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Sociologia da Crítica ou Teoria Crítica? Luc Boltanski e Axel Honneth conversam com Robin Celikates (Parte 2)

Honneth e Boltanski

Por Axel Honneth, Luc Boltanski e Robin Celikates
Tradução: Alberto L. C. de Farias
Revisão: Lucas Faial Soneghet

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A primeira parte desse post pode ser encontrada aqui.

III

Robin Celikates: Quais são as semelhanças, bem como as diferenças mais importantes, entre a sociologia da crítica e a teoria do reconhecimento?

Luc Boltanski: A ideia de “regimes de justificação” ou “ordens de justificação”, desenvolvida em On Justification, é certamente comparável à distinção que Honneth faz entre as várias “esferas de reconhecimento”. Estamos, no entanto, interessados principalmente no problema da ordem e da hierarquia, bem como na sua justificação. Dada a existência de diversas reivindicações de reconhecimento, a questão é como se deve ser reconhecido. Uma pessoa pode ser reconhecida como “significativa” ou “insignificante”, como “grande” ou “pequena”; e mesmo que seja considerada “pequena”, tem um lugar na sociedade, embora possa estar insatisfeita com isso. Assim, precisamos examinar não apenas os processos de reconhecimento dentro de um determinado mundo, mas também as maneiras pelas quais eles estão relacionados às questões que surgem da posição, hierarquia e ordem, que definem como se está situado neste mundo. Em outras palavras, o reconhecimento não é o fim do conflito; pelo contrário, leva a novas indeterminações, disputas e choques. Se levarmos a sério os atores — incluindo suas demandas e argumentos —, então as incertezas vêm à tona nas suas brigas. Por exemplo, o que pode ser discutido é a questão de saber se o trabalhador despedido foi ou não realmente irresponsável, ou a questão de saber se um trabalhador que pode ser contratado é ou não realmente competente para fazer o trabalho. Não sabemos. É por isso que são necessários testes institucionalizados socialmente: eles permitem reduzir a incerteza vivenciada pelos atores humanos; e, na melhor das hipóteses, podem resolver uma disputa.

Robin Celikates: Que papel desempenha o senso comum numa teoria que coloca as capacidades reflexivas das pessoas no centro das atenções?

Luc Boltanski: Wittgenstein, pragmatismo e etnometodologia atribuem um papel importante ao senso comum, e eu tenho sido fortemente influenciado por eles. Em grande medida, porém, permaneci um Durkheimiano: acredito cada vez menos no bom senso. Nas ciências sociais — notavelmente na teoria social e cultural, mas também na teoria dos jogos — é costume atribuir grande importância à capacidade espontânea das pessoas de se reunirem, de se entenderem e de desenvolverem — literalmente — um senso comum. Habermas, por exemplo, deposita demasiada fé na linguagem e nas possibilidades de coordenação da ação que derivam presumivelmente dela.

As ordens de justificação [cités] que analisamos em On Justification são uma forma de limitar o senso comum: no contexto de uma cité, certos argumentos são permitidos e relevantes, enquanto outros não o são. Estamos a lidar com construções históricas em que a linguagem pode ser utilizada de formas muito diferentes e em que a mesma palavra — por exemplo, “justo” ou “razoável” — pode adquirir significados totalmente diferentes. Neste sentido, a nossa abordagem é também estruturalista, em vez de simplesmente pragmática. Além disso, as ordens de justificação não são formações puramente cognitivas, mas sempre fundamentadas em objetos relacionados a elas. Assim, a questão micro/macro apresenta-se sob uma nova luz. Serão os atores lançados num mundo já construído, em que as possibilidades de ação são extremamente limitadas (como no estruturalismo)? Ou devemos partir da perspectiva dos atores e das suas práticas situacionais constitutivas do mundo (como no pragmatismo e na etnometodologia)? Ambas as descrições estão corretas. É claro que os atores que vivem situações concretas não estão só expostos a um mundo já construído, como também o alteram. A integração destas duas abordagens, no entanto, ainda não foi realizada.

