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Introdução: Eurocentrismo, androcentrismo e teoria sociológica, por Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha

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Da esquerda para a direita: Pandita Ramabai Saraswati (1858-1922); Harriet Martineau (1802-1876); Florence Nightingale (1820-1910); José Rizal (1861-1896)

por Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha
Tradução: Bárbara Vítor (PPGSP/UVV)
Revisão: Samantha Sales

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 ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological Theory Beyond the Cannon. Londres: Palgrave Macmillan, 2017.

A necessidade de outro texto sobre pensamento e teoria social deve ser justificada em razão de trabalhos existentes que foram publicados e utilizados em cursos de teoria sociológica ao redor do mundo. Embora muitos desses textos sejam bem escritos e úteis para estudantes e outros que desejem iniciação no campo da teoria sociológica, eles geralmente sofrem de dois importantes vieses que continuam a definir não apenas a teoria, mas todo o campo da sociologia. Esses são os vieses do eurocentrismo e do androcentrismo. Referimo-nos aqui especificamente à negligência das fontes não ocidentais e das vozes femininas no período formativo de desenvolvimento da teoria sociológica. O discurso dominante da teoria sociológica nos levaria a acreditar que apenas os homens brancos da Europa Ocidental e, mais tarde, da América do Norte, no século XIX e início do século XX, pensavam de maneira criativa e sistemática sobre as origens e a natureza da modernidade emergente do seu tempo.

Deve ser salientado, entretanto, que não afirmamos que o reconhecimento desses vieses requer que a teoria sociológica ocidental seja eliminada dos currículos de sociologia nas universidades não ocidentais. Em vez disso, defendemos, a partir da experiência, uma nova abordagem para ensinar teoria sociológica clássica que sintonize os estudantes de formas mais significativas e críticas com os trabalhos de Marx, Weber, Durkheim e outros representantes do cânone. Ironicamente, tal abordagem constitui uma nova forma de legitimar os clássicos, revelando suas qualidades atemporais, apesar das suas várias limitações conceituais, metodológicas e ideológicas.

Este livro procura, de maneira autoconsciente, oferecer um recurso de ensino atípico para estudantes da teoria sociológica clássica. Além de destacar os vieses do eurocentrismo e do androcentrismo e oferecer-lhes correções muito necessárias (destacando uma lista de pensadoras e pensadores sociais não ocidentais negligenciados), este livro também fornece uma conceituação alternativa do “primeiro capítulo” introdutório, histórico dos livros didáticos. Esses livros tipicamente narram as origens e a história dos fundamentos da disciplina e destacam as várias forças sociais, políticas e intelectuais que levaram ao surgimento do pensamento e da teoria sociológica. Mais uma vez, tipicamente, os estudantes são direcionados para o Iluminismo, para as revoluções Industrial e Francesa, como pano de fundo contra o qual emergiu um corpo de pensamento social. Assim, a ascensão do pensamento e da teoria sociológica é explicada como o efeito cumulativo dessas várias forças sociais, econômicas e políticas. Eventos e processos históricos específicos que são importantes na experiência da modernidade europeia são destacados como críticos para a conformação da teoria sociológica. O capítulo introdutório que escreveríamos certamente atenderia a essas mesmas forças, mas também perguntaria como elas foram percebidas e experimentadas fora de um contexto europeu. Além disso, dedicaria espaço a uma discussão sobre eventos e processos históricos ausentes em textos teóricos predominantes, notadamente a experiência de colonização e descolonização. Argumentamos, por exemplo, que uma discussão compreensiva do capitalismo industrial na Europa é incompleta sem a devida atenção ao fenômeno do capitalismo colonial. O texto proposto preencheria lacunas como essas e olharia para as formas como a Revolução Industrial na Europa foi global e inevitável e inextricavelmente enredada com a colonização da não Europa. Uma dimensão relacionada seria detalhar o meio intelectual mais amplo em contextos não europeus nos séculos XVIII e XIX, períodos reconhecidos como formativos para a ascensão do pensamento sociológico.

