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Irreduções (Parte 2), por Bruno Latour

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“Blue Green Painting”
Fonte: https://paintingvalley.com/blue-green-painting

Por Bruno Latour
Tradução: Lucas Faial Soneghet

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O texto a seguir continua a série de traduções começada nesse post. Continuamos de onde paramos na parte 1 e terminamos ao final do primeiro capítulo.

1.2.2 Enteléquias não concordam sobre nada e podem concordar sobre tudo, porque nada é, em si mesmo, nem comensurável nem incomensurável. Qualquer que seja o acordo, sempre há algo a respeito do que se possa alimentar discordância. Qualquer que seja a distância, sempre há algo sobre o que entendimento pode ser construído. Colocado de outra forma, tudo é negociável.

  • “Negociação” não é uma palavra ruim desde que entenda-se que tudo é negociável, não só a forma da mesa ou os nomes dos delegados. Também é necessário decidir: o objeto da negociação, quando é possível dizer que ela começou ou terminou, qual idioma será falado e como determinaremos se fomos entendidos ou não. Isso também é questão de disputa, disputa essa que continua até que todas as enteléquias sejam definidas e tenham definido as outras. É preciso um Campo do Pano de Ouro[1] para demonstrar essas negociações.

1.2.3 Quantos actantes existem? Não é possível determinar isso até que eles sejam medidos um em relação ao outro.

  • Não disse ainda quantos somos: 50 milhões de franceses, um ecossistema único, 20 bilhões de neurônios, três ou quatro tipos de personalidade. Não podemos contar os números de forças, decidir que há uma substância única, duas classes sociais, três graças, quatro elementos, sete pecados capitais ou doze apóstolos. Nós não podemos chegar a um total. Nessa aritmética peculiar, não se subtrai nunca. Nós adicionamos tantos subtotais quanto houverem contadores.

1.2.3.1 Não há todos nem partes, nem há harmonia, composição, integração ou sistema (1.1.14). O jeito que algo se mantém junto é determinado pelo campo de batalha, porque ninguém concorda sobre quem deve obedecer e quem comanda, quem deve ser a parte e quem deve ser o todo.

  • Não há harmonia preestabelecida, apesar de Leibniz. A harmonia é “pós-estabelecida” localmente através de ajustes.

1.2.4 Nós não sabemos onde um actante pode ser encontrado. A definição de sua localização é uma luta primordial, durante a qual muitos se perdem. Só podemos dizer que alguns localizam e outros são localizados.

1.2.4.1 Embora lugares sejam distantes, irredutíveis e insustentáveis, eles são, mesmo assim, constantemente ajuntados, unidos, adicionados, alinhados e sujeitados a meios e caminhos. Se são fosse por esses meios e caminhos, nenhum lugar levaria a outro lugar.

1.2.5 Forças que se aliam umas às outras durante uma prova serão ditas “duráveis”. Cada enteléquia gera tempo para outras ao se aliar com elas, ou traí-las. O “tempo” surge no final desse jogo, um jogo no qual a maioria perde o que apostou.

  • Esse momento vem antes ou depois? Ele é conquistado, profético, obsoleto, decadente, contemporâneo, provisório ou eterno? Não é possível determinar isso de antemão. É preciso negociar.

1.2.5.1  O tempo é o resultado distante dos atores que procuram, cada um por conta própria, criar um fato consumado que não possa ser revertido (1.1.10). Dessa forma, o tempo passa.

1.2.5.2 O tempo não passa. O tempo é o que está em jogo entre as forças. É claro, uma força pode sobrepujar as outras, mas isso só pode ser local e temporário porque a permanência custa muito e exige muitos aliados.

1.2.5.3 Na França, costuma-se dizer que “há” revoluções, mas essas são atores que pegam sua capacidade de fazer tempo e história de outros atores e, assim, ultrapassam os outros e os tornam ultrapassados.[2] É claro, às vezes os derrotados conseguem sua vingança e afetam a ordem dos tempos novamente.