Robin Celikates: Pode-se ter a impressão de que, de certa forma, a sociologia da crítica procede de forma positivista e que, portanto,  deliberadamente abandona a alegação de ser ela mesma “crítica”.

Luc Boltanski: É verdade que a tentativa de se afastar de Bourdieu levou a uma forte posição positivista. Inicialmente, tudo o que procuramos alcançar foi oferecer a melhor descrição possível de um determinado tipo de situação social. Para conseguir isso, nós tomamos idéias emprestadas do modelo linguístico de Noam Chomsky: precisamos entender que atores comuns, em vez de sociólogos, estão equipados com conhecimento sociológico genuíno e com competências que lhes permitem navegar pelo mundo social. Esse conhecimento, no entanto, está amplamente implícito. Como é amplamente reconhecido, é impossível falar e, simultaneamente, refletir sobre regras gramaticais —- e o mesmo se aplica à ação social. Semelhante ao gramático, o sociólogo é confrontado com a tarefa de operacionalizar e formalizar as competências que são parcialmente cognitivas e parcialmente moldadas pela experiência cotidiana. O modelo deve ser desenvolvido e testado com base em pesquisas de campo. Tal concepção de teoria tem pouco a ver com a crítica, a política ou mesmo com a prática.

Algumas pessoas apressaram-se para mal interpretar o nosso modelo e  usá-lo com o objetivo de desqualificar a crítica ou atribuir valor ao projeto de democracia. É por esta razão — mas também por razões morais e políticas, que têm a ver com a hegemonia do neoliberalismo e com a crise social em França — que não fiquei muito tempo satisfeito com esta autolimitação positivista da teoria. O livro The New Spirit of Capitalism, que co-escrevi com Ève Chiapello, pretendia contribuir não só para a amplificação teórica deste modelo — de uma abordagem a-histórica e estática para uma abordagem histórica e dinâmica, que leve em consideração as relações de poder — mas também para o objetivo prático de renovar a crítica do capitalismo.[1] Consequentemente, abandonamos uma posição meramente positivista-descritiva ao restabelecer uma ligação entre sociologia e crítica, mas sem assim abandonar completamente o quadro teórico desenvolvido em On Justification.

Robin Celikates: Até que ponto essa revisão pode ser interpretada como uma mudança paradigmática em direção à sociologia crítica?

Luc Boltanski: Para fazer sociologia, é preciso ocupar uma posição externa. Se alguém permanece dentro do mundo social, é um especialista (que, por exemplo, pode ser capaz de dar conselhos aos hospitais sobre como melhorar a forma como eles lidam com seus pacientes). A sociologia é um esforço complicado: é preciso agir como se o mundo social fosse totalmente contingente e como se também pudesse ser completamente diferente. Partindo desta premissa, é possível reconstruir os elementos constitutivos que permitem a sua coerência e robustez. A possibilidade de crítica — ou, para ser exato, de metacrítica, articulada por sociólogos teóricos — pressupõe que se tenha uma descrição de algo; caso contrário, não haveria nada a criticar. Isto requer uma posição externa, uma exterioridade de primeira ordem.

O emaranhamento entre a descrição e a crítica requer uma exterioridade complexa, que torna possível avaliar um determinado estado de coisas e, assim, assumir uma posição normativa. A verdadeira sociologia deve sempre ser crítica. Qual seria o sentido de produzir uma teoria meramente descritiva? As pessoas esperam da sociologia que ela facilite a crítica e que, ao fazê-lo, contribua para a melhoria da sociedade. A base normativa subjacente a esta crítica não pode consistir em um ponto de vista localmente ancorado — cultural, religioso ou moral (o que é frequentemente o caso nas críticas cotidianas). Pois a sociologia reivindica ser universal. Os seus fundamentos normativos têm de ser suficientemente precisos para tornar a crítica possível e, ao mesmo tempo, suficientemente gerais para evitar serem redutíveis a um determinado conjunto de princípios morais. Isso significa que a sociologia da crítica — incluindo sua operacionalização das práticas críticas geradas pelos atores — resulta em uma posição normativa e crítica? No mínimo, é possível apoiar a crítica das ordens factuais de justificação e dos testes, por exemplo, no contexto de uma eleição local em que todos os candidatos pertencem à mesma família. Esta é uma crítica reformista. Tal crítica, no entanto, não é particularmente emocionante; e a sociologia deve ser emocionante! Na vida cotidiana, as pessoas são realistas e têm expectativas realistas. Enquanto um garçom trabalhando em um café pode se sentir completamente alienado porque seu colega tem mais tempo livre do que ele, ele pode ser indiferente ao fato de que ele é um garçom, ao invés de um professor universitário — c’est la vie!