Outra característica crítica deste livro diz respeito ao tratamento específico dos “pais fundadores” da teoria sociológica. Não estamos argumentando que Marx, Weber e Durkheim não deveriam ser incluídos no ensino do pensamento sociológico clássico e da teorização. Em vez disso, sugerimos que há uma necessidade de ler suas obras de forma muito mais crítica, destacando aspectos dos seus escritos que até agora foram eclipsados. Assim, ao ler Marx, destacaríamos suas visões sobre o modo de produção asiático, juntamente com sua análise e crítica do capitalismo industrial, assim como o eurocentrismo dos escritos de Weber na sociologia comparativa da religião seria incluído com seus argumentos n’A ética protestante.

Repensando a teoria social: criticando o eurocentrismo

Sem dúvida, todos os estudantes de sociologia encontraram em algum momento Marx, Weber e Durkheim como os “pais fundadores” de sua disciplina. Um componente essencial da formação sociológica na maioria das universidades é o ensino de teoria sociológica. Esta é vista como o fundamento para a formação de um sociólogo. O que constitui a teoria sociológica é geralmente definido como os escritos particulares de um conjunto de pensadores europeus, nomes com os quais a maioria dos cientistas sociais estão familiarizados. Partindo de um grupo bastante grande, algumas figuras centrais emergiram e são consistentemente vistas como precursoras da sociologia. Há ainda uma aceitação “universal” de que qualquer pessoa, em qualquer lugar, que queira estudar sociologia deve “conhecer” os escritos de Marx, Weber e Durkheim. Cursos de teoria sociológica e pensamento social em todo o mundo tendem a restringir-se a discussões e exposições de suas obras e de alguns outros pensadores ocidentais. Além disso, no discurso predominante, as ciências sociais são definidas e aceitas como sendo de origem “ocidental”. Isto é institucionalizado como saber comum não apenas nos círculos acadêmicos ocidentais, mas também nos não ocidentais. Isso não significa que não há estudiosos que problematizem a definição tomada como dada das ciências sociais como disciplinas “ocidentais”.[i]

É bastante surpreendente que os cursos de teoria sociológica clássica tenham sido ministrados em vários países asiáticos sem o devido reconhecimento do contexto histórico e das práticas culturais dos estudantes que se inscreveram nesses cursos. O que é frequentemente discutido é o contexto da ascensão de teorias sociológicas na Europa, lidando com questões que podem ter pouca relevância histórica ou significado cultural para os estudantes. Diz-se que a teoria sociológica surgiu como resultado de comunidades de pensadores que refletiam sobre várias forças e problemas sociais, tais como revoluções, a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, a urbanização e o crescimento da ciência (Ritzer 1983, pp. 6-8). Uma olhada nas linhas gerais dos cursos de graduação em teoria sociológica de várias universidades na Ásia e na África mostraria que a teoria é ensinada da mesma forma em universidades britânicas ou norte-americanas. Em geral, discernimos dois problemas fundamentais com tais programas.

Um deles é que os fundadores ou precursores não ocidentais do pensamento social e da teoria social são geralmente deixados de fora das linhas gerais dos cursos. A outra é que a teoria sociológica clássica não é contextualizada de uma maneira que estabelece um ponto de referência relevante para os estudantes. Embora seja verdade que o Iluminismo europeu, a transição do feudalismo para o capitalismo e a democratização na Europa, e assim por diante, formam um contexto relevante no qual a emergência da teoria sociológica pode ser compreendida, o contexto da expansão colonial europeia e do eurocentrismo é igualmente relevante tanto para o euramericano como para o asiático ou o africano. Trazer o colonialismo é um exemplo de como a teoria sociológica clássica pode ser mais contextualizada de acordo com as experiências dos estudantes.