  • Quem é, então, o mais moderno – o Shah; Khomeini, o muçulmano de outra era; ou Bani-Sadr, o presidente, que buscou refúgio em Paris? Ninguém sabe, e é por isso mesmo que eles lutam tanto para moldar o tempo.

1.2.5.4 A democracia mais livre reina entre instantes. Nenhum instante pode coroar, mutilar, justificar, substituir ou limitar outro. Não há um último momento para condenar todos os outros que vieram anteriormente.

  • Tempos são irredutíveis, e é por isso que a “morte” sempre esteve derrotada. O fim não justifica os meios. Nem a morte condena a vida.

1.2.6 O tempo e o espaço não enquadram as enteléquias. Eles só se tornam enquadramentos descritivos para os actantes que se submeteram, localmente e provisoriamente, a hegemonia de outro.

  • Logo, há um tempo dos tempos e um espaço dos espaços, e assim por diante até que tudo seja negociado Homenagem ao Clio (1914) de Péguy.

1.2.7 Cada enteléquia define: o que está dentro e fora, em quais atores vai acreditar quando decidir o que pertence a ele e o que não pertence, e quais tipos de provas vai usar para decidir se acredita ou não nesses árbitros.

  • Leibniz estava certo ao dizer que as mônadas não tem portas nem janelas, porque elas nunca saem de si mesmas. Entretanto, elas são peneiras, pois negociam eternamente suas fronteiras, quem serão os negociadores e o que eles farão. Como resultado, elas viram quimeras, incapazes de determinar o que é a porta e o que é a janela, o que é o lado direito e o que é o lado esquerdo.

1.2.7.1 Não há referente externo. Referentes sempre são internos às forças que os usam como critérios.

1.2.7.2 O princípio da realidade são os outros.

  • A interpretação do real não pode ser distinguida do real ele mesmo, porque o real são gradientes de resistência (1.1.5). Logo, um actante nunca para de negociar o número, o gradiente e a natureza dessas diferenças; o número, a autoridade e o peso daqueles que negociam; o número, a qualidade e a confiabilidade dos critérios que usarão para julgar a credibilidade dos árbitros.

1.2.8 Cada enteléquia faz um mundo inteiro para si mesma. Ela localiza a si mesma e todas as outras; decide quais forças a compõe; gera seu próprio tempo; designa aqueles que serão seu princípio de realidade. Ela traduz todas as outras forças para si mesma e tenta faze-las aceitar a versão de si mesma que gostaria que eles traduzissem.

  • Nietzsche chamou isso de “avaliação” e Leibniz chamou de “expressão”.

1.2.9 Nós falamos de uma força? É uma força que fala? É um ator que é levado a falar por outro? É uma interpretação ou o objeto ele mesmo? É um texto ou o mundo? Não podemos dizer, porque é sobre isso que lutamos, a construção de todo um mundo.

  • As coisas ditas sobre textos por aqueles que usam hermenêutica, exegese ou semiótica, podem ser ditas sobre fraquezas. Por muito tempo, concordou-se que a relação entre um texto e outro é sempre uma questão de interpretação. Por que não aceitar que isso também vale para relações entre supostos textos e supostos objetos, e mesmo entre supostos objetos e outros supostos objetos?

1.2.10 Nada escapa das provas primordiais. Antes da negociação nós não fazemos ideia dos tipos de provas que teremos – se elas podem ser pensados como conflitos, jogos, amor, história, economia ou vida. Também não sabemos se são primordiais ou secundárias antes de entrarmos na arena. Finalmente, não podemos dizer antes do fim, se elas foram negociadas ou recebidas de nascença, marcadas na própria pele.

1.2.11 Não devemos acreditar de antemão que sabemos se estamos falando de sujeitos ou objetos, homens ou deuses, animais, átomos ou textos. Resta dizer algo, porque isso é precisamente o que está em jogo entre as forças: quem fala e sobre o que?

  • Nós não devemos nos apressar para dividir “natureza” da “cultura”. Mexilhões também acham a natureza hostil, nutritiva e desnaturada, porque peixes, pescadores e as pedras às quais eles se afixam, tem objetivos diferentes dos seus.