A realidade social pode ser mais forte ou mais fraca, mais rígida ou mais aberta. A experiência decisiva feita em 1968 é a atenuação e, portanto, a abertura da realidade social. Naquela época, as pessoas tinham sonhos, não apenas expectativas, e seus sonhos mudavam suas expectativas. No mundo de hoje, este deixou de ser o caso, e é aqui que a sociologia crítica precisa entrar em jogo e se voltar contra o realismo dominante.

IV

Robin Celikates: Desde o início, a teoria do reconhecimento tem aspirações profundamente críticas. Como responde à questão dos critérios normativos da crítica? Pode ir além das expectativas dos atores, que muitas vezes são demasiado realistas?

Axel Honneth: A substituição do paradigma da comunicação pelo paradigma do reconhecimento pretende dar acesso aos padrões imanentes da crítica social. Pois na realidade social há experiências de injustiça e de déficit reconhecimento, sobre as quais a teoria crítica precisa se basear. No entanto, neste contexto, surge um duplo problema. Por um lado, a noção de luta pelo reconhecimento sofre de uma limitação analítica. Ao contrário do que costumava pensar, a distinção entre expectativas particulares e formas de reconhecimento não pode basear-se apenas numa concepção antropológica de pessoidade[2] e da necessidade distintamente humana de desenvolver uma identidade integral. Tal abordagem é demasiado psicológica e insuficientemente sociológica.

Por outro lado, somos confrontados com uma limitação normativa. Notavelmente no debate com Nancy Fraser, comecei a perceber que a tentativa de localizar os padrões normativos da crítica nas experiências de déficit de reconhecimento envolve o risco de considerar todas as expectativas como justificadas.[3] Obviamente, essa consequência seria absurda; há bastante expectativas estranhas, insanas e idiossincráticas  que não são justificadas. É por isso que precisamos de recursos teóricos que nos permitam distinguir entre expectativas justificadas e injustificadas e necessidades de reconhecimento.

As três dimensões do reconhecimento identificadas por mim — “igualdade jurídica”, “amor” e “realização individual” — não são suficientes para  conseguir tal coisa, embora decorra delas que apenas as expectativas delas derivadas se justificam. Parece-me que esta é uma questão que tem sido largamente ignorada pelos leitores franceses. O sentimento de injustiça não é suficiente para fornecer uma base sólida para a crítica. Tanto a tendência à sobrepsicologização como o problema da limitação normativa — à luz da minha conversa crucial com Fraser — levaram a correções internas e melhorias na minha abordagem.

No decurso desta “virada sócio-teórica”, as ordens institucionais de reconhecimento tornaram-se o foco da minha atenção. Assim, longe de estarem inseridas numa concepção a-histórica da pessoidade, as três dimensões de reconhecimento acima mencionadas são realizadas em ordens de reconhecimento historicamente dadas e em evolução. Estas ordens são expressões institucionalizadas do que os seres humanos podem legitimamente esperar em termos de reconhecimento. O que é central a este respeito é a questão do status normativo e não a questão da identidade. Temos de encarar o fato de que as ordens respectivas definem o status normativo das pessoas. Neste contexto, as expectativas de reconhecimento só se justificam na medida em que representam articulações das ordens em que estão inseridas. Este quadro é uma espécie de combinação de Hegel e Durkheim: no contexto da socialização, os indivíduos assimilam as diferentes ordens e vocabulários de reconhecimento; eles aprendem a falar a linguagem do amor, dos direitos individuais e da performance; além disso, eles obtêm a capacidade de justificar suas demandas normativas em relação a esses princípios. Os sujeitos são socializados na gramática do reconhecimento, incluindo suas manifestações institucionais. No entanto, este é o caso apenas nas sociedades modernas. 

