
Por Bruno Latour
Tradução: Lucas Faial Soneghet
Esse post é a continuação da série Irreduções, cuja terceira parte pode ser encontrada nesse link. Nesse post terminamos o Capítulo 2 – Sociológicas.
2.5.5 Nós não podemos nos libertar dos poderosos através do “pensamento”, mas nós nos libertaremos do poder quanto transformarmos “pensamento” em trabalho.
- As expressões coloquiais que usamos para o trabalho do pensamento (queimar a mufa, usar os miolos, mastigar ideias) não são metáforas, mas apontam para o trabalho de mãos e corpos comuns a todos os ofícios. Por que é que o ofício do pensamento, então, diferentemente dos outros, é considerado não manual? Porque do contrário teria que abrir mão do privilégio de ir para fora de suas redes. Não seria mais capaz de se estender sobre a prática simples dos comerciantes (2.1.7.2). Todos preferem colocar intelectuais a parte (mesmo que para ridiculariza-los) do que reconhecer seu trabalho. Mesmo que os crentes não se beneficiem dessas viagens gratuitas, eles não querem que outros sejam privados do privilégio de flutuar do lado de fora do tempo e do espaço.
2.5.6 Não há diferença entre aqueles que reduzem, de um lado, e aqueles que querem um suplemento de alma, do outro. Os dois grupos são iguais. Quando reduzem tudo a nada, sentem que todo o resto os elude. Então buscam se segurar no resto com “símbolos”.
- O simbólico é a mágica daqueles que perderam o mundo. É a única forma que eles têm de manter a “atmosfera espiritual” “em adição” a “coisas objetivas” sem que a qual as coisas seriam “somente” “naturais”.
2.5.6.1 Podemos ter certeza de que quando eles falam de símbolos, estão tentando viajar sem pagar. Estão tentando se mover sem sair de casa, ligar dois actantes sem caminhões, sem gasolina e sem rodovia.
- Aqueles que falam de comportamento “simbólico” deveriam ser estudados como magos. Eles dizem que a mágica apreende através de palavras aquilo que não pode ser alcançado pela “prática eficaz”. Mas essa definição deveria ser aplicada a eles mesmos. Incapazes de apreenderem forças através de suas provas, eles inventam “símbolos” que não custam nem consomem nada “em adição a realidade”.
2.5.6.2 Visto que tudo que resiste é real, não pode haver um “simbólico” a ser adicionado ao “real”. Nada falta aos actantes antes de adicionarem “símbolos” a eles. Sendo assim, se pararmos de reduzi-los, essa adição supérflua, por sua vez, se torna nada.
- Se nos libertássemos do simbólico, o “real” seria devolvido a nós. Estou pronto para aceitar que peixes podem ser deuses, estrelas ou comida, que peixes podem me deixar doente e desempenhar papeis diferentes em mitos de origem. Eles vivem suas vidas, nós vivemos as nossas. De fato, nossas vidas se sobrepuseram e usaram umas as outras por tanto tempo que há um Jônatas em cada baleia e baleias em cada página de Melville. Quem vai parar as traduções de pesca, oceanografia, mergulho – de tudo que nós e os peixes usamos para tomar medidas uns dos outros? Essa pessoa ainda não nasceu (Interlúdio IV). Aqueles que desejam separar o “simbólico” de sua contraparte “real” deveriam ser eles mesmos separados e confinados (3.0.0).
2.5.6.3 Nós não sofremos da falta de uma alma. Sofremos, do contrário, de muitas almas perturbadas que nunca tiveram um enterro decente. Elas vagam por aí em plena luz do dia como fantasmas miseráveis. Quero exorcizar essas almas e convence-las a nos deixar em paz com os vivos.
2.6.1 Toda pesquisa sobre fundamentos e origens é superficial, pois busca identificar algumas enteléquias que potencialmente contém outras. Isso é impossível. Se desejarmos ser profundos, devemos seguir forças em suas conspirações e traduções. Devemos segui-las, aonde quer que forem, e listar seus aliados, não importa o quão numerosos e vulgares eles sejam.