1.2.12 Nada é, por si só, conhecível ou incognoscível, dizível ou indizível, perto ou distante. Tudo é interpretado. O que poderia ser mais simples? Interpretação de uma força para outra, e por um tempo mais ou menos longo.

1.2.13 Se qualquer coisa sobre a qual formos escrever deve ser debatida e traduzida, então precisamos, como Descartes diria, de uma moral provisória. Quando falamos de provas de força, devemos evitar usar quaisquer termos que fixem a vantagem para um lado ou outro da relação. Se isso não é possível, deveríamos pelo menos tentar escrever um texto que não toma tempo e espaço, mas os adiciona.

1.3.1 Todas as enteléquias podem medir ou ser a medida de todas as outras enteléquias (1.1.14). Entretanto, certas forças tentam medir as outras constantemente em vez de serem medidas, e traduzir em vez de serem traduzidas. Elas desejam agir em vez de que ajam sobre elas. Desejam ser mais forte do que outras.

  • Diferente do mito belicoso de Nietzsche, eu disse “certas” em vez de “todas”. Muitos actantes são distantes ou indiferentes demais para corresponder aos desafios, muito indisciplinados ou errantes para seguir aqueles que falam em seu nome por muito tempo, e muito felizes e orgulhosos para seguir o comando de outros. Nesse trabalho falo somente daquelas fraquezas que querem aumentar sua força. Os outros irredutíveis necessitam de poetas e não de filósofos.

1.3.2 Dado que os actantes são incomensuráveis e que cada um faz um mundo tão grande e completo quanto qualquer outro, como um vem a se tornar maior que outro? Eles o fazem dizendo que são muitos, associando-se (1.1.9).

1.3.3 Dado que nada é, em si mesmo, equivalente ou não equivalente (1.2.1), duas forças não podem se associar sem mal-entendidos.

  • Acordo, combinado, compromisso, negociação, esquema, combinação, pacto – todos esses termos podem ser usados. Aqueles que os acham depreciativos ou acham que eles se chocam com outras formas mais perfeitas de associação, não conseguem entender que nunca seria possível um termo melhor. Isso é verdade porque não há equivalência (2.2.1) e porque nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a qualquer outra coisa (1.1.1).

1.3.4 Embora todas as enteléquias sejam “igualmente” ativas, elas podem parecer estar em dois estados: dominando ou sendo dominadas, agindo ou sendo “agidas sobre” por outras. Uma enteléquia pode ser chamada de passiva se ela simplesmente não responder.

  • Não estou dizendo que há forças ativas e forças passivas, mas estou dizendo que uma força pode agir como se a outra fosse passiva e obediente (1.1.14). É claro que, para a força passiva, o ponto de vista é totalmente diferente. Há milhares de motivos para fingir obediência, dezenas milhares para desejar ser dominado e centenas de milhares para ficar em silêncio – e aqueles que acreditam ser servidos nunca suspeitam desses motivos.

1.3.5 Já que um actante pode se tornar maior do que outro só por ser um de muitos, e já que essa associação é sempre um mal-entendido, aquele que define a natureza da associação sem ser contradito ganha o controle.

  • Se duas forças dizem estar unidas, é somente uma que fala isso; Se duas forças fazem uma troca que consideram igualitária, uma delas sempre define a coisa trocada, como a igualdade é mensurada e quando a troca ocorre.

1.3.6 Como nada é equivalente, ser forte é tornar equivalente o que antes não era. Assim, muitos agem como um.

  • Discursos e associações não são equivalentes porque aliados e argumentos são alistados precisamente para que uma associação seja mais forte que outra. Se todo o discurso parece ser equivalente, se parecem existir “jogos de linguagem” e nada mais, então alguém não tem sido muito convincente. Esse é o ponto fraco dos relativistas. Eles só falam das forças que são incapazes de se aliaram a outras com o fim de convencer e vencer. Ao repetir “vale tudo”, eles não veem o trabalho que gera inequivalência e assimetria (1.1.11).

