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Público, Socialização e Politização: Reler John Dewey na companhia de George Herbert Mead (Parte 2), por Daniel Cefaï

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Fonte: https://lepetitjournal.com/rome/rome-manifestation-contre-la-degradation-des-services-publics-243054

Por Daniel Cefaï[1]
Tradução: Luana Martins[2]

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Pluralidade e conflituosidade dos grupos e dos quadros de referência

Até agora, porém, raciocinamos como se esse Outro generalizado fosse uma instância de unificação bem integrada – como se a comunidade organizada, ao se refletirem nos Selves que a compõem, garantissem um consenso cognitivo e moral. Ora, a peculiaridade do público é ser irremediavelmente dividido, plural e conflituoso: a definição e o domínio de uma situação problemática só podem fazer suscitar divergências de pontos de vista, conflitos de interesses e de opiniões, oposições em termos de conhecimento e de avaliação. O público sempre se encontra fragmentado em múltiplas identidades coletivas, relativas a subgrupos de referências, cada um encarregado pela defesa de seus valores, de seus desejos e de seus interesses. A experiência pública é feita de “significados disputados”[3], enquanto se articula em torno das questões em disputa. O público impede um processo de desorganização social, assumindo o “controle da vida da comunidade[4]”, em relação a uma situação problemática. Ele é o equivalente funcional, na escala do “organismo social”[5], da consciência reflexiva que guia e regula o Self. Ele deve restaurar os hábitos sociais (nos “complexos de atividades”) e os significados sociais (no “universo do discurso[6]”). Ele o deve fazer integrando os conflitos e assegurando que os “impulsos de hostilidade e de antagonismo” e os “fatores de conflito e de desintegração” não prevaleçam[7]. O processo de publicização é ordenado em uma “arena pública” de perspectivas, plurais e conflituosas, que se refletem umas nas outras, num jogo de espelhos, como perspectivas sobre perspectivas ­– essa reflexividade coletiva se realiza, por sua vez, por meio de processos de socialização no[s] “fórum [s] de reflexão” entre Selves múltiplos que são as pessoas. O Outro generalizado não existe, então, como uma força transcendente, anterior e exterior aos atos sociais. Seu poder de unificação opera a partir da tensão entre vários grupos de referências e vários quadros de referências que, entre os dois extremos da exclusão recíproca e a fusão sincretista, entram em uma gama de interações tão diversas quanto a negociação de interesses ou o debate de opiniões, o processo judicial ou a controvérsia científica, a polêmica midiática ou a batalha política. O processo de publicização se reflete também, seja na deliberação coletiva, ao ar livre, seja na conversação interior, de si para si. A experiência pública é uma experiência pluralista: assim como os grupamentos de interesse e de opinião que se afrontam com o objetivo de definir e controlar uma situação problemática entram em acordo, apesar de suas diferenças, sobre questões comuns e sobre as regras do jogo, da mesma forma os indivíduos, ao afirmarem seus pontos de vista e defenderem suas crenças e seus ideais, são capazes de aceitar a possibilidade de outros pontos de vista, interesses e opiniões, e até certo ponto, de endossá-los e de incorporá-los em seus próprios pontos de vista.