O que vemos como um contexto crucial e adicional para a ascensão da teoria sociológica, ou seja, o fato histórico da dominação política e cultural europeia a partir do século XV, raramente tem espaço, quanto mais um peso igual no ensino convencional da teoria clássica. Além disso, tal contexto sugere tópicos e leituras dos clássicos que não são normalmente considerados em um curso de teoria sociológica clássica. Como é bem sabido, essa dominação resultou, entre outras coisas, na implantação das ciências sociais europeias em sociedades não europeias, quer essas sociedades tenham sido colonizadas pelos europeus ou não (Dube 1984; Karim 1984; Kyi 1984; Rana 1984). Ademais, e mais importante, foi no período da dominação colonial europeia que os teóricos clássicos europeus escreveram não apenas sobre as suas próprias sociedades, mas também sobre o “Oriente”. Frequentemente, suas análises e reflexões sobre as sociedades não ocidentais eram tanto declarações sobre o “Ocidente” como sobre o “Oriente”. Por exemplo, o discurso de Marx sobre a Índia serviu para confirmar a singularidade da Europa no que diz respeito à sua propensão para o desenvolvimento capitalista.

Este livro formula um jeito alternativo de ensinar teoria sociológica, lidando com preconceitos que devem ser corrigidos em qualquer contexto. É importante ressaltar que essa conceituação alternativa não foi concebida para substituir Marx, Weber e Durkheim. Usando esses teóricos como ponto de partida, nosso objetivo é oferecer uma maneira de ensinar a sociologia que incorpore nossas preocupações teóricas com o eurocentrismo.

Tendo em mente as origens “ocidentais” dos escritos que são vistos como o corpus da teoria sociológica, este livro começa com o tema do eurocentrismo, por considerar que este constitui um ponto crucial de orientação. Uma palavra de cautela sobre a nossa utilização do termo “eurocentrismo” é necessária. Tal como entendemos o termo, ele significa muito mais do que seu sentido literal e de senso comum de “centralidade europeia”. Consideramos que o eurocentrismo conota uma posição particular, uma perspectiva, uma forma de ver e de não ver que está enraizada em uma série de alegações e suposições problemáticas. Nós também não queríamos nos essencializar ao atribuir aos três teóricos o mesmo uso generalizado da etiqueta “eurocentrismo”. Na verdade, conscientemente nos esforçamos para estabelecer as diferentes e específicas formas em que os aspectos das teorias em consideração poderiam ou não ser eurocêntricas. Estamos ainda cientes de que o reconhecimento do eurocentrismo nos escritos de Marx, Weber e Durkheim não é uma surpresa ou uma descoberta recente. No entanto, apesar da atualidade desse tema nas ciências sociais, a crítica do eurocentrismo não reformulou ou reestruturou significativamente as formas pelas quais teorizamos a emergência do cânone sociológico clássico. Assim, apesar de “sabermos” que alguns aspectos dos escritos de Marx, Weber e Durkheim são “eurocêntricos”, como era de se esperar, a questão de como isso impacta nossa leitura contemporânea de suas obras permanece em grande parte não abordada e não teorizada.

Este livro adota a visão de que uma abordagem criativa à teoria sociológica seria uma que incorporasse os três objetivos interrelacionados seguintes: a) gerar  consciência do “eurocentrismo” como tema e contexto que informa a teoria sociológica clássica; (b) separar o eurocêntrico dos aspectos universalistas da teoria clássica; e (c) introduzir pensadores e pensadoras sociais não ocidentais com o objetivo de universalizar o cânone.  A necessidade de reorientar o ensino da teoria sociológica é considerada ainda mais importante porque notamos que o eurocentrismo não é apenas encontrado nas escolas europeias, mas tem afetado o desenvolvimento das ciências sociais nas sociedades não ocidentais de várias de maneiras:

(I) A falta de conhecimento de nossas próprias histórias, como evidenciado em livros didáticos. Nos livros didáticos utilizados na Ásia e na África, tende a haver menos informação sobre essas partes do mundo, uma vez que são invariavelmente escritos nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Por exemplo, sabemos mais sobre a vida cotidiana da família pré-moderna europeia do que sobre a nossa. Isso porque a sociologia surgiu no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo e, portanto, o contexto histórico europeu é o que a define. O desenvolvimento normal é definido como uma passagem do feudalismo para o capitalismo, portanto, essa é a coisa normal a estudar. O objeto de estudo é definido por esse viés de desenvolvimento normal. Em nossas próprias sociedades, enquanto a prioridade também é estudar as sociedades modernas capitalistas, o problema é que começamos com as sociedades pré-capitalistas europeias e chamamos atenção para as nossas próprias sociedades pré-capitalistas, a fim de mostrar que elas constituíram obstáculos à modernização.