1.3.7 Como nada é comensurável ou incomensurável (1.1.4), o mais ativo será capaz de definir os mecanismos de mensuração.

  • atos de diferenciação e indiferenciação, não diferenças e identidades (1.1.16). As palavras “mesmo” e “outro” são consequências de provas de força, derrotas e vitórias. Elas não podem por si mesmas descrever essas ligações.

Interlúdio II: mostrando o alívio que é parar de reduzir as coisas

Às vezes quando o sol brilha no concreto do Instituto Salk, paramos de nos apressar e de esgotar o tempo. Sentamos na soleira da porta e deixamos cada ramo da árvore dos tempos se desdobrar até onde puder. “Nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a qualquer outra coisa”, dizemos para todos aqueles que reduzem, destroem, substituem, deduzem, permutam, explicam, causam, redimem, restauram, envolvem, determinam, trocam e compram. A árvore dos tempos, as árvores dos tempos, a floresta das árvores dos tempos. Nada é alterado, mas a posição de cada força, cada enteléquia, cada ator, muda tão completamente que nós respiramos um ar que nem sabíamos que não tínhamos antes.

Não é o ser enquanto ser que se revela nesses momentos. Esse negócio do ser enquanto ser tornou-se muito incongruente agora que toda enteléquia tem todas as diferenças que precisa para fazer um mundo inteiro para si mesma. A maré mudou. Antes só haviam coisas reduzidas e coisas que reduziram, com um ser residual que chacoalhava em nossas cabeças. Quer dizer então que há fusão, ataraxia ou falta de diferenciação? Não, claro que não! Todas as diferenças estão aí. Nenhuma sumiu. E todas as tentativas de reduzir, produzir, simplificar, hierarquizar, totalizar ou destruí-las também permanecem, assim como todas as diferenças que se adicionam àquelas que gostariam de suprimir.

Nada perdoa, faz as pazes, expia, equilibra, tem sucesso, subordina, conclui, resume ou se submete a si mesmo. E ainda assim deveríamos falar de um estado de graça. Tudo é luz, porque nada tem poder de provocar a queda estonteante de qualquer outra coisa. Sim, liberdade para ir, para fazer, para passar, para deixar ir. A gaivota, longe de seu nome, longe de sua espécie, em seu próprio mundo de ar, mar e peixes favoritos; o peixe, longe de cardumes, da gaivota e de seu bico, inocente na água gélida; a água que reúne tudo e molda a si mesma, misturada pelos ventos, atada pelas correntezas, elevando-se e se quebrando na praia; o oceanógrafo tornado mergulhador que mergulha na garganta submarina de La Jolla; o produtor que produz Tubarão 2 depois de Tubarão e vende o medo do mar profundo e da sombra dos tubarões – todos são inocentes. Inocentes? Não. Nem inocentes nem culpados. Marcado, inscrito, imperdoável. Quando deixa-se crescer a árvore dos tempos, o ato e suas consequências são separados, e cada um se torna o meio e o fim do outro. Logo, é impossível expiar os meios com um fim, uma vida de crime com uma oração, um homem com seus filhos, um produtor com sua conta bancária.  Sem equivalências, sem mercado. Não podemos morrer nem conquistar a morte. Há espaço para aquela que viveu, para o dia de sua morte, para a bala do assassino, para a investigação que não leva a conclusão alguma, para a memória daqueles que falam da amiga morta. Nada resume esses lugares, nada os explica, nada os justifica. Inocentes? Não, já que fomos além da distinção entre inocente e culpado feita pelo levantamento de uma guilhotina. Incompreensível? Não, já que estamos além das operações que estabelecem, dia após dia, o que entendemos e o que não entendemos. O pássaro, longe de seu nome, voa para longe do nome que eu o dou, mas continua a voar em tratados de zoologia e nos poemas de St. John Perse. A gaivota está no seu céu, irredutível ao nosso, mas a linguagem do taxonomista está nos seus livros, ela mesma irredutível a qualquer gaivota já sonhada, viva ou morta.