Robin Celikates: Onde acha que reside a principal diferença entre as ordens de reconhecimento, que acabou de descrever, e as ordens de justificação, que Boltanski e Thévenot examinam nas suas obras?

Axel Honneth: Parece-me que há duas diferenças principais. Primeiro, as ordens de justificação são organizadas de forma meritocrática. Parece, então, que nosso mundo normativo está orientado primariamente para a conquista de feitos, quando, na verdade, nossa realidade social tem uma estrutura normativa muito mais rica. Cités são diferentes articulações do princípio da estima social. Os princípios do amor e do respeito, no entanto, são construídos de forma muito diferente e falam outra linguagem normativa. Em segundo lugar, um importante ponto de divergência diz respeito ao problema das ordens normativas. Em On Justification, assume-se que todos os princípios de justificação possíveis foram pré-formulados pelos clássicos da filosofia política e que, portanto, eles podem ser simplesmente revisitados. Neste sentido, estamos a lidar com uma concepção hermenêutica, e não sociológica, das ordens normativas. No meu caso, pelo contrário, a análise da normatividade segue a lógica de uma compreensão particular da sociologia histórica: precisamos reconstruir a diferenciação de diferentes ordens normativas de justificação. Isto corresponde a um tipo de Hegelianismo sem uma filosofia da história. As três esferas de reconhecimento são elementos de nossa concepção de modernidade; elas nos permitem descrever a estrutura normativa das sociedades modernas, que é certamente refletida nos textos clássicos de teoria social e filosofia política modernas. 

Robin Celikates: Dito isto, como você definiria as tarefas da crítica social? E como você entende o papel da teoria social em relação à compreensão que os atores têm de si mesmos? 

Axel Honneth: Podemos identificar várias tarefas às quais a teoria social, baseada na crítica social, precisa atender.

Primeiro, a teoria social reconstrói uma narrativa histórica e imagem da modernidade particulares, que transcendem a articulação do conhecimento implícito realizado pelos atores. Esta reconstrução, no entanto, tem de se refletir, pelo menos em parte, na perspectiva dos atores sociais, porque, em última análise, eles são socializados no mundo moderno e são — pelo menos implicitamente — capazes de distinguir entre as diferentes ordens normativas que eu reconstruo como teórico.

Em segundo lugar, a teoria social deve ser entendida como um esforço capaz de rearticular as expectativas legítimas dos atores, relacionando-os com os seus princípios normativos correspondentes. Deve ser possível para a teoria social, abordar as expectativas de reconhecimento, que são justificadas na medida em que são formuladas dentro destas ordens de reconhecimento.  Tudo isso tem lugar ao nível da re-descrição e não ao nível da crítica explícita. A re-descrição visa ilustrar a dimensão moral que está embutida nos conflitos sociais. Uma vez que, no entanto, podemos observar uma tendência para autodescrições falsas e unilaterais nas nossas sociedades — e uma vez que, além disso, o positivismo dominante promove estes autoconceitos tecnocráticos e utilitários — esta descrição alternativa, que é teoricamente motivada, é já ela própria crítica, mesmo que articule apenas o significado implícito dos fenômenos sociais. Hoje em dia, por exemplo, as reivindicações dos sindicatos articulam-se predominantemente na linguagem dos juros, do aumento dos salários, etc. A teoria social precisa fornecer uma outra descrição das expectativas dos trabalhadores, dado que estas já não são expressas na linguagem dos sindicatos. Estamos a lidar com falsas articulações da dimensão normativa subjacentes aos conflitos sociais. E quanto mais o nosso mundo social é moldado pelo positivismo e pelo utilitarismo, mais ele tende a descrever-se a si próprio e aos seus conflitos e práticas de uma forma tão redutora.

