
Por Graham Harman
Tradução: Thiago Pinho
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C. Irreduções
Colocado de um modo mais simples, as duas faces da realidade são a natureza autônoma dos actantes e sua habilidade para influenciar um ao outro. O sol é quente, mas ainda não nos fritou; a gravidade de um buraco negro afeta o universo inteiro, mas não tem ainda sugado o cosmos dentro de um único ponto de compressão; o tsunami de 2004 destruiu os resorts de praia e milhares de pessoas, mas não aniquilou o mundo; a al-Qaeda e a suposta superpotência norte-americana são ambas frágeis. Objetos se escondem por trás dos firewalls, mas não inteiramente. Eles permanecem porosos e vulneráveis um ao outro. ‘Leibniz estava certo ao dizer que as mônadas não têm nem portas nem janelas, pois elas nunca saem delas mesmos. Contudo, elas são peneiras, pois negociam intensamente sobre suas fronteiras, sobre quem os negociadores serão, e sobre o que eles devem fazer.’[1] Essa perpetua necessidade de equilibrar substância e relação, ator e rede, é o dilema central de toda filosofia que já existiu ou irá existir. O modo de Latour de encarar esse dilema é pelo princípio de irredução, como foi estabelecido claramente no primeiro aforismo de seu tratado: ‘Nada é, por si mesmo, ou redutível ou irredutível a qualquer coisa.’[2] Nosso mundo é preenchido com nós de concretude, com santuários incluindo coisas individuais. Mas nenhum deles repousa fora do grande jogo de relações, como no segundo aforismo: ‘Existem apenas testes de força, de fraqueza. Ou de forma mais simples, existem apenas testes’.[3] As coisas não começam unificados, mas eles podem assim se tornar, como no terceiro aforismo: ‘Tudo pode ser feito para ser a medida de todas as coisas.’[4] Finalmente, no quarto aforismo, esses pensamentos são combinados em uma teoria geral da resistência: ‘Não importa o que aconteça, o julgamento é real. O verbo “resistir” não é uma palavra privilegiada […] Nós poderíamos também dizer “coagular”, “dobrar”, “obscurecer”, “afiar”, “deslizar”. Existem dezenas de alternativas.’[5]
Embora um actante resista a toda redução, ele pode ser reduzido- contanto que o trabalho adequado seja feito. Para Latour não existe tal coisa como um actante inteiramente retirado do caminho do mundo. Nem o conhecimento humano magicamente transcende o mundo, como era ainda a esperança de Heidegger: ‘Nenhuma força pode, como frequentemente colocam, ‘conhecer a realidade’, exceto através da diferença que ele cria ao resistir outros… Nada é conhecido- apenas feito[6]’[7] [Itálico adicionado.] Assim como o tão chamado conhecimento humano permanece unido ao mundo e não pode pular além ou sobre esse mundo, o mesmo é verdadeiro com os actantes em geral. Ele não nos dá uma teoria da substância, ou um substrato resistente por baixo do filme das relações transitórias. De fato, mesmo enquanto resiste, um objeto inclui todos seus supostos acidentes e relações:
Tudo acontece apenas uma vez e em um local. Se existem semelhanças entre actantes [ou entre diferentes momentos temporais do mesmo actante- G.H[8]], isso é porque eles têm sido construídos com muito custo. Se existem equivalências, isso é porque eles têm sido construídos através de bits e pedaços com muito trabalho e suor, e porque eles são mantidos pela força. Se existem trocas, essas são sempre desiguais e custa uma fortuna tanto para estabelecer, quanto para manter. Eu chamo isso de ‘princípio de relatividade’. Assim como para um único observador se comunicar com outro mais rápido do que a velocidade da luz, o melhor que pode ser feito entre actantes é traduzir um no outro.[9]
Pela mesma razão, nós nunca podemos dizer que uma camada da realidade está já contida em uma camada mais profunda ou meramente derivada dela. A total concretude de tudo o que existe, ao fundir a oposição tradicional entre substância, por um lado, e o acidente/relação, por outro, assegura que cada camada de realidade é tão real quanto a infinita cadeia de avós dos quais descendem e os incontáveis herdeiros que produzem. Uma batalha é tão real quando átomos, e as músicas de Johann Strauss são tão reais quanto seu DNA. Isso tem ao menos duas consequências. Primeiro, toda tentativa de explicar coisas por suas origens é uma jornada de tolo: ‘toda pesquisa sobre origens e fundações é superficial, já que espera identificar algum [actante] que potencialmente contém os outros. Isso é impossível. Se nós desejamos ser profundos, nós temos que seguir forças em suas conspirações e traduções.’[10] Segundo, existe o familiar princípio de que nós nunca alcançamos uma etapa final de uma matéria primeira da qual tudo mais é construído. O universo de Latour não leva em consideração nenhuma marca de átomo filosófico, não importa qual seja. Continuando com esse remix atonal de Leibniz, ele escreve que ‘não importa quão longe nós vamos, há sempre formas; dentro de cada peixe há oceanos cheios de peixes. Alguns acreditam ser os moldes enquanto os outros são o material cru, mas isso é uma forma de elitismo.’[11] Nesse aspecto, a filosofia de Latour pode ser lida como uma monodologia sem mônodas indestrutíveis. Um tecido e uma cadeia de peneiras infinitas surgem e desaparecem por toda a totalidade do mundo.