- Aqueles que buscam por fundamentos são reducionistas por definições e tem orgulho disso. Eles estão sempre tentando reduzir o número de forças a uma força a partir da qual todas as outras podem ser derivadas. Quanto mais sucesso tiverem, mais insignificante a força escolhida se torna. O mais profundo é também o mais superficial. Se assim fosse, poderíamos muito bem considerar a Rainha Elizabeth como o Reino Unido, ou a primeira frase (1.1.1) como todo esse texto.
2.6.2 Aqueles que tentam possuir o que não tem (1.5.1), ser o que não são, e reduzir o que não se reduz são desafortunados, porque possuem potência somente potencialmente e tem uma teoria só em teoria.
- Agora somos capazes de chegar a uma moral menos provisória (1.2.13). Não tentaremos perseguir origens, reduzir práticas a teorias, teorias a linguagens, linguagens a metalinguagens, e assim por diante, da forma descrita no Interlúdio I. Trabalharemos com tanto privilégio e responsabilidade como qualquer um, em redes estreitas que não podem ser reduzidas a outras. Como todos os outros, procuraremos por aliados e aberturas, e às vezes encontraremos. “Essa não é uma moral muito ampla, não é?” De fato: ela não nos leva muito longe. Ela se recusa a ir em espírito para lugares onde está ausente. Quando se move, paga o que deve. Não tentaremos mais imitar o Titã e carregar o mundo em nossos ombros, esmagados pela tarefa infinita de entender, estabelecer, justificar e explicar tudo.
2.6.3 Porque não há significado literal ou figurativo (2.2.2), nenhum uso de uma metáfora pode dominar outros usos. Sem propriedade, não há impropriedade. Cada palavra é precisa e designa exatamente as redes que traça, cava e para as quais viaja. Já que nenhuma palavra reina sobre as outras, estamos livres para usar todas as metáforas. Não precisamos ter medo que um significado seja “verdadeiro” e outro “metafórico”. Há democracia, também, entre palavras. Precisamos dessa liberdade para derrotar a potência.
2.6.4 Assumir um domínio, limpá-lo e depois absorve-lo em outros nem sempre é interessante. A tradição define como filósofos aqueles que estão sem domínio, sem propriedade, sem temática, ou mesmo aqueles que não sabem do que falam. Para entender o que eles fazem, precisamos ficar sem eles? O que se passa então? Nada, exceto que não poderíamos ir de um domínio a outro, uma vez que cada província, que é um mundo inteiro, cobriria todo o horizonte. A filosofia só dá espaço e tempo, fazendo com que haja outros domínios e províncias, e outros mais, incomensuráveis, que deveriam ser pesquisados.
2.6.5 Há duas maneiras de revelar forças. Primeiro, podemos dizer que há forças, de um lado, e outras coisas, do outro. Isso significa negar o primeiro princípio (1.1.1). Dessa forma, equivalências “reais”, trocas “reais” e essências “reais” são obtidas, e o mundo é ordenado começando dos mestres (príncipes, princípios, representativos, origens, fundamentos, causas, capital) e descendendo até os dominados (inferidos, explicados, deduzidos, comprados, produzidos, justificados, causados). Na segunda maneira, podemos sustentar o primeiro princípio até o fim. Se o fizermos, não há mais equivalências, reduções ou autoridades a não ser que o preço apropriado seja pago, e o trabalho de dominação seja feito público.
- A primeira maneira de trabalhar é religiosa em essência, monoteísta por necessidade e Hegeliana por método. Ela reduz o local ao universal e estabelece potência. Ela tem como abjeta a mágica, mas mesmo assim imita seus métodos. A segunda maneira de trabalhar torna local o que é local e desconstrói potência. Ela leva ao ceticismo sobre todas as mágicas, incluindo a nossa.
Interlúdio III: Escapando de uma contradição que, na opinião do autor, poderia ter deixado o leitor perplexo
Como podemos dizer que nada é por si só redutível ou irredutível (1.1.1) e então dizer que não há nada além de provas de força (1.1.2)? É importante entender esse paradoxo. Se uma coisa pode conter outra – potencialmente, idealmente, implicitamente – então há verdadeiramente algo mais do que provas de força: um suplemento de alma, um deus vivo, príncipes coroados ou teorias encarregadas do mundo. Certos lugares se tornam tão grandes que outros a ponto de inclui-los “implicitamente”. Eles se tornam impressionantes, majestosos, sagrados, intoxicantes, brilhantes, e então trazem com eles todos os impedimentos do terror. Aqueles que acreditam ser possível reduzir um ator a outro repentinamente se encontram enriquecidos por algo que vem do além: além dos fatos, a lei; além do mundo, o outro mundo; além da prática, a teoria; além do real, o possível, o objetivo, o simbólico. É por isso que reducionismo e religião caminham de mãos dadas: religião religiosa, religião política, religião científica.