Esse processo de publicização dá lugar a jogos de papéis complementares, alguns condenados a um destino efêmero nessa mobilização, enquanto outras prometem carreiras de institucionalização. Alguns desses papéis são pré-atribuídos por dispositivos de ação pública, por formatos de programação midiática ou por gramáticas da vida militante – autorizando, no entanto, variações sancionadas pelos participantes ou pelos auditórios. Outros se inventam ao longo do caminho – nos últimos anos, vimos surgir na Internet rostos de perfis de redes sociais, cidadãos investigadores, moderadores de chat, ou hackertivitas[8] engajados… Alguns, como os jornalistas[9], têm lugar privilegiado nas redes de comunicação e dão acesso a uma multiplicidade de situações distanciadas e a atitudes daqueles que participam delas. Alguns desses papéis são atribuídos aos seres abstratos: ao movimento feminista, às gerações futuras, à Terra ou à Paz… Multiplicando esses papéis a serem assumidos e mantidos, desempenhados e adotados, e fazendo cristalizar interesses comuns e identidades coletivas, e trazendo à tona pontos de disputa e de ideais a reivindicar, o processo de publicização tem fortes chances de modificar as hierarquias estabelecidas, de valorizar certas competências, poderes e estatutos e de invalidar outras. Consequentemente, ele produz novas simetrias e assimetrias de recursos e de informações, de poder e de prestígio, de prerrogativas e responsabilidades[10]; fixa novas linhas de controle e de resistência, de autoridade e de consentimento. Esse público é movido por dinâmicas de inovação. As minorias ativas embaralham os consensos cognitivos e morais e, por contágio, provocam as cadeias de pequenas mudanças, acabando por reverter convicções ou por criar instituições. Esse público faz surgir uma representação política. Os líderes emergem, portadores de um papel decisivo ou dotados de um gênio específico, que “traz[em] para o poder n mudanças produzidas nas comunidades por qualquer um de seus membros[11]”; e os representantes refletem, representando e simbolizando o público, “as atitudes organizadas da comunidade”[12]. Enfim, quando um problema público é reconhecido pelas autoridades públicas, os homens de Estado (statesmen) “mediatiza[m] as atitudes organizadas fazendo [sua] própria experiência universal, de tal maneira que os diferentes grupos entram em comunicação por meio de [sua] intercessão”[13]. O público produz o Estado. O problema público se torna, então, uma questão política, no sentido clássico do termo.

O “Nós”, se existe um “Nós”, do processo de publicização, ele não amalgama, portanto, os indivíduos em coletivos unânimes. Mead descreve o auge da experiência social na linguagem do êxtase coletivo da multidão ou da seita[14], que desfaz toda a inibição e conduz a uma fusão de Selves em uma mesma comunidade ou, na linguagem do sacrifício de si pela comunidade em tempos de guerra, na união sagrada contra o inimigo[15]. Porém, essa multidão é a antítese do público. A universalidade não é unanimidade. O público se conjuga no plural.

A emergência dos ideais, das imagens, e dos símbolos: O Trabalho da imaginação

As fricções entre Eu e o Mim, esse “censor”[16], se encontram nas
tensões sociais entre o culto da originalidade e o desejo de conformidade,
entre o alinhamento com as leis e as instituições e o desvio ou a desobediência. “Eu” é a fons et origo do que surge de novo na experiência, e a interação entre uma multiplicidade de “Eus” faz emergir novas significações e representações – um movimento que seria preciso analisar em conjunto com o que C. S. Peirce chama de momentos abdutivos e icônico da razão[17]. A “conduta imaginativa[18]” de uma configuração de Self em interação reconfigura o nexo de perspectivas de seu ambiente. O processo de publicização é um momento de exercício da imaginação coletiva. Ele acontece na intersecção de trocas cooperativas e comunicativas de membros do público: o cruzamento de perspectivas e das perspectivas sobre as perspectivas torna-se a fonte de criatividade de um agir coletivo[19]. Um processo experiencial, dando lugar a associações inéditas entre ideias, imagens e símbolos, mas também entre instituições, corpos e objetos, se inicia. Isso é também o que permite ao Self se colocar no lugar de outros e compreender as humilhações que eles sofrem, suas causas e suas razões: a imaginação está na raiz da ética. Por meio desse processo experiencial, os Selves dão origem a novos “universos de discursos”, correlativamente a “projetos sociais e empresas cooperativas[20]” e se orientam, de modo cooperativo, em direção aos problemas sociais. Eles tomam consciência de certas espécies de mal social e projetam a realização de soluções via reforma social[21]. O trabalho de imaginação coletiva é inerente a esse olhar, a esse dizer e a esse fazer coletivos.