(II) Por meio do eurocentrismo, são construídas imagens da nossa sociedade que passamos a considerar reais até que a academia eurocêntrica produza imagens alternativas que possam ser igualmente eurocêntricas.

(III) A falta de teorização original. Por causa do dilúvio de trabalhos sobre teoria, metodologia e pesquisa empírica surgindo principalmente na América do Norte e na Europa, tem havido muito consumo de teorias, técnicas e agendas de investigação importadas.

Na medida em que este livro está preocupado com o cânone ocidental, seu objetivo é questionar como devemos ler teóricos como Marx, Weber ou Durkheim, dado o eurocentrismo das ciências sociais “ocidentais”. Assim, o repensar da teoria sociológica implica enfatizar os aspectos de suas obras que demonstram seu eurocentrismo. Exemplos seriam a teoria de Marx sobre o modo de produção asiático ou os escritos de Weber sobre o capitalismo no contexto das religiões não ocidentais.

Introduzindo um pensamento social não ocidental

Um curso de teoria social que corrija o viés eurocêntrico não deve apenas lidar criticamente com os pensadores ocidentais que compõem o cânone. Ele deve também dar ênfase aos pensadores não ocidentais. Um olhar sobre o currículo sociológico de muitas universidades certamente exporia o eurocentrismo que caracteriza a forma como a história do pensamento social e a teoria sociológica são ensinados. Tais cursos geralmente discutem teóricos como Montesquieu, Vico, Comte, Spencer, Marx, Weber, Durkheim, Simmel, Toennies, Sombart, Mannheim, Pareto, Sumner, Ward, Small e outros. Os traços do eurocentrismo que estão na base de tais cursos incluem a dicotomia sujeito/objeto, o domínio das categorias e dos conceitos europeus e a representação dos europeus como os únicos originadores de ideias. Muito do pensamento sobre teoria sociológica ou história do pensamento e da teoria social é informado a partir da dicotomia sujeito/objeto. Ela pode ser vista como um princípio dominante, ainda que desarticulado, que determina quais autores são tratados. Na maioria dos livros de teoria sociológica ou dos trabalhos sobre a história do pensamento social, os europeus são os sujeitos conhecedores, ou seja, aqueles que pensam e escrevem. Invariavelmente, os não europeus aparecem nesses escritos, mas geralmente como o assunto, como objetos de estudo dos sujeitos sapientes europeus. É extremamente raro encontrar um pensador não ocidental caracterizado como uma fonte de teorias e conceitos sociológicos. Na verdade, a impressão que é dada é que não havia pensadores na Ásia e na África contemporâneos de europeus como Marx, Weber e Durkheim que pensassem sistematicamente sobre o processo de desenvolvimento e modernização que ocorreu em suas sociedades.

O fato de não mencionarem os estudiosos não europeus é particularmente escandaloso quando se nota que houve casos em que tais pensadores tiveram um impacto no desenvolvimento da sociologia. Por exemplo, Ibn Khaldun às vezes é referido nas histórias da sociologia, mas é raramente discutido como uma fonte de teorias e ideias sociológicas relevantes, embora se diga que ele tenha influenciado alguns pensadores europeus do século XIX e do início do século XX. Um dos principais objetivos deste livro, portanto, é introduzir ao cânone sociológico o que consideramos serem os fundadores não ocidentais do pensamento e da teoria social, como José Rizal (Filipinas, 1861-1896), Benoy Kumar Sarkar (Índia, 1887-1949) e outros.

