Ver-zwei-flung. A primeira é uma condição cognitiva, a segunda uma condição existencial. A raiz das duas palavras é “zwei”, que significa dois. Se alguém duvida algo, não está certo ou não sabe se algo é o caso ou não. Se alguém está em desespero, esse alguém não sabe quem é ou se perdeu. Em desespero, não se é nem um nem outro, nem (e sim) Sujeito nem Objeto (ainda), suspendido num lugar “entre”, sem pertencer a nenhum lado da distinção, sem lar e perdido.

Superar sua própria negatividade e desespero ou perda exige “trabalho” contínuo do Self. Não há ninguém para quem o Self possa se voltar pedindo ajuda, visto que a experiência pela qual está passando no caminho de seu devir não pode ser trilhado por mais ninguém no lugar do Self, em seu lugar ou em seu nome. O movimento e o devir do Self não está roteirizado de antemão, como se fosse possível para ele seguir um mapa com direções claras para um destino. A Fenomenologia de Hegel não é um guia de viagem, um companheiro amigável numa estrada em direção a um Self melhor, mais feliz e mais seguro. A experiência vem do erro e da decepção, logo é “negativa” em si mesma. A experiência é um processo de des-ilusão contínua, no qual a verdade outrora vivida se revela ela mesma parcial e incompleta, e a nova verdade não está ainda visível ou ainda não é atingível. A ilusão na qual o Self vive afirma que o mundo do senso comum e a vida cotidiana, o “mundo da vida”, não somente é real, mas verdadeiro, que é, de fato, a única verdade possível e necessária. O senso comum se baseia numa rejeição forte e numa resistência a observar a si mesmo de forma alguma, menos ainda a considerar a si mesmo como uma possibilidade dentre outras. Consequentemente, o senso comum é hostil à filosofia, ou a ridiculariza chamando-a de mera especulação e fantasia, longe daquilo que realmente acontece e importa no mundo real, o mundo enquanto senso comum. Como Hegel (p. 51) diz, o senso comum reage àa filosofia com incredulidade e revolta, semelhante às reações emocionais fortes de “membros” diante da ruptura de suas expectativas normais na etnometodologia.

Enquanto não houver se tornado quem é, o Self deve continuar a superar a si mesmo e a sua inércia, sua necessidade e desejo de se manter confortavelmente onde está, de chamar de lar o lugar onde está. O Self em devir está dividido dentro de si mesmo, continuamente ameaçando se desfazer, em desespero por si mesmo, e sempre tentado a desistir, resignar, e permanecer o que era. Há um impulso forte de permanecer fixado dentro dos limites confortáveis do mundo “normal” e conhecido da vida cotidiana e a segurança de suas rotinas, hábitos e costumes. Deixar esse mundo significa embarcar numa jornada incerta cheia de ansiedade, desespero, fracasso e desorientação. Quando se salta para fora da normalidade e da facticidade do senso comum, torna-se estranho e “alienígena” para si mesmo e para aqueles deixados para trás. O movimento da experiência é de estranhamento e alienação em relação ao que se era antes e ao que o mundo era. Não é um movimento suave e gradual, mas uma série de choques (GA 45:168ff). A pessoa pode terminar em confinamento institucional, feito para aqueles que, aparentemente, não fazem ou não podem fazer sentido de forma alguma. Nesse mundo, tudo já está decidido e sabido. Mesmo havendo escapado da mão forte do senso comum, sempre há uma vontade de voltar a ele, de rejeitar o risco de se libertar do mundo conhecido e familiar, a realidade do senso comum e da atitude natural. São necessários esforço e luta contínuos para deixar esse mundo para trás, desistir das certezas da vida ordinária e resistir à tentação de retornar a elas. O senso comum não é somente um sistema de crenças ou “atitudes proposicionais”, a “psicologia popular” da ciência cognitiva. O senso comum não está em nós na forma de uma estrutura de estados mentais; antes, nós estamos nele, tanto que, na maior parte do tempo, não conseguimos nem mesmo enxergar o senso comum, porque ele está tão perto de nós, tão perto que normalmente somos ele.

No seu modo senso comum, as relações nas quais e enquanto as quais o Self existe se endurecem num centro robusto, o si mesmo central. O Self central é o Sujeito enquanto substância ou essência, um sistema sólido e robusto de atitudes e atributos fixados. A abertura do Self horizontal e transcendental se foca e se fecha naquilo que agora se torna e permanece o Self “real”. Esse é o Self enquanto pessoa, enquanto papel, enquanto Mim, enquanto o “das Man” de Heidegger.