1.4.1 Certos actantes testam sua força contra outros, declaram-se passivos e fazem alianças que definiram com outros. Ao impor equivalências dirigidas por eles, os actantes se espraiam, passo a passo, de ator passivo a ator passivo.

  • Frequentemente tentamos começar com “trocas”, “igualdades” e a “transferência” de equivalentes. Mas nunca falamos do trabalho preliminar nos quais esses equivalentes são forjados. É como se falássemos de redes de estradas, mas nunca de engenharia civil. Entretanto, há tanta diferença entre equivalente e tornar equivalente quando há entre dirigir um carro e construir uma rodovia.

1.4.2 Quando uma fraqueza alista outras, ela forma uma rede enquanto puder reter o privilégio de definir suas associações.

  • Numa rede, alguns pontos muito distantes podem achar-se conectados, enquanto outros que eram vizinhos podem estar distantes. Mesmo sendo local, cada ator pode se mover de um lugar para o outro, desde que seja capaz de negociar equivalências que tornam um lugar igual ao outro. Uma rede pode, então, ser “bem geral” sem nunca ter que passar por um “universal”. Independente do quão rarefeita ou confusa, uma rede permanece local e circunscrita, fina e frágil, entremeada pelo espaço. Devemos imaginar enteléquias semelhantes a filamentos, fiados e entrelaçados uns com os outros (1.2.7), incapazes de harmonia porque cada um define o tamanho, o ritmo e a orquestração dessa harmonia.

1.4.3 Entre uma rede e outra, assim como entre uma força e outra (1.2.7), nada é por si mesmo comensurável ou incomensurável. Logo, nunca emergimos de uma rede, independente do quão longe ela se estenda.

  • É por isso que alguém pode ser um comandante em Auschwitz, uma oliveira em Corfu, um encanador em Rochester, uma gaivota nas Ilhas Scilly, um físico em Stanford, um gnaisse em Minas Gerais, uma baleia na Terra Adélia, um bacilo de Koch em Damiette, e assim por diante. Cada rede faz um mundo todo para si mesma, um mundo cujo interior nada mais é do que as secreções internas daqueles que o elaboram. Nada pode entrar nas galerias de uma rede sem ser virado do avesso. Se pensássemos que cupins eram filósofos melhores que Leibniz, poderíamos comparar a rede a um ninho de cupins – desde que entendamos que não há sol do lado de fora para escurecer suas galerias por contraste. Nunca será possível ver as coisas com mais clareza, nunca será possível ir mais “para fora” que um cupim, e a equivalência mais amplamente aceita pode parecer, sob prova, tão forte quanto um muro de barro.

1.4.4 Para estabelecer uma trajetória, uma força transforma outras forças em passivas. Assim ela pode se mover para lugares que não a pertencem, tratando-os como se pertencessem.

  • Estou disposto a falar de “lógica” (2.0.0), mas só se esta for vista como um ramo do serviço público ou da engenharia civil. Falar nesses termos é mais adequado do que falar, como Ulrich, de um Secretariado Geral pela Precisão e o Espírito (Musil, ch. 116)

1.4.5 Enteléquias que desejam ser mais fortes criam linhas de força. Elas mantêm as outras na linha, tornando-as mais previsíveis.

  • O termo “linha de força” é mais vago do que “rede”, “caminho”, “galeria” ou “lógica”, mas tudo bem. O leitor não deve, por enquanto, ser capaz de discernir se estou falando de seres sociais, circuitos, razões, máquinas, teatros ou hábitos. Essa vagueza é exatamente o efeito que busco, pois talvez jamais encontremos objetos assim classificados novamente.