Obviamente é estimulante acreditar que um ator pode conter os outros porque assim começamos a crer que “sabemos” alguma coisa, que há equivalências, que há deduções, que há um mestre, que há lei e ordem. Nós temos duas panelas no fogo, o real e o possível. Assim podemos nos tornar invencíveis, já que somos capazes de atacar “en double”, como as bruxas da Costa do Marfim. Uma “prova de força” nunca pode ser desfavorável a nós, visto que quando perdemos, ainda podemos estar certos.
Se adotarmos o princípio posto e tentarmos ver até onde podemos chegar negando essa distinção, então temos que afirmar, por contraste, que nada reduz nada a coisa alguma. Mesmo assim, será dito, coisas estão ligadas; elas formam caroços, corpos, máquinas e grupos. É claro que não se pode negar isso. Mas que tipo de relações as mantém juntas? Não há equivalências “naturais”, logo só podem ser de um tipo: de tentativa e erro, de prova, de tentativa, de tradução. Assim que o princípio da irreducibilidade é aceito, é necessário admitir essa primeira redução: não há nada mais do que provas de força. A distância entre atores nunca é removida; nem a distância entre palavras. E se há equivalências, então devem ser vistas como problemas, milagres, tarefas e resultados custosos.
Assim não há paradoxo. Há duas formas consistentes de falar. Uma permite redução e constrói o mundo começando pela potência. O outro não permite essa redução inicial e então manifesta o trabalho que é preciso para dominar. A primeira abordagem é reducionista e religiosa; a segunda é irreducionista e irreligiosa.
Por que devemos preferir a segunda em vez da primeira Ainda não sei, mas não gosto de poderes que queimam muito além das redes de onde vem. Não gosto da verborragia, do exagero e da saturação que leva a uma falta de tempo e falta de espaço para respirar. Preferia ver o fino filamento incandescente em todas essas chamas, como se estivesse atrás de uma máscara de soldador. Quero reduzir os reducionistas, escoltar os poderes de volta para as galerias e redes de onde vieram. Quero localiza-los em gestos e em trabalhos que usaram para se estenderem. Quero evitar dar a eles a potência que os deixa dominar mesmo em lugares onde nunca estiveram.
Se escolhermos o princípio da redução, temos superfícies limpas e planas. Mas já que há muitas superfícies, elas devem ser ordenadas, e já que cada uma ocupa todo o espaço, então elas lutam umas com as outras. É necessário pesquisar suas fronteiras. Sempre resumindo, reduzindo, limitando, apropriando, colocando em hierarquias, reprimindo – que tipo de vida é esse? É sufocante. Para escapar, devemos eliminar quase tudo, e tudo que restar cresce todo dia, como as hordas bárbaras cercando Roma.
Se escolhermos os princípios da irredução, o que temos? Podemos descobrir redes entrelaçadas que às vezes se juntam e às vezes se entretecem umas nas outras, sem se tocarem durante séculos. Há espaço. Há vazio. Especialmente, há espaço vazio. Não há mais acima ou abaixo. Nada pode ser colocado numa hierarquia. A atividade daqueles que hierarquizam é feita visível e ocupa pouco espaço. Não há mais enchimento entre as redes, e o trabalho daqueles que fazem esse enchimento ocupa pouco espaço. Não há mais totalidade, logo, não há mais resto. Os lugares são exatos, sem excesso ou fraqueza. Acho que a vida é melhor nesse mundo.
CONTINUA NA PARTE 5
Referência:
LATOUR, Bruno. The pasteurization of France. Harvard University Press, 1993.
LATOUR, Bruno. Les microbes, guerre et paix: Irreductions. AM Métailié, 1984.
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