Repensando a teoria sociológica: Criticando o androcentrismo

A história registrada da sociologia e da teoria sociológica está impregnada de androcentrismo, de tal forma que ela se lembra, lista, grava e reproduz contribuições de estudiosos homens.[ii] Harriet Martineau, Florence Nightingale Harriet Taylor Mill e Pandita Ramabai são apenas alguns nomes ausentes de uma longa lista de pensadoras sociais pioneiras. Elas estavam presentes antes do nascimento da disciplina formalizada da sociologia e contribuíram para a emergência de uma nova ciência da sociedade. Sabemos que essa lista é longa, pois agora têm sido fornecidas provas sólidas de numerosas mulheres pensadoras e teóricas (ocidentais e não ocidentais) que têm sido rotineiramente deixadas de fora, que permanecem não mencionadas e marginalizadas nas narrativas padrão da história da sociologia.[iii] Essa não presença e esse não reconhecimento das mulheres nos arquivos da disciplina foram recebidos com imagens vívidas, memoráveis e contundentes dos críticos. A. March fala disso como “invisibilidade feminina”, D. E. Smith evoca a noção de “eclipse” para assinalar a marginalização das mulheres e das perspectivas femininas, enquanto L. McDonald vê essas mulheres pensadoras sociais e metodologistas como “pessoas desaparecidas” na historiografia das ciências sociais.

Coletivamente, essa tradição destacou o que denotamos como a “primeira onda de esquecimento”, que é a omissão das mulheres pensadoras sociais, teóricas e metodologistas nos relatos característicos da sociologia e de suas origens, particularmente como refletido nas investigações dos fundadores e pioneiros da disciplina realizadas em livros introdutórios e avançados de sociologia, enciclopédias, manuais e antologias. Isso abrange aproximadamente os anos 1970 e o início dos anos 1980, sendo evidente nos comentários padrão nos livros de sociologia e nos programas dos cursos relativos aos primórdios da sociologia, nos cursos introdutórios, bem como nos cursos mais avançados de pensamento social e teoria social. Tanto as razões para tal negligência como suas consequências são numerosas e bem documentadas até agora. Os fundadores e pioneiros da sociologia são apresentados aos estudantes como “grandes homens de ideias”, “pais fundadores” e “os grandes mestres”, produzindo relatos masculinos e sexistas da história da sociologia e do seu estabelecimento.  O registro exclusivo de contribuições masculinas transmite uma imagem limitada, seletiva e distorcida e não reconhece a variedade de atores (incluindo os homens e as mulheres pensadoras e teóricas) e os papéis que desempenharam na formulação e fundação da sociologia.

Ideology and the Development of Sociological Theory  (1997, 6ª ed.), de Irving Zeitlin, traz um capítulo sobre Harriet Martineau, Mary Wollstonecraft e Harriet Taylor Mill. Sociology for Beginners (1996), de Osborne e Van Loon, menciona Martineau assim: “Antecipando a crítica feminista feita muito mais tarde ao viés e à abordagem masculina da sociologia, Harriet Martineau (1802-1876) publicou um trabalho que teve pouco impacto na época, mas que se tornou reconhecido como uma interessante análise comparativa da estrutura social”. Referindo-se ao livro How to Observe Morals and Manners, acrescenta: “Foi uma primeira instância do que poderíamos agora chamar de estudos culturais, um ramo importante da sociologia” (Ibid., p. 29). Em Sociological Theory (2003)[iv], de Ritzer e Goodman, um livro autorizado e popular entre estudantes de sociologia, Harriet Martineau é mencionada três vezes no livro inteiro, duas em relação ao “trabalho de uma série de mulheres na área ou associadas a ela”[v] e uma em relação ao trabalho de Comte, “parte do qual tinha sido traduzido para o inglês nos anos 1850 por Harriet Martineau”.[vi] A quarta edição de Classical Sociological Theory (2004)[vii] de Ritzer e Goodman se sai melhor ao incluir um capítulo inteiro sobre “As primeiras sociólogas e a teoria clássica: 1830-1930”, contribuído por P. M. Lengermann e J. Niebrugge Brantley Hill.[viii] Ritzer e Goodman reconhecem e listam várias mulheres que tiveram um “impacto no desenvolvimento da sociologia”[ix] e admitem ainda o papel da discriminação de gênero, da política de gênero e das formas patriarcais de dominação na subsequente marginalização das contribuições das mulheres para o campo dos estudos sociológicos, assim, “suas criações foram ao longo do tempo empurradas para a periferia da profissão, anexadas ou descontadas ou escritas fora do registro público da sociologia pelos homens que estavam organizando a sociologia como uma base de poder profissional.”[x]