Todas as formas de teorizar o público, de Tarde a Park e a Dewey insistem no seu caráter emergente. O público rompe com o passado e inaugura um futuro. Isso desorganiza hábitos e gera a “novidade”. Ele cria a “descontinuidade” na experiência[22]. É por essa razão que seria melhor falar de processos de “publicização”, passando para a forma verbal, ao invés de utilizar o substantivo “público”. A consequência é direta para a investigação sobre os públicos e os problemas públicos, que deve acima de tudo seguir os fluxos, apontar as transformações, restituir as gêneses. Ao mesmo tempo, Mead nos convida a levar em conta, na “passagem” (passage) ou no “sobreposição” (overlap) de cada presente sobre outro, uma “continuidade”, por meio da qual há “dependência” ou “condicionamento” de um acontecimento pelo o que o precede – mesmo que essa continuidade não se deixe colocar na equação. É somente sobre um fundo de ruptura no presente que se faz essa “reconstrução do passado” que faz emergir as relações de causalidade e que possibilita uma expectativa sobre o futuro, localizando na “passagem atual” do presente as forças que a preparam. Visto que aquilo que emerge comanda a “seleção de futuros e, portanto, os passados que são suas ditas causas”; “Nada está perdido, mas o que acontece e que é novo está, constantemente, gerando um novo passado”[23]. O “campo da experiência[24]”, onde se constitui um problema público, estende-se, então, para muito além dos limites da percepção imediata. Ele transcende os limites do presente e transborda (overflow) em direção ao passado e ao futuro. Nós apenas experimentamos um problema público nas “texturas” da memória e do projeto, reconstruindo a sua gênese de modo a identificar as cadeias de causalidade e de responsabilidade, em contraponto à previsão do desenvolvimento de consequências vindouras e da projeção de um modo de regulação ou de resolução. A inteligência efetivada no processo de publicização permite resolver, servindo-se de lições da experiência passada, as dificuldades que as ações ou os eventos atuais colocam em relação às suas consequências possíveis e ao seu controle que se crê ser possível projetar. Ela é a faculdade de imaginar as soluções a uma situação problemática à luz do passado como a prova do futuro.

Porém, esse processo experiencial autoriza toda sorte de distinções. Mead e Dewey esperam que o público seja orientado pela “ciência moderna”[25] no que ela organiza como um processo racional de reflexão e deliberação, de investigação e de experimentação. Contudo, a experiência pública longe de se deter à lógica de representações e de simbolizações científicas, também é nutrida por ideias, imagens e símbolos, que lhes dão sua energia utópica, e que podem induzi-la a erros em derivas ideológicas. Na escala da vida de um organismo individual, o papel das imagens e dos símbolos, provenientes da experiência passada e incorporados nas atividades perceptivas, é crucial na integração dos atos perceptivos, manipulatórios e cognitivos, e na abertura de um campo de experiência. Se passarmos ao registro público da experiência pública,  certo número de imagens e de símbolos escapa ao controle do que Mead chama de “método experimental[26]” ou o “método científico[27]” e importam muito, no entanto, para os atores. Sem dúvidas, para Mead e Dewey, a experiência pública deve se realizar se livrando das ilusões, mas ela não é exclusiva de significados disponíveis em um imaginário social, e também pode ser seduzida pela propaganda de cruzadas morais e políticas. A ação recorre a “termos” e faz “apelo a seus significados”, ativando também certas “respostas organizadas” que encarnam o “espírito da comunidade[28]”. Associar imagens ou símbolos – por exemplo, o imaginário do Cristianismo sobre Satanás[29] ou da Nova Jerusalém[30], ou todas as “visões” motrizes nos movimentos milenaristas ou nas utopias sociais – significa combinar as respostas com uma situação e a se projetar em uma ação em conformidade com as respostas. A experiência pública toma de empréstimo e retorna a um ambiente constituído por mitos, religiões ou ideologias, que tem os seus suportes materiais, suas garantias institucionais e suas consequências práticas. As configurações de imagens e de símbolos interferem na constituição dos problemas públicos e dos públicos que se relacionam com os problemas, e, ainda, intervêm nas provas de realidade, de direito e de justiça. Elas estão lá, no “campo de significados”, e, então, no “campo de ação”, no núcleo das transações dos humanos e de seu ambiente.