Em terceiro lugar, é tarefa da teoria social expor o caráter moral das expectativas articuladas o mais claramente possível. Isso não significa que todas essas expectativas sejam justificadas; isso significa, no entanto, que os pontos de referência moral implícitos das expectativas e articulações precisam ser elucidados. Neste sentido, tudo o que a teoria crítica faz é contribuir para o debate público. Nessa abordagem, que recorre a Dewey, a teoria social preocupa-se em apoiar os atores como participantes do debate público e, portanto, em ajudá-los a articular as suas expectativas e demandas normativas (muitas vezes implícitas). Nas sociedades democráticas, a tarefa da justificação é sempre uma tarefa pública, e não um empreendimento teórico; e é por isso que a teoria social pode cumprir a sua missão crítica apenas na esfera pública.

Em quarto lugar, a tarefa crítica da teoria social, entendida em sentido estrito, consiste em assegurar que os princípios de reconhecimento estejam constantemente abertos a interpretações mais radicais e mais profundas. Por definição, os princípios adquirem uma espécie de valor excedente em relação à ordem existente. Uma ordem institucionalizada em nome de um desses princípios fica sempre aquém de alguma coisa, porque o significado de termos como “amor” e “justiça” não é conclusivo; em princípio, é sempre possível que novos aspectos, que ainda não foram considerados, entrem em jogo. A teoria precisa chamar a atenção para este valor excedente— isto é, para este potencial normativo não realizado, e deve fazê-lo de maneira visionária. Isto, naturalmente, leva a outros problemas, tais como a questão de saber se a distinção entre esferas particulares de reconhecimento é simplesmente dada e, além disso, a questão de saber se a teoria pode proceder criticamente apenas dentro deste quadro, ou se há uma crítica mais extensa e transcendente.

Luc Boltanski: Em primeiro lugar, gostaria de salientar que concordo com a crítica feita acima ao On Justification. A fim de evitar que o livrofosse mal interpretado como uma descrição completa do mundo social, logo após sua publicação escrevi um livro sobre o amor.[4] No momento, estou trabalhando em um projeto principalmente sociológico, que está ligado ao On Justification, mas que, ao mesmo tempo, vai muito além dele, na medida em que ele mesmo é destinada a fornecer uma espécie de metacrítica.[5]

Quando se trata da clarificação de demandas  legítimas — para a qual, sem dúvida, a teoria crítica pode dar importantes contribuições — encontramo-nos em situações de incerteza radical, que apresentam uma certa semelhança com o estado de natureza de Hobbes, pelo menos no que diz respeito às suas dimensões semânticas. Ninguém sabe exatamente o que está acontecendo. É aqui, por exemplo, um encontro de três amigos ou um seminário? Somos confrontados com os problemas de classificação e julgamento. Com que tipo de seres ou entidades estamos a lidar? E qual é o seu respectivo valor?

Distingo entre dois tipos de situações: as “práticas” e as “metapragmáticas”. As situações de interação prática podem ser analisadas em termos da teoria da prática de Bourdieu. O que eu descrevo como o “regime do amor” é uma radicalização do “regime da prática”. Os atores cooperam nestas situações, a fim de interpretar um determinado contexto e de se tolerarem uns aos outros, de modo a evitarem ter de fazer um teste e de se envolverem numa disputa. Consideremos o exemplo de ter que lavar a louça depois de uma refeição com amigos: um deles continua a falar sobre questões sociológicas, uma mulher beija seu parceiro, e uma terceira pessoa começa a limpar a mesa, mas todos eles fingem que tudo está em ordem. As equivalências são postas de lado e os cálculos são suspensos. Os participantes tentam garantir que eles não precisem fazer nenhum cálculo. Isto permite uma condição de paz, como muitas vezes prevalece em pequenos grupos. O problema não surge até que as visões da situação comecem a divergir substancialmente e/ou os atores envolvidos se distanciem cada vez mais uns dos outros. Neste caso, o que se torna necessário é outra forma de regime, que caracterizo como “metapragmático”, porque explora as potencialidades metalinguísticas da linguagem natural — isto é, a possibilidade de falar sobre a linguagem através da linguagem.