Enquanto mulheres como Harriet Martineau e Harriet Taylor Mill são um tanto visíveis nos livros de sociologia, as contribuições dos pensadores homens e mulheres continuam a ser aqui apresentadas em fluxos separados e paralelos. Por exemplo, em textos de Zeitlin e Ritzer & Goodman, capítulos separados são dedicados a Martineau, Comte e Durkheim, com pouco esforço de demonstrar a interação intelectual, a influência e o contato entre eles. Seções que discutem A filosofia positiva de Comte fazem pouca ou nenhuma referência ao papel desempenhado por Martineau na tradução, introduzindo assim as ideias de Comte a sociólogos leitores da língua inglesa.

A contribuição pioneira de Durkheim é notada com a descrição de seu livro As regras do método sociológico como o “primeiro” clássico metodológico da sociologia, sem reconhecer que o texto de Martineau sobre metodologia é anterior ao livro de Durkheim em cerca de seis décadas. Um raro exemplo recente é, no entanto, encontrado no Reader’s Guide to the Social Sciences,[xi] organizado por Jonathan Michie, que articula o encontro intelectual de Comte e Martineau e seu significado histórico para os sociólogos:

Os escritos de Comte teriam chegado muito mais tarde a um público de língua inglesa se não fossem os trabalhos de Harriet Martineau. Ela foi a primeira pessoa a traduzir e condensar A filosofia positiva em inglês. Embora tenha havido esforços recentes para restabelecer seu papel como primeira “comteana” do século XIX, as feministas têm afirmado que sua contribuição para o desenvolvimento da sociologia tem sido subestimada, especialmente no mundo de língua inglesa.[xii]

Um problema relacionado é que, quando mencionadas, elas não são tipicamente invocadas em uma capacidade independente, mas comparativamente e com referência[xiii] a outros pensadores. É o caso das comparações de Martineau com Tocqueville e Émile Durkheim.[xiv] Ensinar Martineau, Nightingale e Ramabai ao lado de reconhecidos pensadores sociológicos clássicos será, sem dúvida, produtivo ao demonstrar os alinhamentos, os paralelos, as divergências e os cruzamentos entre suas respectivas teorias. Embora tais contrastes sejam esclarecedores, concordamos com James Terry que “mulheres como Martineau devem ser abordadas de forma independente”.[xv] Defendemos um registro integrado desses vários esforços, que culminaram coletivamente na disciplina formalizada da sociologia.

 Introduzindo mulheres pensadoras

Assim como um curso sobre teoria social que corrija o viés eurocêntrico deve não apenas lidar criticamente com os pensadores ocidentais que compõem o cânone, mas também discutir os pensadores não-ocidentais, do mesmo modo a crítica do androcentrismo deve introduzir as fundadoras da sociologia para estudantes de sociologia.  Em 1994, Lynn McDonald nota com apreço a redescoberta e a restauração das contribuições das mulheres nas ciências sociais, mas coloca esta pergunta perturbadora: “Bem-vinda como é a recuperação desse material perdido ou ignorado, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se tudo voltará a desaparecer”.[xvi] Embora a negligência das mulheres pensadoras pioneiras na história da fundação da sociologia tenha sido uma questão importante para destacar e criticar, é também oportuno mudar os contornos do discurso para além desse fato.

Sugerimos várias estratégias concretas para alcançar isso na prática. A esse respeito, um objetivo primário deste livro é introduzir o pensamento social e o método de investigação de três mulheres pensadoras – Harriet Martineau (1802-1876), Florence Nightingale (1820-1910) e Pandita Ramabai Saraswati (1858-1922). É digno de nota que enquanto essas mulheres permaneceram fora e/ou à margem da academia formal, elas articulavam e praticavam suas visões sobre a possibilidade da “sociologia”, das “ciências morais” e das “ciências sociais”. Uma segunda estratégia crucial é engajar-se substantiva e teoricamente com escritos primários de mulheres pensadoras (não ocidentais e ocidentais) como pesquisadoras e educadoras. Em terceiro lugar, é importante demonstrar e abstrair os insights e as evidências sociológicas da teorização em seus corpora de escritos.