Poderíamos lembrar aqui dos “estereótipos[31]” mencionados por W. Lippmann, os “preconceitos” que deformam os julgamentos, que distorcem a investigação[32] e que estão frequentemente envolvidos em atitudes hostis. Esse é o caso, segundo Mead, quando o sentimento experimentado pelos indivíduos diante das suas “dificuldades de ajuste ou de adaptação social” é um “sentimento de superioridade e de oposição temporária aos outros indivíduos”. Mais do que a identificação mútua e coordenação benevolente, temos, então, oposições abertas de interesse ou de opinião, que podem se acompanhar de uma febre patriótica[33] ou religiosa[34] e suscitar o desejo de destruir o inimigo[35]. Essa hostilidade pode se nutrir de imaginários e de simbolismos da guerra santa ou nacionalista. De fato, o processo de publicização – no qual os progressistas creem na possibilidade e na eficácia, ao contrário do ceticismo de Lippmann – deve ser crítico com esses estereótipos e combatê-los com uma atitude racional, tanto do ponto de vista cognitivo quanto do normativo. As imagens e símbolos não têm somente o poder de impedir a cooperação e a comunicação, eles são, ainda, seus fatores. Mead explica, por exemplo, que os ideais universais foram inventados nos universos do discurso do Evangelho, da filosofia grega e do direito romano[36]. A possibilidade de “reconstruções sociais”[37] requer uma noção de “progresso”, ausente nas sociedades antigas e tradicionais. A democracia é, em si, uma “atitude” e se sustenta com a “fé” nas virtudes da vontade geral, da igualdade e da fraternidade expressas pelo “evangelho de Rousseau” durante a Revolução francesa[38], contrariando o regime feudal e corporativo que comandava a organização social da Idade Média. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, o “autogoverno”, “tornado o agenciamento principal do controle político da comunidade”, também tem o seu mito fundador na revolução americana[39]. Ele se colocou a favor de uma mudança de “cultura”, que moldou outra “consciência política” e que se incorporou em “hábitos políticos”[40]. A busca pela democracia é inseparável do imaginário das pequenas repúblicas dos Founding Fathers[41], de um forte sentimento da liberdade dos indivíduos e de uma grande desconfiança de todas as “éticas vindas do alto[42]” (ethics from above). A busca pelo bem público deve resultar de uma “inteligência implícita em seus atos”, sem fascínio por ideias absolutas, dependência de relações pessoais ou devoção partidária aos líderes[43]. O que se descobre ao ler Mead e Dewey é que a “organização racional” da vida pública, por meio de deliberações, de investigações e experimentações, também extrai sua possibilidade de um imaginário social e de uma “fé comum[44]”: sem ideais, tornados sensível e inteligível em imagens e símbolos, não há experiência reflexiva, e, portanto, também não há o público. O público, para existir, deve ocorrer em um campo emocional e avaliativo. Deve dar espaço a todos os seus membros potenciais, à maneira das “comunidades ideais das grandes religiões universais[45]”. Ele deve manter vivas as crenças na “flexibilidade do Estado” e a possibilidade de ampliar suas fronteiras em busca da “regulação dos conflitos sociais”. Ele, por fim, deve cultivar os valores cívicos e políticos do direito, da igualdade e da liberdade.

Uma ecologia material do processo de publicização

Concretamente, o problema público se temporaliza como “organização de diferentes perspectivas[46]” que produzem a associação, o laboratório ou o tribunal, o jornal ou a administração. Um conjunto de eventos fluentes que não cessam de “passar”, ele cristaliza e adquire uma “permanência” por meio de operações de sua constituição, que se entrelaçam umas nas outras. A “realidade presente” do problema público é uma “possibilidade”[47], um complexo de hipóteses de trabalho (working hypotheses[48]) colocadas à prova nas atividades coletivas. A experiência temporal da situação problemática, com seus ritmos, bloqueios e emergências, com suas séries de acontecimentos e suas linhas da ação, impõe-se aos membros do público e a seus “oficiais”. Ela tem a estrutura de um contraponto onde se embotam as perspectivas temporais próprias aos contextos tecnológico, eleitoral, judiciário, midiático, administrativo, científico, associativo… cada um com sua própria estrutura narrativa.

O processo de publicização não se produz “dentro da cabeça”, mas fora. As perspectivas que ele gera são dotadas de consequências. Elas se dão na organização prática das atividades, das ações e das interações sociais. O público emerge de suas transações com um ambiente do qual ele provém e transforma. Só se pode compreendê-lo a partir de seus pontos de ancoragem e apoio em uma situação problemática, e dos equipamentos materiais, das crenças práticas e das alavancas institucionais que ele desenvolve para resolvê-lo. Assim, o público se materializa nas configurações dos objetos que solicitam os membros da comunidade, exortando-os a adotar esta ou aquela atitude ou guiando-os na realização desta ou daquela conduta. As configurações dos objetos – que podem ser caixas de ferramentas, regras de direito ou organogramas de organizações, arranjos espaciais ou agendas temporais, equações formais, ideias normativas ou seres divinos – não são inertes. Elas constituem um “ambiente operatório”, que é o da definição e do controle das situações problemáticas; e elas contribuem para o ordenamento de formas de poder e de mudança, de cooperação e de comunicação.