D. Tradução
Um actante confronta outro apenas pelo artifício da tradução ou negociação. Não seja enganado pela linguagem antropomórfica: não é simplesmente uma questão de transformar Kafka para o espanhol, produzindo uma encenação budista do anel de Wagner[12], barganhando taxas de troca estrangeiras, ou mesmo um assunto de extração de pesadas moléculas de água de uma massa do tipo normal. Tradução não é uma característica especial dos humanos, mas o núcleo das relações em geral, mesmo na esfera inanimada:
O que [é dito] de textos pode ser dito de todas as fraquezas. Por um longo tempo muitos tem concordado que o relacionamento entre um texto e outro é sempre um assunto para interpretação. Por que não aceitar que isso é também verdade entre os tão chamados textos e os tão chamados objetos, e mesmo entre os tão chamados objetos em si mesmos?[13]
Esse ponto vale sempre repetir, dado a completa negligência das relações inanimadas na filosofia contemporânea. O Copernicanismo[14] enviesado de nosso tempo ainda reduz basicamente toda a metafísica a uma teoria do conhecimento humano, mesmo quando é animada com um elegante giro pós-moderno.
Tradução sempre cria uma assimetria entre antes e depois, já que nada pode nunca inteiramente ser restaurado para sua forma prévia:
Aja como você desejar, contanto que isso não possa ser facilmente desfeito. Como resultado do trabalho dos actantes, certas coisas não retornam aos seus estados originais. Uma forma é estabelecida, como uma ruga… uma armadilha, uma alavanca, uma irreversibilidade… A palavra exata não importa, contanto que designe uma assimetria. Há vencedores e perdedores, há direções, e algumas são mais fortes que outras.[15]
Nenhuma entidade é perfeitamente conservada enquanto é deslocada de um lado da realidade ao outro: ‘Tudo é traduzido… Nós podemos ser entendidos, isto é, rodeados, distraídos, traídos, deslocados, transmitidos, mas nós nunca somos entendidos bem. Se a mensagem é transportada, então ela é transformada.’[16] Já que um actante existe apenas em um lugar e em um momento, traduzir um objeto realmente significa que nós nos voltamos para um novo objeto. Há um relacionamento meramente frouxo não apenas entre as versões grega e latina de Platão, mas também entre o próprio Platão com as ideias de dez e cinquenta anos, e mesmo Platão no nascer do sol e o de 12:00 do mesmo dia. Para Latour, como para Whitehead, a completa concretude de cada entidade nos proíbe de falar de um núcleo substancial imutável nas coisas. No máximo, há entidades análogas que alguém pode fracamente considerar como pertencente à mesma ‘trajetória geral’. Nos termos de Whitehead, uma entidade não é uma persona imutável que atravessa aventuras no tempo e no espaço. Ao invés disso, ela é fixa, congelada, enraizada em um singular milieu que sempre desaparece muito rápido. A lei do cosmos é um perpétuo perecimento.