O fracasso em notar as contribuições das mulheres pensadoras é possível porque não só estão ausentes da historiografia da disciplina, como também não aparecem em muitos programas e currículos de cursos de graduação ou pós-graduação em sociologia. Há uma lacuna crucial entre as pesquisas sobre as mulheres pensadoras e o ensino das figuras pioneiras da sociologia no currículo de graduação predominante. 

Até agora há uma riqueza de pesquisas publicadas e em curso sobre as mulheres pensadoras de diferentes contextos socioculturais. No entanto, esse material não entrou no discurso e na prática sociológica predominante em contextos institucionais. Daí a localização contínua de mulheres pensadoras na periferia, se não fora da disciplina. Isso não é apenas um problema de marginalizar as mulheres pensadoras, mas também o vasto conhecimento sobre elas que está atualmente disponível.

 Pensamento social e teoria social

O pensamento social difere da teoria social no sentido de que é menos formal e menos sistematicamente expresso. Ele também contém uma grande quantidade de reflexão sobre experiências, opiniões, avaliações, e assim por diante. Em outras palavras, inclui elementos que não estão expressos em termos de definições formais, conceitos e teorias. Isso não torna o pensamento social menos importante do que a teoria social. Na verdade, o pensamento social pode ser a base de uma construção mais formal e sistemática, ou seja, a teoria social. A distinção entre pensamento social e teoria social é importante tendo em vista a seleção dos pensadores apresentados neste volume. Pensadores como Ibn Khaldun, Marx, Weber e Durkheim são claramente teóricos. O mesmo não pode ser dito sobre Ramabai, Nightingale e Rizal. Embora essas pensadoras e esses pensadores tenham escrito sobre questões sociais de grande alcance, foram muito menos sistemáticos em sua abordagem do que os teóricos. No entanto, são considerados importantes por terem feito contribuições originais para a nossa compreensão da sociedade moderna. Além disso, pode-se também dizer que seus trabalhos fornecem a base de uma teorização mais sistemática para aqueles que têm a inclinação de se engajar na formação de conceitos e na construção de teorias.

Um ponto importante a notar sobre as ideias dos pensadores e das pensadoras discutidas neste volume é o tema comum da liberdade que subjaz ao seu trabalho, independentemente de os seus escritos serem uma teoria social exaustiva ou um pensamento social menos sistemático. A tradição ocidental da teoria sociológica clássica abordou a questão da condição humana sob as condições da modernidade. As obras de muitos teóricos sociais, juntamente com psicólogos, filósofos, poetas e romancistas e outros artistas foram informadas pelo reconhecimento do fracasso do Iluminismo em cumprir a sua promessa de liberdade por meio da aplicação da razão e da investigação científica. Grande parte da teoria social clássica lidou com o lado negativo da civilização moderna e enfatizou a escravidão dos seres humanos ou a perda da liberdade.