1.4.6 Assim que um actante consegue convencer outros a “entrarem na linha”, ele aumenta sua força e se torna mais forte do que aqueles que convenceu e alinhou (1.5.1). Esse ganho pode ser mensurado de várias formas. É possível dizer que A está conectado aos outros. Mesmo que, a princípio, cada conexão seja igualmente possível, depois fica mais fácil conectar B com A do que B com C. Também é possível dizer que A comanda os outros. Mesmo que, a princípio, os outros emprestem sua força para A, eles permitem que A os controle. Também é possível dizer que A traduz os desejos dos outros. Mesmo que os outros desejem dizer alguma outra coisa, eles concordam que A diz o que eles queriam dizer, mas não conseguiram. A força de A também pode ser mensurada dizendo que ele pode comprar os outros. Mesmo que, a princípio, os outros não tenham o mesmo preço (1.2.1), E ou F podem concordar que valem tanto quanto A está disposto a pagar. Finalmente, é possível dizer que A explica os outros. Mesmo que os outros não possam se reduzir a A, eles concordam que são suas consequências, predicados ou aplicações (2.0.0).

No fim das contas, o resultado do trabalho de fazer valor e fazer equivalência é que A é mais forte que os outros, a despeito da incomensurabilidade entre eles. Ele traduz, explica, entende, controle, compra, decide, convence e os faz funcionar.

  • Às vezes, essa acumulação de equivalentes ou fichas é chamado “capital”, mas o capital não é o passo inicial. Primeiro, foi necessário criar equivalências (1.3.7), dobrar forças e segurá-las no lugar por tempo suficiente para serem escalonadas e mensuradas. Só então foi possível calcular lucros (1.3.5). O mercado é uma consequência do estabelecimento de redes; ele não explica a formação dessas redes.

1.4.6.1 Uma força absoluta é uma que seria capaz de explicar tudo, traduzir tudo, produzir tudo, comprar e redimir tudo, e fazer tudo agir. Como equivalente universal, capaz de substituir a si mesmo por tudo, e como providência universal, capaz de dar vida a tudo, essa força seria o motor primário e o primeiro princípio a partir do qual tudo mais seria gerado.

  • Algumas pessoas falam de “Deus” quando pensam na força que é capaz de redimir o mundo pelo Seu Filho, de explicar a origem e a criação, de traduzir em Sua palavra o que toda criatura, animada e inanimada, deseja no fundo de seu coração, de nos guiar pelos atalhos da Providência em direção aquilo que todos desejamos. Essa força absoluta é também a expressão absolutamente pura do nada, porque nada é por si mesmo redutível ou irredutível (1.1.1). Por causa de sua pureza, ela sempre fascinou místicos, senhores da guerra, capitães da indústria e acadêmicos em busca de princípios primordiais. “Ah”, eles dizem para si mesmos, “apreenda uma única força (uma cidade, um cálice, um axioma, um banco), e todo o resto vos será dado.” Para evitar o pânico da redução, devemos sempre dizer: “O que restou é tudo (Interlúdio I-II). O grande Pã está morto.”

1.4.6.2 Um ator expande enquanto puder convencer aos outros que os inclui, protege, redime ou entende. Ele se estende para mais e mais longe se puder assegurar atores que já se fizeram equivalentes a muitos outros.

  • Já se disse muitas vezes que o “capitalismo” foi uma novidade radical, uma ruptura jamais vista, uma “desterritorialização” levada às últimas consequências. Como sempre, a Diferença é mistificação. Como Deus, o capitalismo não existe. Não há equivalentes (1.2.1); estes devem ser feitos e eles são caros, não levam para muito longe e não duram muito tempo. Podemos, na melhor das hipóteses, fazer redes estendidas (1.4.2). O capitalismo é marginal ainda hoje. Logo as pessoas perceberão que só é universal na imaginação de seus inimigos e defensores (Interlúdio VI). Assim como os católicos romanos acreditam na universalidade de sua religião, mesmo que esta só flua pelos canais romanos, os inimigos e defensores do capitalismo acreditam no que talvez seja o mais puramente místico dos sonhos: que uma equivalência absoluta foi alcançada. Mesmo os Estados Unidos, o país do capitalismo verdadeiro, não consegue corresponder totalmente a esse ideal. Apesar dos esforços de sindicatos e de associações de funcionários, há forças que se agrupam e que não podem ser feitas equivalentes sem trabalho (3.0.0). Minha homenagem a Fernand Braudel (1985), que não esconde esse fato e mostra como é possível alcançar controle de longa distância através de redes tênues.

