por Étienne Bimbenet
Tradução: Diogo Corrêa
Revisão: Samantha Sales
Resenha de ‘Le Lieu de l’universel. Impasses du réalisme dans la philosophie contemporaine’ (Seuil, 2015), de Isabelle Thomas-Fogiel.
Para conhecer melhor a autora, confira outro post do Blog do Sociofilo: ‘O lugar do universal, impasses do realismo na filosofia contemporânea’.
Para a maioria de nós que filosofamos, não há filosofia, mas filosofias. Nós pensamos sob o abrigo de fronteiras sólidas, nossas capelas são numerosas, cada uma guardiã de seu próprio domínio e dogma. Isso é ainda mais reforçado pela lacuna que existe entre as filosofias “continental” (aquela que é principalmente a nossa, na Europa continental) e “analítica” (como se pratica no mundo anglo-saxão desde Frege, Russell ou Wittgenstein): exatamente porque tem a aparência do bom senso, essa divisão confere legitimidade suplementar e uma oficialidade à especialização de tarefas. No entanto, quando assumimos que a filosofia “verdadeira” é feita aqui e não ali, ou que a intuição, por exemplo, vale mais do que a análise, pressupomos implicitamente um saber “da” filosofia em geral (em vez “de” filosofia); nessa divisão do verdadeiro e do falso ou do autêntico e do ilusório, reconhecemos paradoxalmente uma visão unificada da coisa. “Rejeitar (ato feito com uma generosidade profusa de ambos os lados de cada fronteira) supõe uma compreensão de conjunto” (p. 12). Podemos então tomar partido e “tornar explícito o que todos admitem implicitamente” (id.); podemos também visar a síntese, o que Isabelle Thomas-Fogiel faz em Le Lieu de l’universel. Impasses du réalisme dans la philosophie contemporaine [O lugar do universal. Impasses do realismo na filosofia contemporânea].
De fato, o livro é ambicioso e abraça a maior parte do que foi feito em filosofia nos últimos trinta anos. Ele organiza e coloca tudo isso em perspectiva a partir de um único problema. O livro é igualmente controverso e questiona toda a filosofia contemporânea, sugerindo que ela está no caminho errado, que a solução que dá ao seu problema constitutivo é um impasse e que é tempo de considerar mudar de rumo (p. 24). Antes de nos aprofundarmos nesse tema desconcertante, reconheçamos que ele tem o mérito de tentar apresentar uma visão geral da filosofia, o que é raro e precioso. Ele assume uma verdadeira questão: o que pensamos hoje? Para onde olhamos todos juntos? Esse “nós” de época, esse “nós” dos filósofos de hoje, tem um sentido? E qual?
O realismo como contra-modelo da perspectiva clássica
A narrativa que Isabelle Thomas-Fogiel propõe começa com um paradoxo destinado a recapitular o que foi o pensamento moderno para nós. Esse paradoxo encontra a sua representação mais efetiva na perspectiva planimétrica inventada no Renascimento. O sujeito nela está situado, de fato, em um lugar do mundo, e ao mesmo tempo, em face desse mundo para contemplá-lo. Ele assume um situs particular e, no entanto, sobrevoa o conjunto do espetáculo para ordená-lo geometricamente. Ele está situado em algum lugar e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum. Todas as filosofias do século XX, ou a maioria delas, terão tentado desconstruir essa posição projetiva do sujeito clássico, desfazer a posição absoluta do “ponto de vista de lugar nenhum”, argumentando, ao contrário, que pertencemos inexoravelmente a esse mundo. No entanto, esse retorno do absoluto ao relativo ou da transcendência à imanência tomou um rumo mais preciso nos últimos trinta anos, o de um “realismo” que congrega, em suas diferentes obediências, filosofias continentais e analíticas.
Assim vemos a “nova fenomenologia francesa” (J.-L. Marion, J.-L. Chrétien, J. Benoist, C. Romano, N. Depraz, M. Richir…) reconhecer o “dado” (a experiência tal como é dada e imposta a nós) como uma autoridade tal que somos radicalmente submetidos a ele. Como o “fenômeno saturado” de Jean-Luc Marion, que se impõe a nós porque excede qualquer possível antecipação de nossa parte, o dado vale como critério último que subordina o sujeito da experiência, abolindo nele toda capacidade de recuo crítico. Estamos então longe do Ego transcendental husserliano a quem esse poder epistêmico insigne foi reconhecido, pelas reduções fenomenológicas e eidéticas, para suspender a autoridade do real e exibir as suas estruturas essenciais. Convocado ao tribunal do dado, o filósofo só tem de mostrar em vez de demonstrar, descrever em vez de dar razões, “se fazer de videógrafo de situações específicas e contingentes” (p. 75).