Já que não existe um interior monástico nas coisas, mantido em castidade e afastado das corrupções do mundo, nós também não podemos dizer que uma coisa tem qualquer poder misterioso ou em potencial. Embora um actante nunca seja inteiramente superado pela força de seus vizinhos, é ainda inteiramente mundano, completamente expresso, de algum modo, no aqui e agora. Nós não podemos dizer que um carvalho está contido potencialmente numa semente, já que isso nos pouparia do trabalho de seguir as series de transformações de risco pelas quais a semente e cada uma de suas análogas sucessoras procuram seus respectivos destinos. Como Latour colocou, apenas metade como uma piada: ‘nós podemos também dizer que as proposições da Ética de Espinosa estão todas inclusas na primeira proposição, ou que a sobremesa está contida na entrada’.[17] Deste modo, ‘potencialmente’ mostra ser um recurso barato para aqueles que gostam de dizer que eles sabiam desde sempre, sabiam que coisas chegariam a esse ponto, sem ter de negociar com cada uma das transformações do começo ao fim, do mesmo modo como bons contadores de histórias fazem. ‘Potencialmente’ é para a filosofia o que a “história whig”[18] é para a história. Apelar para uma potência mágica não é menos absurdo que um Gibbon[19] ter terminado seu amplo trabalho sobre o declínio de Roma com a frase: ‘Remo e Rômulo devem ter sabido que isso chegaria até a esse ponto’ Um bom historiador, não menos que um bom filósofo, geómetra, designer de armas, chef, procriador de cães, ou amante, devem estar conscientes da incerteza perigosa de cada estágio intermediário.
Talvez de forma mais controversa, Latour estende a mesma observação para o terreno da lógica. Mesmo nesse reino tão santificado, ele sustenta que os estágios de uma dedução devem ser vistos como uma série de possíveis deslocamentos arriscados de axiomas rumo a uma conclusão. ‘Nunca existiu tal coisa como uma dedução. Uma sentença segue a outra, e então uma terceira afirma que a segunda estava implicitamente ou potencialmente já na primeira.’[20] Da mesma maneira, ‘quando muitas sentenças diferentes tem sido feitas de forma equivalente, elas se encontram todas dobradas dentro da primeira, da qual é dito que essa “implica todas as demais”’.[21] Latour insiste nesse ponto de um modo hilário, e com quase uma deliberada provocação:
Isso é por que ‘lógica’ é um ramo de trabalhos públicos. Nós não podemos dirigir um carro na linha de metrô mais do que nós podemos duvidar das leis de Newton. As razões são as mesmas em cada caso: pontos distantes têm sido conectados por caminhos que eram estreitos primeiramente e então foram alargados e propriamente pavimentados.[22]
Nesse sentido, é inteiramente claro o porquê Latour acrescenta que ele não acredita nem em ‘teorias’ nem em ‘sistemas’. Uma teoria é apenas outro agenciamento que tem sido cuidadosamente unido dentro de um exército de actantes, cada um deles, no começo, resistindo à teoria de alguma forma. Foi trabalhoso para Maxwell mostrar que a eletricidade e o magnetismo se pertencem, mas também foi trabalhoso trazer a Eslovênia para a União Europeia, a filosofia islâmica para a França medieval, seu melhor amigo para sua vida, e uma pasta de dente para fora de um tubo. O mesmo se aplica para os ‘sistemas’. É fácil para nós agora dizer que os estágios da ciência da lógica de Hegel seguem ‘logicamente’ um ao outro. Mas imagine todos os anos gastos pelo pobre e isolado Hegel para descobrir tudo que estava ‘implicitamente contido’ nesse primeiro enunciado- todo o café, o mal humor, o encorajamento dos colegas, a tinta e o papel necessários para traduzir o imediato indeterminado do ser em 700 páginas de uma galeria ousada de conceitos faiscantes.