Um dos erros frequentemente cometidos, tanto na interpretação de Dewey quando na de Mead, é o esquecimento da parte dos objetos e das atividades com os objetos e o fato de se aterem apenas à psicologia social da intersubjetividade. Ora, o processo de publicização é constantemente mediado pelos objetos. A situação problemática gira em torno de objetos: barras, garrafas, estradas e carros para dirigir alcoolizado, moléculas químicas, hospitais, orçamentos e equipamentos nas mobilizações pela saúde pública. Para defini-lo, existem outros objetos agenciados, fabricados ou ativados: satélites, sondas e observatórios, curvas estatísticas, modelos de previsão e técnicas de imagem, simpósios, postos de pesquisa e de investimentos públicos ou privados, para tornar sensível e comprovar o aquecimento climático. Para resolvê-lo, outros objetos entram em cena: medições de fluxos de rio, mapas de vigilância, planos de evacuação, estruturas hidráulicas e estações meteorológicas, prefeituras, apólices de seguro de caminhões de bombeiros, em redes de monitoramento e alerta e na gestão de risco de inundação. Todas as fases do processo de publicização são indissociáveis do universo de objetos e de complexos de atividades[49]. O exercício coletivo de uma inteligência encarnada, equipada e organizada[50] agencia reflexivamente na situação problemática, com o objetivo de resolvê-la, objetos que assumem o estatuto de condições, de fatos e provas, de ferramentas de mensuração, de evidências, de instrumentos de intervenção e de metas a alcançar.

Pode-se, portanto, dizer que o processo de publicização possui uma racionalidade no sentido em que ele organiza os meios em busca de realizar os fins. Porém, não no sentido utilitarista da teoria das escolhas racionais. Os fins estão nos meios: a descoberta progressiva daquilo que se objetiva se faz na reorganização progressiva da situação e de sua experiência, que configura as alianças, as hipóteses, os objetivos, os recursos e os instrumentos. Essa organização transforma a situação por meio de medidas sociais, econômicas, jurídicas ou políticas e a equipa de um ponto de vista cognitivo e normativo, de um conjunto de técnicas, de conhecimentos e de regras e de instituições. Novas “hipóteses de trabalho[51]” são elaboradas, testadas e discutidas. Elas incluem tanto predições científicas, normas jurídicas, “proposições de ação social[52]”, quanto visões políticas ou profecias religiosas. Elas se orientam em direção a novas finalidades, formando valores, gerando desejos e agregando interesses. A reforma social não é, de acordo com Mead, nada mais que a “aplicação da inteligência ao controle das condições sociais[53]”: ela é concebida como um “método experimental”, que visa, ao mesmo tempo, resolver os problemas concretos e promover mais igualdade, solidariedade e justiça. As hipóteses de trabalho são apenas provisórias, seu ajuste e sua validação dependem de discussões, de investigações e de experiências posteriores. A diferença em relação às ciências naturais é que os participantes do público são parte das condições e das consequências que eles buscam controlar e que sua “inteligência reflexiva” se aplica, portanto, às suas próprias condutas, atitudes e hábitos. Ao transformar seus ambientes, eles transformam a eles mesmos – não no sentido de uma regeneração da humanidade, mas no sentido em que, ao tocar no complexo de forças que moldam seus meios de vida, eles modificam a organização de seus impulsos, desejos e interesses, eles selecionam outras configurações de estímulos pertinentes para as suas atividades, eles reorientam os campos de suas transações com os outros e com os objetos e, portanto, os campos de experiência de suas vidas, pessoais e coletivas.