A esse “realismo do dado” responde, do lado analítico, o “realismo ordinário” dos filósofos pós-wittgensteinianos (J. Benoist em seus últimos trabalhos, S. Laugier, C. Travis, S. Cavell, V. Descombes, J. Bouveresse, C. Diamond….). Considerar que não há razões para “aceder” às coisas e à sua verdade, porque agora já as “temos”, afirmar que a verdade é o que pertence contextualmente a este ou aquele jogo de linguagem, enfim, postular que a prática se justifica por si mesma ao se fazer, é rebater a verdade com a realidade, ou a razão com os nossos costumes. Daí uma forma inquietante de “quietismo” antifilosófico: mais do que nunca prisioneiros da linguagem ordinária, imersos nessa totalidade sem exterioridade que só temos que manifestar passivamente, não se trata mais para nós “nem de compreender, nem de avaliar, nem de demandar uma razão, mas de continuar nossas práticas, sem exigir nada além dessa continuidade. O real (nossas práticas) funciona sem filosofia e não há nada aí para ser questionado” (p. 210).
Assim caracterizadas, a fenomenologia atual e a filosofia analítica do ordinário comunicam-se diretamente, segundo Isabelle Thomas-Fogiel, com o que ela chama de “realismo metafísico”. E com isso ela entende aqueles que, como Claudine Tiercelin, advogam por uma opção realista no seio da corrente da “metafísica analítica” contemporânea, defendendo a possibilidade de articulação racional das categorias constitutivas do que é (a forma, a essência, a identidade, a causa, etc.); ou aqueles que, com Quentin Meillassoux, tentam tornar novamente crível, contra a inflação de um idealismo de tipo transcendental, a legitimidade de um discurso verdadeiro sobre o ser em si. Sob seus aspectos analítico ou especulativo, a metafísica realista afirma, assim, que se pode pensar uma realidade independente de nós que a pensamos, ou que se pode escapar da “correlação” idealista do mundo e do sujeito conhecedor. É portanto difícil escapar, hoje, do realismo. Em uns ou outros, quer sejam fenomenólogos, filósofos da linguagem ordinária, metafísicos analíticos ou realistas especulativos, o real é o que comanda o abandono das prerrogativas racionais e críticas do sujeito conhecedor. É como se, para negar a posição projetiva metafísica que era aquela do espectador no perspectivismo clássico, o sujeito tivesse apenas que se confundir com o objeto e submeter o corpo e a alma à sua autoridade; é como se a filosofia sonhasse hoje, em um modo “pré-crítico”, com um mundo no qual as palavras se confundiriam com as coisas.
Um novo perspectivismo
É assim que a quase totalidade do que se faz hoje em filosofia é vista como uma novidade, um recomeço, porque ela é reordenada a partir desse ponto de convergência englobante que é o realismo. Para Isabelle Thomas-Fogiel, ser hoje um filósofo realista significa ter tentado, e nesse caso falhado, fugir do perspectivismo moderno. É ter trocado a perspectiva metafísica do espectador pela imanência radical; é ter abandonado a liberdade epistêmica do Ego transcendental em prol da submissão ao real, seja este entendido como experiência dada, contexto linguístico ou ser em-si. Cada uma das imagens da filosofia contemporânea terá assim negado que uma relação equilibrada foi possível entre o sujeito e o objeto de conhecimento; cada uma terá tudo dado ao objeto em detrimento do sujeito.
Propor um contra-modelo viável ao perspectivismo antigo significaria então, para o sujeito filosofante, saber renunciar à sua absolutez metafísica, sem contudo se negar enquanto instância racional. É o que tenta Isabelle Thomas-Fogiel por meio de dois tipos de modelização alternativa. Uma modelização “topológica”, herdada de Merleau-Ponty e Dufrenne, destinada a reequilibrar a relação do sujeito com o objeto, apostando nas diferentes imagens da “interrelação” que estão em destaque nesses dois fenomenólogos (reversibilidade, entrelaçamento, sobreposição, quiasma, ação recíproca…). E, por outro lado, uma modelização “comunicacional”, baseada no poder da “pluralização perspectiva” e da “infinitização do finito” do sujeito falante: falar é deixar o seu próprio ponto de vista e ampliá-lo, fazendo-o comunicar com outros pontos de vista possíveis sobre a mesma coisa, é transgredir o finito na direção de uma universalidade presumível [ainda que sempre inalcançável]. Seja qual for o modelo previsto, em ambos os casos se explora a possibilidade de escapar ao “face a face” metafísico do sujeito e do objeto, sem inferir o sujeito do objeto e sem perder a incompressível distância necessária para qualquer empreendimento racional.