Neste contexto, enfrentamos duas possibilidades. Por um lado, existe a possibilidade de crítica: ““Você quer chamar isso de uma conversa?” Por outro lado, existe a possibilidade de confirmação: “Esta é uma conversa no sentido real [actual] do termo”. Aqui, o meu argumento é anti-habermasiano: a linguagem nunca é capaz de permitir a convergência de diferentes perspectivas; porque os atores humanos têm um corpo, estão espacialmente situados, têm interesses, têm desejos diferentes, e assim por diante. É por isso que não há razão para assumir que uma pessoa pode dizer, em nome de outra, que isto é uma garrafa, em vez de simplesmente um pedaço de plástico. Este é um problema geral, especialmente se sairmos do “regime da prática”, nos encontrarmos em desacordo com os outros e procurarmos uma definição do que é realmente o caso.

Agora, a solução para este problema proposta pelos membros da sociedade consiste em delegar a tarefa de verificar o que se passa (“isto é uma garrafa”, “isto é um seminário”) a uma entidade sem corpo — e esta entidade é o que chamamos uma instituição. Por isso, considero crucial a seguinte distinção analítica: as organizações abordam o problema da coordenação inventando regras; as administrações estão encarregadas de lidar com o problema da polícia — isto é, asseguram que as regras sejam cumpridas; as instituições desempenham, acima de tudo, uma função semântica — isto é, elas nos dizem o que a situação é; e, para isso, produzem as classificações necessárias (“ele é professor em Frankfurt”, “ela é garçonete em um café”, “isto é queijo feta real”). Assim, a função semântica das instituições consiste em confirmar continuamente o que se passa no mundo e, portanto, em estabilizar o mundo. Isto é indispensável, porque de outra forma tudo seria incerto e em constante estado de fluxo.

Robin Celikates: O que é que a crítica de campo faz em relação às instituições, nomeadamente em relação à sua função estabilizadora — e, se assim posso dizer, conservadora?

Luc Boltanski: As instituições sempre dão respostas à críticas expressas. É por isso que existe uma dialética permanente entre as instituições e a crítica. Porque o problema é que uma entidade sem corpo não pode agir sobre o mundo; não pode sequer falar. Devido a esta limitação, as instituições precisam de oradores com um corpo ou, para ser exato, com dois corpos. Podemos observar como os falantes mudam sua voz e seus hábitos quando falam em nome de uma instituição. Isto abre a possibilidade de desconfiança quanto à questão de saber se é realmente a entidade sem corpo que fala e diz o que se passa, ou se, essencialmente, estamos a lidar com a opinião privada do orador. É por esta razão que Habermas não me convence; uma mudança de perspectiva pode permitir compromissos e acordos práticos, mas nunca resulta na estabilização de uma situação particular. 

Consideremos o seguinte exemplo, que foi examinado por um dos meus alunos. Uma mulher está sob a influência de uma seita, e seus amigos querem ajudá-la. Após um curto período, ambos os lados acusam um ao outro de manipulação. Ninguém sabe realmente, no entanto, o que é uma seita e quem manipula quem neste caso. Isto é o que eu chamo de “contradição hermenêutica”, e esta contradição é a condição prévia para a possibilidade de crítica. Se o mundo fosse apenas um conglomerado de instituições confirmando o que é o caso, então não haveria crítica. Na verdade, tal cenário equivaleria a uma situação de dominação total. Neste contexto, é possível distinguir entre três formas de teste [épreuve].

