Da Série Verbetes
por Christoph Görg[i]
Tradução: Mylene N. Teixeira*
Revisão: Samantha Sales
Inglês – primary valorisation
Francês – valorisation primaire
Espanhol – valorización primaria
A valorização primária (V.P) é um verbete associado à economia de reservas produtivas (cf. Gerold, 1982; Schneider, 1983), um termo empregado no contexto de temas ecológicos. No final dos anos de 1980, tornou-se uma referência para a análise do processo de globalização.
A V.P é adotada na análise do processo de transformação dos valores da mercadoria por dinheiro, assim como a absorção social (Verselbständigung) sobre o entendimento do seu valor de capital diante do valor de uso da mercadoria.
O referido verbete se atualiza nas reflexões de Rosa Luxemburgo, quando associado ao processo de globalização capitalista com as análises de Karl Marx feitas no capítulo 24 de O Capital, denominado “A acumulação original do capital”. Reflexões essas que demonstram as mudanças nas estruturas sociais em decorrência do processo de acumulação da mercadoria. Nesse sentido, a expressão é um elemento importante de diagnóstico do tempo sob a ótica marxista.
1. V. P é usada constantemente como uma expressão semelhante a “comodificação” e/ou “monetarização”, todavia se diferencia dessas duas expressões. A V.P refere-se ao processo que Marx denomina “tornar-se mercadoria” (cf. Ms 44, 40/506; cap. III, 25/348f). Ao longo do referido processo sucede-se uma subordinação de coisas de acordo com as leis das formas de valores e nesse contexto uma dada especificação social de coisificação, de acordo com as respectivas condições que inerentes ao capitalismo. O escopo da análise da V.P não se reduz ao uso da qualidade especial da matéria, como subestima a economia dos recursos burguesa, senão no processo de valorização (o que é diferente, portanto, numa comercialização de bens em um mercado não capitalista). O cálculo de valores em formas monetárias de coisas (“monetarização”) não é o suficiente para caracterização de V.P, apesar de apresentar um momento desse processo. A monetarização é uma redoma de proteção, que encobre o valor subjetivo de coisas. O referido valor subjetivo, portanto, é que guarda o escopo de análise da V.P no processo de acumulação de capital, no qual a observação se dirige aos processos sociais intrínsecos às relações com as coisas. V.P está diretamente associada à “chamada acumulação original do capital” (23/741ff). Esse processo refere-se ao surgimento e à imposição das relações capitalistas de produção, que se dá por meio da separação “dos produtores dos seus meios de produção”, tornando-se, assim, esse último em capital (742). Tendo em vista que Marx caracterizou esse processo de separação como “original”, o autor descreve o surgimento desse modo de produção no período pré-capitalista. Com isso, supõe-se em parte que, com a imposição das relações capitalistas, esse processo estaria encerrado. Nesse contexto, Marx descreve a libertação do trabalhador assalariado moderno das relações feudais, que acontece em decorrência do desaparecimento dos modos de produção anteriores ao capitalismo e as respectivas relações com a propriedade privada (sobretudo no que se refere a terras comunitárias 752ff), e por fim a gênese do capitalismo industrial.
A imposição das relações capitalistas de produção não pode ser compreendida em si, dentro de um conjunto de medidas legislativas de formação social e nela implícita uma “obrigatoriedade silenciosa” das relações econômicas. Senão, as relações capitalistas desdobram-se à parte de qualquer pressuposto econômico, por meio de ações de violência. Para instituir a dominação capitalista, necessita-se tanto do Estado e suas leis quanto de uma direta violência militar. De acordo com Marx esse processo é exemplificado pelas conquistas e a exploração das riquezas do solo do “novo mundo”, inclusive a extinção das respectivas populações, o autor denomina como a “aurora” da era de produção (787,789).
2. Na teoria de acumulação e imperialista de Rosa Luxemburgo estão inseridos tanto aspectos sistemáticos quanto históricos da V.P. De acordo com ela, o capitalismo não surge somente em meios não capitalistas, pois necessita para sua existência e expansão de formas de produção não capitalistas ao seu redor (Acumulação, Obras Selecionadas 5:316). Com isso, diferenciam-se do processo histórico duas formas distintas de acumulação. Uma está associada ao processo econômico entre capital e trabalho, e outra está associada a formas de produção capitalistas e não capitalistas. Essas formas de acumulação acontecem por meio de uma constante expropriação na vida cotidiana, o que gera violência, que se expressa por meio de bandidagens, saques e etc. Com isso, esses são considerados por Rosa Luxemburgo como dois lados da acumulação, ligados entre si por meio das condições de reprodução do capitalismo. A V.P das relações sociais consideradas não capitalistas e as respectivas ações de violência associadas a elas passam a ser assim parte integrante do momento do desenvolvimento capitalista.