Isso foi visto por cada teórico como tendo tomado diferentes formas. Para Marx era a alienação, a falta de liberdade para desenvolver o potencial humano. Para Weber, era a escravidão na jaula de ferro da racionalidade, enquanto para Durkheim era a anomia ou a escravidão pelo desejo. No caso de Rizal, o tema da escravidão estava relacionado com o colonialismo, pois era nesse contexto que ele escrevia. Martineau valorizou a liberdade de pensar e agir autonomamente, o direito ao trabalho, a emancipação e o empoderamento político e a capacidade de desafiar a sabedoria habitual. Ramabai era uma pensadora e reformadora social que defendia a liberdade de pensamento e ação para que a igualdade e o progresso pudessem ser alcançados para as mulheres hindus. As suas ideias revelam uma concepção de “liberdade” como o desejo de alcançar a autossuficiência, a autodeterminação, a independência e a autonomia por meio do conhecimento, da indústria e da dedicação e, acima de tudo, do exercício da razão. Nightingale queria que as mulheres exercessem a liberdade de pensamento e fossem atores autodeterminados, tivessem o direito de ser educadas e expandir seus horizontes para além dos estreitos limites da domesticidade e dos papéis sociais aceitáveis de esposas, filhas e mães. A teorização política e sociológica de Sarkar foi incorporada em uma concepção de individualismo acidentado, agência humana e ativismo. Como Marx, Sarkar também concebeu os indivíduos como agentes que fazem a história. Nesse contexto, o posicionamento da teoria da natureza humana de Marx ao lado da visão de Sarkar sobre os indivíduos como seres criativos, inventivos, morais e racionais que desejavam ser autônomos e autodeterminantes é esclarecedor. Ibn Khaldun, por outro lado, viveu no período pré-moderno, séculos antes de Martineau, Marx e os outros. No entanto, podemos também identificar em seu trabalho o tema da escravidão, da ausência de liberdade ou escravidão também. Para Ibn Khaldun, isto está relacionado ao papel do luxo na formação do Estado. Que é possível identificar um tema comum subjacente às obras de todos os teóricos, sejam homens ou mulheres, ocidentais ou asiáticos, modernos ou pré-modernos, é um testemunho da universalidade da teoria social, qualquer que seja a sua fonte civilizacional.

Olhando para a teoria sociológica através da lente do eurocentrismo e do androcentrismo nos permite fazer pontos mais amplos. Ao chamar atenção para pensadores negligenciados – homens e mulheres, ocidentais e não ocidentais – nós argumentamos que a tapeçaria de contribuições para o pensamento social e teorização é multifacetada; uma história pulsante, sinérgica e complexa da disciplina surgiria no reconhecimento de diversas contribuições por parte de pensadores e pensadoras de diferentes contextos culturais. O objetivo é expandir o campo de jogo, em vez de restringi-lo. Assim, estamos com Hill quando ele diz: “Nossa disciplina se fortalece com a inclusão e o diálogo, não com a exclusão e o silêncio”.[xvii] Além disso, temos reservas quanto à criação de mais uma lista de pensadores e pensadoras “de leitura obrigatória”. O objetivo é mais abrir a porta para uma séria consideração de um grupo maior de colaboradores potenciais para a teorização sociológica, além dos nomes existentes. Não há dúvida de que há muitos outros, homens e mulheres, situados em diferentes contextos sociais – europeus e não europeus – ao longo do tempo, cujas contribuições e visões para a teorização sociológica passaram por muito tempo despercebidas na narração de uma história da teoria sociológica. É hora dessa falta de atenção ser problematizada e tratada por seus praticantes.

Referências

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Notas

[i] Ver Alatas (2006) e Sinha (1997).

[ii] Deean (1991), Hoecker-Drysdale (1992), Hill (1989), March (1982), McDonald (1993).

[iii] Deegan (1991), McDonald (1993).

[iv] Ritzer e Goodman (2003).

[v] Ritzer e Goodman (2003, p. 9).

[vi] Ritzer and Goodman (2004, p. 33).

[vii] George Ritzer e Douglas J. Goodman, Classical Sociological Theory (New York: McGraw-Hill,2004).

[viii] Hill (1998).

[ix] George Ritzer e Douglas J. Goodman, Sociological Theory (2003, p. 9).

[x] Ritzer e Goodman, Sociological Theory, (2003, p. 9).

[xi] Jonathan Michie, The Reader’s Guide to the Social Sciences, p. 1 (London: New York: Routledge, 2001).

[xii] Michie, The Reader’s Guide, p. 76.

[xiii] This point is made by Hill (2002), Kandal. Terry. The woman question in classical sociological theory. Miami: Florida University Press. 1988., Nisbet (1988).

[xiv] Lengermann e Niebrugge-Brantley (2002) and Reinharz (1989).

[xv] Terry (1983).

[xvi] McDonald (1994, p. 239).

[xvii] Hill (2002, p. 191).

 

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