Em primeiro lugar, há os “testes da verdade”, que são desenvolvidos por instituições para confirmar a definição de uma situação específica. Baseando-nos em Bourdieu, podemos dizer que, neste caso, estamos lidando com a ordem simbólica cuja tarefa é estabilizar a realidade, muitas vezes na forma de tautologias, tais como “Deus é grande”. A “realidade”, neste sentido particular, deve ser distinguida do “mundo”. Se a “realidade” — como declarada pelas instituições — coincide ou não com o “mundo” é uma questão em aberto. 

Em segundo lugar, existem “testes de realidade”, através dos quais é possível examinar quais as alegações que são justificadas. Se, por exemplo, eu disser que sou capaz de utilizar um computador, podemos verificar isso imediatamente. Como todos os sociólogos das últimas décadas demonstraram, a realidade é construída, mas a realidade não é o mundo. A distinção entre “realidade” e “mundo” é central para processos metacríticos. Como diz Wittgenstein, o mundo é tudo o que acontece. Mas, obviamente, não sabemos o que é o mundo; e, no entanto, ele está sempre lá, e podemos sempre nos relacionar com ele. 

Em terceiro lugar, há um tipo de teste — no sentido do duplo significado de épreuve: ao mesmo tempo, “teste” e “desafio” – ao qual me refiro em termos de “testes existenciais”: nestes testes, a experiência é medida contra verdades estabelecidas. A crítica reformista pressupõe apenas os dois níveis de “testes de verdade” e “testes de realidade” institucionais. Eles podem apontar para o fato de que a realidade — pense no exemplo anterior de escolha manipulada — não corresponde ao formato prescrito. Além disso, a crítica radical precisa fazer referência aos testes existenciais. Neste contexto, a arte e a literatura desempenham um papel central, uma vez que não dependem de exigências de justificação e coerência. Elas podem empurrar as coisas do mundo para a realidade, produzindo instâncias que não correspondem às definições subjacentes à realidade. No entanto, ainda é preciso estabelecer ligações com outras pessoas, pois, se nos basearmos apenas em nós mesmos, somos simplesmente loucos, um “esquisito”, paranoico. Assim, esta crítica em nome do mundo só funciona na medida em que pode relacionar-se com experiências partilhadas. 

Robin Celikates: O que exatamente a crítica tem a opor à existência de instituições? Presumivelmente, as instituições são indispensáveis, não são?

Luc Boltanski: Nos anos 1960 e 1970, os estudos sociológicos tenderam a se concentrar na função repressiva das instituições – ou seja, em sua capacidade de estabelecer e estabilizar a ordem simbólica; o fato de que não há sociedade sem instituições foi desconsiderado. A função estabilizadora das instituições é indispensável. Ao mesmo tempo, as demandas institucionais são muitas vezes exorbitantes, especialmente quando estão ligadas ao Estado como um sistema de dominação em larga escala (polícia, administração, etc.) ou ao capitalismo. Isso nos leva a um problema político-prático: enquanto a tentativa de abolir as instituições (um empreendimento compartilhado por Bourdieu, Foucault e outros) é inútil, precisamos concebê-las de forma diferente — ou seja, como estabelecimentos frágeis, que podem estar relativamente próximos dos seres humanos e podem ser transformados e criticados. No entanto, como é possível que isso aconteça?

Robin Celikates: Está insinuando que existem instituições “boas” e “más”? 

Luc Boltanski: Sim, instituições fortes são más instituições. As piores instituições são aquelas que perderam toda a ligação com a realidade – ou seja, com as experiências das pessoas, que são – por definição – históricas e locais. Não precisamos de ir mais longe do que considerar a Igreja Católica sob a égide do Papa Bento XVI e da União Soviética. Só através da crítica reformista é que as instituições podem aprender algo sobre a realidade. Sem crítica, elas simplesmente perdem a sua conexão com a realidade. Um pouco menos más – mas ainda más – são as instituições que se baseiam no pressuposto de que a “realidade” e o “mundo” coincidem.  