No contexto acima descrito estão associadas pesquisas sobre o período fordista de desenvolvimento capitalista. Burhard Lutz (1984) faz um paralelo do processo imperialista com a “tomada de terra no exterior”, assim como o crescimento da pressão social nesses países, a “tomada de terra no interior”. Reflexões semelhantes encontram-se na teoria de regulação, quando é mencionada a tendência de uma relação social “inteiramente capitalista” (Hirsch e Roth 1986, 48ff), isto é, subordinada à produção capitalista e a formas de reprodução (por exemplo: na reprodução e no setor de consumo), onde essa forma de V.P estaria paralelamente assegurada e vigiada por meio de uma completa estatização.
Sob a ótica feminista, a V.P foi estudada na área de reprodução social e relações de gênero como “mulheres enquanto a última colônia” (Werlhoff et al., 1983). O referido estudo tematiza evidências encontradas no processo de V.P dentro e fora das relações de gênero. Em meio ao capitalismo, a “acumulação original” é no sentido de V.P um processo trans-histórico, que se traduz nas formas históricas de mudanças (De Angelis, 2001; Zarembka, 2002).
3. A tendência da moderna burguesia de conceber um mundo de acordo com o seu imaginário (Manifesto, 4/466) não se limita, de forma alguma, à imposição das relações de produção capitalistas na metrópole. Justamente, a globalização capitalista sob a hegemonia neoliberal mostrou significativamente que o processo de V.P tem um papel central. Contrariamente à concepção da econômica burguesa, a V.P não implica apenas a exploração dos espaços e reservas produtivas, senão uma sistemática integração nas condições capitalistas de “restrições de acordo com o mercado mundial” (Altvater, 1987 sobre a Amazônia). Uma faceta desse processo está na alta seletividade da anexação e exploração de determinadas regiões no processo de V.P de espaços territoriais (Altvater e Mahnkopf, 1999; 23 e 128 ff). A V.P é, com isso, um elemento central para a “regulação periférica” (Alnasserim, 2004), isto é, a subordinação de um modo de produção não capitalista sob o capitalismo dominante. Além disso, acontece a “V.P da natureza”, por exemplo: das reservas genéticas, o que é uma tendência geral da subordinação envolta na dominação da natureza (Brand e Görg, 2003, 46). O referido processo conduz a profundos transtornos vinculados às relações sociais, especialmente a “substituição de determinadas produções por meio de multinacionais” (Mies e Shiva, 1995, 3001). Decisivo é, por outro lado, que o processo de V.P não termina somente com a formação de mercadoria, mas é pensado como um processo de múltiplas etapas, no qual são primeiramente definidas como reservas produtivas, ou seja, constituídas como tal, em seguida identificadas e extraídas e por fim integradas no mercado mundial (cf. o esquema em Altvater e Mahnkopf, 1999, 131). Em cada uma dessas etapas vai se estabelecendo uma submissão dentro das relações de produção, que vinculam as referidas etapas uma com a outra. Além disso, cada uma dessas etapas é marcada por intensos conflitos sociais.
Simultaneamente, encontram-se, por um lado, relações societárias com a natureza envoltas na produção capitalista. Por outro lado, emergem, constantemente, novas áreas de exploração (como por exemplo: formas de trabalho informais) subordinadas a transformações para exploração, por meio de sua valorização em capital. Isso resulta em ataques massivos a modos de vidas inseridos em suas respectivas culturas. O exemplo na exploração das reservas genéticas demonstra, que essas lutas iniciam quando (em decorrência da ascensão tecnologia genética) identificaram-se propriedades herdáveis de organismos vivos como um potencial econômico e reserva produtiva valorosa. A constituição desse debate, especialmente no que se refere ao corpo humano “tornar-se mercadoria” na forma de “informação sobre ele” (Rose, 2001, 495), é muito controverso, pois subestima e mina outras formas de relações societárias com a natureza, as quais não entendem natureza como uma reserva produtiva para maximização de lucros.