Provas normativas: A sociedade como ordem moral

A atividade coletiva que envolve o público só pode ser normativa. A experiência pública é orientada por critérios do bem e do mal, do justo e do injusto, do certo e do errado, do legal e do ilegal, do moral e do imoral, do legítimo e do ilegítimo. Essa é uma ideia comum tanto da filosofia pragmatista quanto da sociologia de Chicago: a sociedade humana é uma ordem moral. Viver em sociedade é desempenhar deveres, honrar obrigações, reclamar direitos, assumir responsabilidades, realizar julgamentos, agir definindo regras, discutindo valores, e se coordenando em torno de convenções, preocupando-se com as consequências dessa ou daquela decisão… Cada ato social, quando excede o círculo de hábitos, de usos e de convenções, gera toda uma gama de processos de “valoração[54]”, por meio dos quais os atores envolvidos refletem sobre o que lhes parece desejável e sobre o que eles se preocupam e se importam. A fortiori, quando se trata de atos sociais implicados em um processo de publicização: não são tanto dificuldades cognitivas que conduzem à formação e à resolução de problemas públicos quanto provas de avaliação das consequências problemáticas de certas atividades (consideradas nefastas para a comunidade), que dão origem a atividades de invenção normativa com o objetivo de resolver esses problemas (estabelecer convenções, afirmar direitos, por exemplo)[55]. R. Turner e L. Killian falavam a esse propósito de “emergência de normas[56]”, formuladas a prova da crítica e da reconstrução de uma situação problemática, rompendo com os costumes, os hábitos e as leis que prevaleciam até aquele momento na organização da experiência social[57].

Não há o público sem as provas de desgosto, de indignação ou de revolta que se revelam partilhadas por muitos selves em contato com uma ou outra situação, e a partir dela, sem reflexão coletiva, se mostram atravessadas por conflitos de perspectivas sobre o que seria bonito, bom, certo, justo ou legítimo em uma ou outra situação[58]. Isso começa com as apreciações imediatas da situação perturbadora e continua até os julgamentos avaliativos sobre a situação problemática. Essas operações de valoração têm um impacto que vai além da privacidade dos envolvidos: o caminho que leva da perturbação ao problema é o da sua objetivação em múltiplas modalidades (mensuração estatística, experimento científico, qualificação jurídica, investigação jornalística, deliberação cívica…), mas também da apreensão coletiva do que faz a natureza indesejável da situação e suas consequências, diretas ou indiretas. A “criatividade social do Self emergente[59]” se lança, assim, de forma que ele selecione um ambiente que o afete de volta e onde ele dirija as mudanças desejáveis em uma ação conjunta com outros. Os ideais e valores emergem em conflito com aqueles instituídos na comunidade, desafiando os “conjuntos de respostas organizadas” dos membros – desorientando-os, perturbando-os ou chocando-os até nos conjuntos de hábitos do que Mead chama de “Self inconsciente[60]”. Evidentemente, essas provas de valoração, ao contrário do Outro generalizado, não alcançam o consenso. Apenas há o público onde existem disputas em torno de valores ou de ideais, de seu mérito e de seu impacto, de sua formulação e de sua significação nos julgamentos, que estão ancorados nesse movimento de desorganização e reorganização dos Selves. Essas disputas se seguem em conflitos em torno da formação de normas morais e legais que lhes dão força – por exemplo, as regulamentações em matéria de dejetos públicos industriais (manutenção de um equilíbrio ecológico), convenções coletivas que determinam condições de trabalho (recuperação de uma economia moral) ou leis que interditam formas de assédio sexual (erradicação da dominação masculina).

Um exemplo é dado por Mead com a criação de um direito de relações internacionais no seio da Liga das Nações[61], quando a comunidade internacional, recomposta após a prova da Grande guerra, constitui-se como um público, que resolve o problema da regulação das hostilidades nacionalistas e da manutenção de um estado de paz[62]. Esses requisitos normativos não fazem parte de uma moralidade abstrata ou de um direito abstrato. Tanto a ética quanto o direito estão ancorados na experiência dos limites da guerra e da diplomacia e progridem pela experimentação de uma nova ordem institucional. Eles revelam menos uma arbitragem entre princípios abstratos do que uma arte de identificar, explorar, valorizar e desenvolver as possibilidades de ação nesta ou naquela situação. Eles pressupõem a possibilidade de transformar as atitudes e as respostas a essas atitudes no jogo social regulado[63], e assim de redistribuir os sistemas de papéis, de direitos e de responsabilidades e de rearranjar as configurações de práticas, de instrumentos e de instituições. Dito de outra maneira, a capacidade de “reformar a ordem das coisas e [de] exigir o aperfeiçoamento dos padrões da comunidade[64]” acompanha a capacidade de criticar o desprezo, a injustiça, a indecência e de reivindicar a liberdade, a justiça e a dignidade.