Sendo o “idealista” que é, Hegel vê o Self como consciência e conhecimento. O Self consciente está consciente de algo no mundo, um objeto e, uno actu, está consciente de si mesmo enquanto ser que está consciente. Entretanto, a presença do Self para si mesmo enquanto re-presenta o Objeto na maioria de seus “atos intencionais”, permanece implícita e latente, particularmente no modo cotidiano no qual o Self “naturalmente” vive. Geralmente o Self está envolvido e absorvido em seus assuntos cotidianos. Porém, desde Descartes, a presença do Self para ele mesmo é uma certeza indubitável, auto-certeza. O Sujeito está certo de si mesmo enquanto aquele para quem o mundo aparece. É um Cogito, uma síntese kantiana, a própria condição da possibilidade do mundo aparecer e então ser. Mas o Sujeito não está realmente “no” mundo; ele se posiciona oposto ao, e do lado de fora do, mundo. O Cogito, de Descartes a Husserl, é ou a-mundano. Embora seu “corpo” permaneça parte do mundo, sua “mente” escapa, tornando-se o “meta” para a “física” do corpo. Semelhantemente, para Hegel, o devir do Self é o superar do Self relativo no Sujeito absoluto. Tornar-se absoluto exige a retirada do mundo, exige a morte da pessoa natural.

O Sujeito hegeliano, o Sujeito da metafísica moderna e seu reverso em Nietzsche, sujeita o mundo a sua representação e vontade. Sem o Sujeito, o mundo é nada, pura negatividade. Para superar a negatividade, o Sujeito deve se separar do seu outro, o objeto e o mundo, deixando para trás sua vida anterior. Em sua retirada do mundo, o Sujeito torna-se absoluto e puro: Deus, móvel imóvel, causa suis, Primeiro Começo.

A metafísica de Hegel é uma ontoteologia. Ser é Devir é Sujeito é Deus. Isso é Cristianismo com a diferença de que o Sujeito deve realizar sua própria absolvição. Ele não pode deixar sua absolvição para os outros. Não pode confiar em absolvição pela oração ou confissão para padres. É somente ele o responsável pelo seu devir. Seu devir é um retorno a sua fonte e origem, o Sujeito absoluto, que é início e fim do movimento da experiência. O “ato” primeiro e original do Sujeito é a marcação de uma distinção, a distinção entre ele mesmo e o Objeto. Porém, como resultado dessa distinção, algo falta para o Sujeito. O que falta é o outro lado de si mesmo, e então ele deve reconquistar seu outro para tornar-se completo e inteiro de novo. O outro não é totalmente alienígena ou estranho ao Sujeito, visto que é seu outro, o outro lado do e para o Sujeito. É o Sujeito, não o Objeto, que marca a distinção entre Sujeito e Objeto em primeiro lugar. O “primeiro” Sujeito absoluto é, então, o Sujeito antes da distinção, antes da Queda, antes da alienação e da negatividade que vem com a imersão e absorção do Self no mundo.

O Sujeito é o mesmo e diferente no seu começo e fim. É o mesmo enquanto Sujeito de seu próprio devir. É diferente enquanto passa pelo processo e movimento da experiência, tanto superando quanto retendo suas prévias encarnações (Aufhebung). O Sujeito não simplesmente descarta ou larga suas realizações prévias. Em vez disso, enquanto muda e se desenvolve, ele continua a ser seu passado enquanto o passado que conseguiu superar. É o mesmo ao não ser mais quem era, mas ao lembrar e então preservar seu passado, o Sujeito é suas relações com suas encarnações prévias. O Sujeito não é nenhuma de suas manifestações parciais, mas sim a totalidade de seu processo de devir e experiência.

Nesse ponto, pode ser proveitoso tornar explícita a distinção que permanecerá implícita daqui em diante – a distinção entre dois observadores, um no primeiro e o outro no segundo nível de observação. O observador no primeiro nível é a atitude natural e senso comum, o Self da vida cotidiana. Esse é o Self “ôntico”, nos termos de Heidegger, absorvido e imerso no mundo, preso em seu centro denso, definido pelos outros, seguro em seu lugar pela sua persona, desaparecendo na média anônima. Nos termos de Hegel, esse é o Self enquanto consciência natural, totalmente do lado do Objeto na distinção Sujeito/Objeto. O primeiro nível de observação é “realista”, atribui suas observações ao que está sendo observado, o Objeto, e não ao observador, o Sujeito. Ao mesmo tempo, o observador de primeiro nível tem a possibilidade, geralmente latente, de auto-consciência. Consciência do self significa mover-se em direção ao polo-Sujeito da distinção Sujeito/Objeto, em direção à realização que o Sujeito, e não o Objeto, é o Sujeito da distinção e relação Sujeito/Objeto. O Sujeito começa a perceber que o Objeto é o que é para o Sujeito: o em-si mesmo é aquilo que é somente para e de acordo com um para-si mesmo.