1.5.1 A uma força não podem ser dadas as forças que ela agrupa e convence. Por definição, ela só pode pegar emprestado seu apoio (1.3.4). De todo modo, ela reivindicará o que não pertence a ela e adicionará suas forças para si numa nova forma: é assim que a potência nasce.

  • Quando uma enteléquia contém outras enteléquias que não contém, dizemos que ela as contém “potencialmente”. A origem da potência está nessa confusão: não é mais possível distinguir um ator dos aliados que o fortalecem. A partir daí começamos a dizer que um axioma implica sua demonstração “in potentia”; começamos a dizer que um príncipe é poderoso, que o ser-em-si-mesmo contém o ser para si, mas só “potencialmente”. Com a potência, a injustiça também começa, porque aparte de uns poucos afortunados – príncipes, princípios, origens, banqueiros e diretores – outras enteléquias, ou seja, todo o resto, tornam-se detalhes, consequências, aplicações, seguidores, servos, agentes – em suma, os recrutas. Mônadas nascem livres (1.2.8), e, em toda parte, encontram-se acorrentadas.

1.5.1.1 Discussão sobre possibilidades é a ilusão de atores que movem enquanto esquecem o custo do transporte.

  • Produzir possibilidades é tão custoso, local e pé no chão quanto produzir aços especiais e lasers. Possibilidades são compradas e vendidas como tudo mais. Elas não são diferentes por natureza. Elas não são, por exemplo, “irreais”. Não existe possibilidade livre. Os ranks de consultores são caros – é só perguntar aqueles que declararam bancarrota porque produziram muitas possibilidades, mas não venderam suficiente.

1.5.2 É impressionante que um ator contenha muitos outros “in potentia” porque, mesmo quando está sozinho, é uma multidão. É por isso que ele é capaz de alistar outros atores e pegar emprestado seu apoio com mais facilidade.

  • Mesmo que comece com um blefe, reivindicando ser dono daquilo que só pegou emprestado, ele se torna real. Visto que o real é aquilo que resiste (1.1.5), quem é capaz de resistir uma enteléquia que vira multidão? Poderes, tronos e dominações se espalham mais e mais, enquanto continuam sem crescer nem se mover, sendo tão fracos quanto aqueles que os permitem agir.

1.5.3 O poder nunca é possuído. Nós o temos “in potentia”, mas isso significa que não o temos; ou o temos “in actu”, mas isso significa que são nossos aliados que entram em ação.

  • Os filósofos e sociólogos do poder lisonjeiam os mestres que dizem criticar. Eles explicam as ações dos mestres em termos da força do poder, embora esse poder só seja eficaz enquanto resultado de cumplicidades, conivências, compromissos e misturas (3.4.0). A noção de “poder” é a virtude adormecida da papoula que faz dormir os críticos, no mesmo instante em que príncipes sem poder se aliam a outros igualmente fracos para se tornarem fortes.

1.5.4 Cada vez menos forças que nada possuem atribuem a potência de todos os outros poderes a si mesmas, mesmo que não possam conta-los ou totaliza-los. Essa é a reductio ad absurdum do tudo ao nada. Príncipes que não são quase nada agem como se o resto, ou seja, tudo, não fosse mais coisa alguma.

CONTINUA NA PARTE 3

Referências:

LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. Harvard University Press, 1993.

LATOUR, Bruno. Les microbes, guerre et paix: Irreductions. AM Métailié, 1984.

Notas:

[1] N. do T.: No francês original, o termo é “Camp du Drap d’Or” e se refere a um local histórico em Balinghem onde ocorreu um encontro diplomático entre o rei Henrique VIII da Inglaterra e o rei Francis I da França.

[2] N. do T.: No francês, o termo é “passé”.

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