Contudo, os valores e ideais não estão suspensos no vazio. Eles se formulam em julgamentos avaliativos, mas eles também possuem uma inscrição material na formação de desejos, interesses e de finalidades no manejo das situações problemáticas. Eles se constituem em um agir criativo, que se institucionaliza em novos ambientes, enraizando-se nas apreciações imediatas das intenções, ações ou eventos no jogo de interações ordinárias. Eles participam da experiência pública, indissociavelmente afetiva, sensível e moral, dessa comunidade política em ação, que é o público, rearticulando as crenças, as atitudes e os hábitos que fazem dos Selves seus membros. Mead oferece aqui um precioso contraponto a Dewey, para compreender o arco das atividades coletivas que conduz as apreciações imediatas aos julgamentos avaliativos, por meio de múltiplos debates, investigações e experimentações que realizam o processo de publicização.

Notas e Bibliografia:

[1] Sociólogo, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris e pesquisador do Centre d’Étude des Mouvements Sociaux (CEMS-EHESS). O autor agradece muito Luana Martins e Diogo Corrêa pelo trabalho de tradução e edição.

[2] Mestra em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal Fluminense, Niterói.

[3] J. Gusfield, Contested Meanings: The Construction of Alcohol Problems, Madison, University of Wisconsin, 1996 – e notadamente, cap. 2 (nova edição de “Constructing the Ownership of Social Problems : Fun and Profit in the Welfare State”, Social Problems, 1989, 36, p. 431-441 tradução em francês em D. Cefaï, C. Terzi (sob a direção de), L’Expérience des problèmes publics, Paris, Éditions de l’EHESS, 2012, p. 113-132).

[4] G. H. Mead, Movements of Thought, op. cit., cap. 16, p. 360 sq: “The problem of society – how we become Selves.

[5] Ibid.., p. 373.

[6] Ibid., p. 380.

[7] G. H. Mead, MSS, p. 303-304.

[8] Do original “hacktiviste”, em francês, sem correspondência específica no português, construído por meio da união da palavra “hacker” com “ativista” (N.T.).

[9] MSS, p. 257.

[10] J. Gusfield, Symbolic Crusade: Status Politics and the American Temperance Movement, Urbana, University of Illinois Press, 1963.

[11] G. H. Mead, MSS, p. 216.

[12] Ibid., p. 187.

[13] Ibid., p. 257.

[14] Ibid., p. 207.

[15] O sacrifício de si é a única forma de “alcançar um sentido emocional de valor da sociedade da qual somos membros. Devemos perder nossas vidas para salvá-lo?” (“How Can a Sense of Citizenship be Secured?”, Special Collections JRL, Mead Papers, sem data, 11 folhas, accessível no Mead project).

[16] G. H. Mead, MSS, p. 210 e p. 255 nota 1.

[17] Charles S. Peirce, Collected Papers of Charles Sanders Peirce, vol. 5, Cambridge, Harvard University Press, 1934

[18] G. H. Mead, MSS, p. 370.

[19] H. Joas, Creativity, op. cit., 1999.

[20] G. H. Mead, MSS, p. 157.

[21] G. H. Mead, The Individual and the Social Self: Unpublished Work of George H. Mead, editado por D. L. Miller, Chicago, University of Chicago Press, 1982, p. 97.

[22] G. H. Mead, “The Nature of the Past”, in F. Adler et alii (ed.), Essays in Honor of John Dewey, On the Occasion of his Seventieth Birthday, October 20, 1929, New York, Henry Holt, 1929, p. 235-242.

[23] G. H. Mead, Philosophy of the Act, op. cit., p. 616.

[24] G. H. Mead, MSS, p. 340.

[25] G. H. Mead, Movements of Thought, op. cit., cap. 13.

[26] G. H. Mead., “History and the Experimental Method”, in Philosophy of the Act, op. cit., Essay 6, p. 92-100.