Que abraça demais
Não se pode reprovar Isabelle Thomas-Fogiel por ter pretendido adotar o ponto de vista mais compreensivo possível; não se pode reprová-la por ter desejado aprisionar a filosofia a fim de abri-la a este “limite ilimitado essencial que o pensamento opera de modo incansável” (p. 434). Mais uma vez, é uma postura preciosa, simplesmente a da razão, de “braços sempre abertos e de punho levantado” (p. 450). Por outro lado, sugeriremos que ela talvez tenha dado um passo em falso nessa síntese.
Por que realmente colocar no mesmo plano as metafísicas realistas (especulativa e analítica) com a fenomenologia do dado e a filosofia da linguagem ordinária? Parece-nos difícil englobar estas últimas sob a mesma bandeira do realismo. E isso é tudo menos uma questão verbal, que só diria respeito à denominação ou à etiquetagem das teorias atualmente em vigor. As várias fenomenologias podem muito bem, em sua maioria, ser encontradas em torno da noção de dado; o fato é que a questão para essas teorias não é, de modo algum, a de um dado que seria “em si”, em oposição ao pensamento que manifesta. O dado é basicamente a experiência dada, as coisas como aparecem para um sujeito, não o que é como tal e para ninguém. O mesmo vale para o contexto, o uso, a prática ou a forma de vida, todas noções diretamente relacionadas ao que fazem e compartilham os sujeitos que nós somos. A esse respeito, tanto a fenomenologia como a filosofia da linguagem pós-wittgensteiniana partilham um mesmo “correlacionismo” que as situa no exato oposto do realismo metafísico e as expõe, como sabemos, a uma crítica virulenta por parte deste.
Na realidade, o que aproxima a fenomenologia atual do dado e a filosofia da linguagem ordinária é menos o próprio realismo, no sentido que Isabelle Thomas-Fogiel entende por essa palavra, e muito mais precisamente um “empirismo radical”. E ela entende por isso uma propensão a jogar a experiência ou o contexto contra o acesso ou o método; o quietismo, até mesmo um certo anti-intelectualismo, contra o universal e a razão. Nesse ponto, as aproximações que ela estabelece entre as tradições continental e analítica são frequentemente esclarecedoras e bem-vindas. Afinal, estamos diante de duas correntes de pensamento que têm em comum o fato de quererem superar, cada uma por sua parte, certo intelectualismo dos pais fundadores (o idealismo transcendental husserliano, de um lado, e o empirismo lógico, de outro). No entanto, não há nada nesse movimento de desintelectualização que seja diretamente atribuível ao realismo.
Sugerimos, por fim, que se trata exatamente do contrário. No fundo, o realismo tem tanto ou mais a ver com o objetivo racional do verdadeiro do que com um voto de imanência radical. Visar o verdadeiro como aquilo que pertence a todos, transgredir o meu ponto de vista no sentido de um compartilhamento racional da experiência, como nos convida Isabelle Thomas-Fogiel a fazer por meio dos seus conceitos de “pluralização perspectiva” e “infinitização do finito”, essa atitude racional entre todos baseia-se implicitamente na ideia de uma realidade transcendente porque profunda, numerosa e que será sempre mais do que aquilo que nós mesmos atribuímos a ela. Visar a verdade como universalidade, buscar o mais amplo acordo de consciências possível, esse Telos racional é inseparável da Archè de uma realidade maior do que todos os nossos pontos de vista sobre ela[1]. Não podemos deixar de concordar com esse perspectivismo, nunca deixando de enfatizar a sua importância na obra de Merleau-Ponty, e até mesmo para qualquer antropologia filosófica futura. Mas com a condição de percebê-lo como inseparável, em vez de antagônico, da possibilidade do realismo. A multiplicidade de perspectivas é, sem dúvida, como a razão, o nosso bem mais precioso; mas não podemos esquecer que se conversamos e trocamos pontos de vistas uns com os outros, é essencialmente para comentar e “reportar”, como se diz, a inesgotável realidade.
Nota
[1] Cf. Renaud Barbaras, Le Tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau-Ponty, Paris, J. Vrin, 1998, p. 195: “A infinidade do telos expressivo implica o refluxo do mundo para a profundidade infinita de uma arché. A historicidade essencial da verdade tem como correlato o mundo como base e fonte dessa historicidade (….)”.
Referência
Bimbenet, Étienne. L’inépuisable réalité. La Vie des idées, 3 décembre 2015. ISSN : 2105-3030. URL : http://www.laviedesidees.fr/L-inepuisable-realite.html
0 comentário em “A inesgotável realidade, por Étienne Bimbenet”