A biopirataria (Delgado-Ramos, 2001) é identificada quando existe a associação, conversão e destruição de modos de produção não capitalistas com a expansão capitalista. Em meio a esse processo ocorre a monopolização das reservas produtivas disponíveis por mãos atuantes de corporações transnacionais. Com isso, não se trata apenas de uma “questão de leis e regras” da divisão dos lucros, senão de uma privatização, e com isso a regulação de bens comuns de uma dada sociedade, que até então era pública e coletiva (Ribeiro, 2002, 119). Assim, constitui-se um conflito de “irremediável violência”, ao qual Marx se referia (23/765). Nesse contexto teve papel decisivo a necessidade de criar condições jurídicas e políticas básicas em uma instância global (sobretudo no que tange aos direitos de propriedades e patentes), que a princípio tiveram que ser impostas. Diante das referidas condições e imposições legislativas inviabilizou-se um campo de lutas (conflitos pelas reservas produtivas genéticas e patentes, cf. Brand e Görg , 2003). Dito isso, a comodificação e a monetarização são efeitos colaterais do processo de V.P, onde a mercantilização da natureza e sua classificação apresentam o passo parcial de V.P para cada unidade monetária.
Além disso, V.P implica primeiramente a constituição enquanto mercadoria, e sua definição por meio da subsunção às condições de classificação de capital pelo mercado mundial. Trata-se de uma mercadoria específica capitalista – enquanto bens, as matérias-primas genéticas são negociadas no mercado local há muito tempo (por exemplo: sementes ou plantas medicinais). Entretanto, foi com o início da tecnologia biogenética associada com os direitos de propriedade intelectual global que fez dos códigos genéticos uma matéria-prima para as transnacionais ativas como corporações do setor agrário- farmacêutico “Life Science Industrie”. Primeiramente, as referidas matérias-primas de código genérico foram subordinadas à “biopirataria” por meio de sua classificação de capital. Assim, o processo de V.P da natureza torna-se uma estrutura, onde circula “o conflito pelas relações societárias com a natureza” (Görg, 2003, 297).
4. Com o processo da V.P colocam-se problemas relacionados ao iminente limite do crescimento econômico, assim como a relação da violência e a economia, as ciência e técnicas, a polícia e a cultura: é possível então fazer uma analogia com a reprodução fordista de V.P. com a “tomada de terra do interior” no contexto da globalização neoliberal? Poderia, por essa razão, emergir semelhante dinâmica de V.P em um regime de acumulação estável (Sablowksi, 2003; Harvey, 2003; Candeias e Deppe, 2001)? A V.P não é um processo puramente econômico, mas tem implicações políticas e jurídicas, assim como culturais, além de se basear em ciências e técnicas. Não há uma aceitabilidade cultural da exploração da natureza sem limites, tampouco as leis de patente tornam as referidas práticas automaticamente aceitas. Ambos são focos de conflitos e resistências, que devem ser decididas em âmbitos políticos e jurídicos e somente por meio deles é que o processo de V.P pode se impor. A questão do significado da globalização capitalista: exigências que a valorização primária seja assegurada de forma transnacional, demonstra a tendência da internacionalização do Estado (Hirsch, 2001; Brand e Görg, 2003). No entanto, existem formas de violência explícita que se justificam pela necessidade de se impor e de assegurar uma V.P (cf. Harvey, 2003). Isso vale tanto para a matéria-prima fóssil como para aquelas do “biocapitalismo”. A primeira tem como exemplo a guerra do Iraque, a segunda se evidencia com o violento conflito pela disponibilização do habitat natural, do território do Amazonas até o Chiapas. As limitações do problema encontram-se na rearticulação dos territórios: espaços locais, nacionais e globais são colocados em novos paradoxos de relações sociais, o que acarreta mudanças nas relações de violência e de poder. Diante do progressivo avanço do capitalismo global o verbete de V.P ganha uma importância central, pois pode nos ajudar a compreender os conflitos envolvidos nesse processo.
Referências
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Nota
[i] Desde 2012 é coordenadora da disciplina Sociologia da Educação, na Universidade do Norte Fluminense, RJ (UENF). Pós-doutorado em Sociologia da Educação na Universidade de São Paulo (FE-USP), 2019 e doutorado na Universidade de Münster, Alemanha, em 2010. Diploma em Nutrição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1985.
* Este post é resultado de uma relação de colaboração firmada com Mylene N. Teixeira, fellow do Instituto de Pesquisa da Teoria Crítica de Berlim (InkriT) e coordenadora da disciplina sociologia econômica na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf, Campos dos Goytacazes, Brasil).
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