[27] G. H. Mead, Movements of Thought, op. cit., p. 362.

[28] G. H. Mead, MSS, p. 268.

[29] Ibid. p. 220.

[30] G. H. Mead. “Experimentalism as a Philosophy of History”, in The Philosophy of the Act, op. cit. Essay 28, em particular p. 508-519; e Movements of Thought in the Nineteenh Century, op. cit. p. 176, 248 e 362.

[31] Walter Lippmann, Public Opinion, New York, Macmillan, cap. 15, part. 4, 1922.

[32] Ibid., p. 54-58 e p. 120.

[33] G. H. Mead, MSS, p. 207-208.

[34] Ibid., p. 281-282.

[35] Ibid., p. 286.

[36] Mead nota que as representações da universalidade da religião ou da economia (ibid., p. 281) e seguintes) podem, além disso, serem difundidas pela propaganda.

[37] Ibid. p. 293-294.

[38] Ibid., p. 286-287.

[39] Ibid., p. 267.

[40] G. H. Mead, “The Philosophies of Royce, James and Dewey in their American Setting”, op. cit., p. 212.

[41] Em inglês, no original. (N.T.)

[42] G. H. Mead, ibid., p. 230-231. Uma vez que “não há sublimação do indivíduo na estrutura da sociedade”, os americanos não têm o “sentimento de reverência por uma ordem social pré-existente, onde devem tomar seu lugar e eles devem preservar os valores”.

[43] G. H. Mead, MSS, p. 313-314.

[44] J. Dewey, A Common Faith, 1934.

[45] G. H. Mead, MSS, p. 316.

[46] G. H. Mead, “The Objective Reality of Perspectives”, in Philosophy of the Present, op. cit. p. 165.

[47] Ibid., p. 173.

[48] Em inglês, no original (N.T.)

[49] Nós retomamos as expressões de H. Blumer, “Objetos”, op. cit. Este descreve bem que “O significado está no campo de ação” em relação às atitudes que os atores são “preparados”, treinados, equipados, acostumados a ter (p. 44-44); e fala de “carreiras ou histórias” de objetos (p. 46), diretamente relacionadas ao processo de “interação social”, e, portanto, de “mudança social” (p. 47). Ele estava, então, muito mais próximo de Mead do que certas leituras interacionistas que foram feitas a partir de então.

[50] J. Dewey, Public and Its Problems, op. cit., cap. 6.

[51] G. H. Mead, “The Working Hypothesis in Social Reform”, American Journal of Sociology, 1899, 5, p. 367-371, aquí p. 370.

[52] J. Dewey, Public and Its Problems, op. cit., p. 308.

[53] G. H. Mead, “The Working Hypothesis in Social Reform”, op. cit., p. 370.

[54] Sobre essa noção, ver J. Dewey, Theory of Valuation, 1939.

[55] Como apontado por Hans Joas, Gary A. Cook ou Louis Quéré, estamos longe da exigência de esclarecimento e refundação normativa dos princípios éticos pela pragmática comunicativa de Habermas ou Apel.

[56] Ralph Turner, Lewis Killian, Collective Behavior [1957], Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1993.

[57] Sobre concepções de criatividade: H. Joas, Creativity, op. cit., cap. 4 para aplicações de uma visão de “democracia criativa”.

[58] De um ponto de vista normativo, Mead atribui a Dewey “quatro definições do fim moral: a realização da individualidade, o cumprimentos das funções específicas, a satisfação de interesses e a realização de uma comunidade de indivíduos” – com o quarto fim, de ordem “sociológica”, “a ética de Dewey é a casa em seu ambiente social”, in G. H. Mead, “The Philosophy of John Dewey”, art. cit., p. 70. O “fim moral”, por último, a “plenitude da vida individual” só se realiza em uma “comunidade de indivíduos”. O público encarna esse ideal. Tanto para Dewey quando para Mead, a democracia é a melhor forma de vida e um governo para alcançá-lo.

[59] G. H. Mead, MSS, p. 214.

[60] Ibid. p. 163.

[61] Société des Nations, no original (N.T.)

[62] Ibid., p. 220 e p. 287.

[63] Ibid., p. 152

[64] Ibid., p. 168.

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