O desenvolvimento pleno dessa possibilidade implícita é o devir do observador de segunda-ordem do Sujeito, isto é, a filosofia do Sujeito de Hegel, idealismo absoluto. O observador de segunda-ordem, “Hegel”, observa o observador de primeira-ordem, o Sujeito em sua encarnação de senso comum enquanto centro robusto do Self ou substância da atitude natural. No modo “primeira-ordem”, o Sujeito observa o Objeto e atribui suas observações ao objeto, ao jeito que as coisas realmente são e devem ser, como todos e qualquer certamente devem saber. Vejo a parede ali e a razão óbvia para isso nada tem a ver comigo enquanto observador. Vejo a parede porque a parede realmente está lá para ser vista. Nesse ponto, o Self não está consciente de si mesmo enquanto observador para quem o mundo aparece. Por não estar consciente de si mesmo, ou pelo menos não estar explicitamente, o Self de primeira-ordem também não pode ver suas relações com o Objeto. Então a verdade aparece totalmente no lado do objeto (empirismo, fisicalismo).

O observador “Hegel” ocupa a posição do Sujeito experimentado, o Sujeito absoluto, o Sujeito que absolveu a si mesmo de seu outro lado e da negatividade, o Objeto. O observador de segunda-ordem observa o observador, o Sujeito, e atribui sua distinção, relação e conhecimento do Objeto ao Sujeito. Para o Sujeito ele mesmo, a transformação de observação de primeira para segunda-ordem ocorre como resultado do erro. O Sujeito emerge como Sujeito quando toma responsabilidade pelos seus erros. Se a marmota que vejo acaba sendo um ouriço, não é culpa do ouriço, mas sim culpa minha. Nessa e através dessa experiência, o Self nasce como Self. Isto marca a transição do Self ôntico para ontológico. Essa é, pelo menos, a possibilidade realizada no observador “Hegel” e “fenomenologia”. Normalmente, porém, o Self recai em seu modo senso comum e primeira-ordem, continuando a atribuir suas observações não a si mesmo, mas ao Objeto.

O observador ontológico não observa o que o observador ôntico observa, mas como o observador observa. Onde o observador ôntico vê objetos, o observador ontológico observa objetividade. Objetividade não pode ser vista do mesmo jeito que objetos, e geralmente não é vista de forma alguma. Apesar disso, objetividade é a condição sob a qual objetos podem ser vistos, pois objetos podem ser vistos enquanto objetos somente se é “sabido” o que constitui todo e qualquer objeto como objeto. Em termos kantianos, o ontológico é o observador transcendental, que vê aquilo que deve vir antes, anteriormente a percepção de qualquer objeto particular. Logo, a condição para a objetividade de objetos é a Subjetividade do Sujeito. São as categorias da “razão” e da “lógica” do Sujeito que constituem o que pertence a um objeto, a natureza, ao mundo enquanto tal. Tais categorias não podem ser “induzidas” a partir de qualquer objeto, portanto não há transição suave da observação ôntica para a observação ontológica.

Qual é, então, a relação entre o Self ôntico e ontológico, observadores de primeira e de segunda-ordem? Na e através da experiência, o Self ôntico pode transformar a si mesmo num Self ontológico. Então, o Self observa a si mesmo como observador (reflexividade). Na reflexividade, observadores de primeira e segunda ordem são um e o mesmo Self, mesmo que em diferentes encarnações. O Self pode se tornar somente ele mesmo, logo, a possibilidade de transformação já deve estar no Self, mesmo em sua forma ôntica. “Hegel” significa a possibilidade do Self se mover para além e para fora de seu estado ôntico ou natural. Mas “Hegel” não cria esse movimento. Esse só pode se realizar pelo Self consigo mesmo. O que “Hegel” enquanto fenomenologia pode fazer é irritar o Self até o ponto que seu retorno para o senso comum seja mais difícil. “Hegel” pode mostrar que a possibilidade do senso comum e da atitude natural é uma dentre outras possibilidades para o Self ser e existir.

O movimento da experiência é o movimento em direção à Verdade. A verdade é a verdade absoluta, a unidade perfeita e a identidade do Sujeito consigo mesmo, sua presença desimpedida para si mesmo, conhecimento do conhecimento, ciência da ciência, ou lógica. O Sujeito é o devir e a história da lógica enquanto reflexividade pura, pensamento do pensamento, ou filosofia. Mas tal verdade absoluta não substitui as verdades ao longo do caminho da experiência. Antes, a verdade é a verdade de todo o movimento e processo no qual o Sujeito torna-se quem é. Esse é o sentido por trás da declaração que talvez seja a mais mal entendida na história da filosofia: “A Verdade é a Totalidade.”

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