Consideremos o exemplo da economia: junto com a sociologia, essa ciência está encarregada da construção de nossa realidade. Ela decide qual é o caso; ela decide o que acontece. Para muitas instituições econômicas, ou aquelas influenciadas por economistas, não há praticamente nada que vá além do escopo de sua – autodefinida – realidade. Essas instituições são ruins. Ora, uma boa instituição não é uma instituição incapaz de nos dar uma sensação de segurança; na verdade, isso seria uma mera bagunça e não uma instituição. Uma boa instituição é uma instituição que é consciente de suas limitações e que as reconhece, que está aberta ao mundo e aos processos inovadores que derivam de si mesma.  A questão de saber se aceitamos ou não na realidade o que emana do mundo é um problema contínuo. Para ilustrar esta questão com um exemplo simples: o terrorismo também tem origem no mundo. No entanto, a teoria radical precisa se converter em uma defensora do mundo. A nova forma de dominação — e, nesse sentido, a Escola de Frankfurt do início do século XX já não é mais uma forma de dominação a nível simbólico. A era das ideologias e das grandes cerimônias terminou. Hoje em dia, estamos a lidar com a dominação sobre a realidade. É por isso que o que está em jogo hoje é a luta contra a realidade — ou seja, a possibilidade de tornar a realidade mais frágil

CONTINUA NA PARTE 3

Referências:

 Boltanski, Luc (1987 [1967/1982]) The Making of a Class: Cadres in French Society, trans. Arthur Goldhammer, Cambridge: Cambridge University Press.

Boltanski, Luc (2012) Énigmes et complots: Une enquête à propos d’enquêtes, Paris: Gallimard.

Boltanski, Luc (2012 [1990]) Love and Justice as Competences, trans. Catherine Porter, Cambridge: Polity Press.

Boltanski, Luc (2013 [2004]) The Foetal Condition: A Sociology of Engendering and Abortion, trans. Catherine Porter, Cambridge: Polity Press.

Boltanski, Luc and Ève Chiapello (2005 [1999]) The New Spirit of Capitalism, trans. Gregory Elliott, London: Verso.Boltanski, Luc and Laurent Thévenot (2006 [1991]) On Justification: Economies of Worth, trans. Catherine Porter, Princeton, NJ: Princeton University Press.

Fraser, Nancy and Axel Honneth (2003) Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange, trans. Joel Golb and Christiane Wilke, London: Verso.

Habermas, Jürgen (1987a [1981]) The Theory of Communicative Action, vol. 1, Reason and the Rationalization of Society, trans. Thomas McCarthy, Cambridge: Polity Press.

Habermas, Jürgen (1987b [1981]) The Theory of Communicative Action, vol. Lifeworld and System: A Critique of Functionalist Reason, trans. Thomas McCarthy, Cambridge: Polity Press.

Honneth, Axel (1991 [1986]) The Critique of Power: Reflective Stages in a Critical Social Theory, trans. Kenneth Baynes, Cambridge, MA: MIT Press.

Honneth, Axel (1995 [1992]) The Struggle for Recognition: The Moral Grammar of Social Conflicts, trans. Joel Anderson, Cambridge: Polity Press.

Latour, Bruno (2004) ‘Why Has Critique Run Out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern’, Critical Inquiry 30(2): 225–248.

Marcuse, Herbert (2002 [1964]) One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society, New Edition, London: Routledge.

Moore, Barrington (1978) Injustice: The Social Bases of Obedience and Revolt, London: Macmillan.

Sennett, Richard and Jonathan Cobb (1993 [1972]) The Hidden Injuries of Class, London: Faber.

Notas:

[1] Ver Boltanski e Chiapello (2005 [1999]).

[2] No original, o termo é “personhood”, referindo-se a qualidade ou condição de ser uma pessoa.

[3] Ver Fraser e Honneth (2003).

[4] Ver Boltanski (2012 [1990]).

[5] Sobre este ponto, ver as várias contribuições para a West End: Neue Zeitschrift für Sozialforschung 2, 2008.

 

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