E. Associações
Nenhum actante é inerentemente forte ou fraco. Ele apenas torna-se forte através da reunião de numerosos aliados e se enfraquece quando se torna isolado. Um caríssimo avião Airbus é derrubado por um pequeno meteoro ou um pássaro nos motores, e a proverbial borboleta dos teóricos do caos, pode destruir New Orleans. Impérios, sem-tetos, e grãos de areia, todos jogam pelas mesmas regras. ‘Nenhuma entidade é tão fraca que não pode recrutar outra. Então, os dois se juntam e tornam-se um terceiro actante, em que eles podem, portanto, se mover mais facilmente. Um redemoinho é formado e cresce ao se tornar muitos outros.’[23] A força do forte não vem do abandono de suas grossas camadas na superfície, exercendo assim uma essência interior em toda sua pureza. Como Latour observa, os espanhóis não conquistaram o México com uma religião purificada, capitalismo, cartografia ou tecnologia, mas apenas com o reforço mutualmente híbrido de todas essas forças. A ciência moderna não é um procedimento-verdade destilado que arranca todos os ingênuos fetiches e superstições sem fundamento, mas simplesmente ela é um mais forte, mais massiva rede de ajudantes animados e inanimados que os auto-intitulados druidas e magos podem reunir. Nós podemos chamar isso de ‘a construção social da ciência’ se nós quisermos, mas apenas se nossa sociedade incluir átomos, células sanguíneas, luz do sol, gravidade, e um equipamento de laboratório não menos que tabeliões vitorianos e outros imperialistas sedentos por poder vindos do nosso pesadelo acadêmico.
A estratégia de todos os actantes é usar seus aliados mais sólidos, a fim de modelar aqueles mais leves. Se a teoria das cordas carece de qualquer evidência experimental (‘leveza’), ela ainda reúne entusiasmo e incentivos de instituições através de sua incrível unificação da relatividade e da teoria quântica (‘solidez’). Aqueles que são seduzidos pela unificação, podem ser mais pacientes em esperar os experimentos eventuais. A pequena Islândia, caso alguém ataque, terá toda a NATO[24] para a defender, enquanto os aliados do Líbano se sentem muito fracos para interferir diretamente. A Islândia, em sua discreta essência interna, certamente não é mais forte que Líbano; apenas seus aliados fazem a coisa acontecer. O mesmo se aplica a todos os objetos de cada tamanho: ‘Uma força estabelece um caminho ao tornar uma outra força passiva. Ela pode, então, se mover para lugares que não pertencem a ela, tratando-os como se eles fossem seus… Sobre os [Actantes] que desejam ser mais fortes do que outros, pode ser dito que eles criam linhas de força. Eles mantem outros na linha.’[25] Esse é um dos mais conhecidos lemas de Latour: isto é, é inútil falar da pura e dominante força do gênio ou da verdade, já que essas virtudes são reduzidas a irrelevância se elas não conseguem persuadir ninguém. Em puros termos filosóficos, ela é uma teoria da irrelevância da substância isolada, da ‘atualidade vazia’ denunciada por Whitehead, ou do possível Pasteur fracassado que assombra as páginas do livro de Latour.
A única coisa que convence e modela outros actantes é a força. Por agora, deve estar claro que por ‘força’ Latour quer dizer muito mais que ‘poder’ no sentido ingênuo adotado pelas doutrinas paranoicas e humanocêntricas dos construtivistas. ‘Por acreditar [que poder e direito são diferentes], nós permitimos que certas linhas de força e certos argumentos dominem as redes ás quais eles pertecem.’[26] Nós precisamos lembrar que ‘poder’ pertence a vulcões e a lua não menos que a Maquiavel e a Kissinger, já que qualquer um dessas forças humanas ou não-humanas podem ser feitas para pertencer a uma mesma rede- contanto que o trabalho necessário seja feito. ‘Nada escapa de uma rede… quando as pessoas dizem que o conhecimento é ‘universalmente verdadeiro’, nós devemos entender que é como estradas de ferro, que são encontradas em todo o lugar do mundo, mas apenas em uma extensão limitada.’[27] Por isso, não há ‘conhecimento’, mas apenas o que Latour chama de infrafísica.
Retornando uma vez mais para sua tensa (off-Broadway) rendição da filosofia leibiniziana, Latour revive a noção de Leibniz de que o tempo e o espaço são simplesmente o resultado de relações entre entidades. ‘Tempo não passa. Os tempos são aquilo que está em jogo entre as forças… nenhum instante pode coroar, mutilar, justificar, substituir, ou limitar qualquer outro.’[28] E, além disso, ‘espaço e tempo não estruturam actantes. Eles apenas se tornam molduras de descrição para aqueles actantes que tem se submetido, localmente e provisoriamente, à hegemonia de outros.’[29] Isso nos conduz a outro lema latouriano: isto é, a impossibilidade de chamar qualquer momento de tempo de ‘mais moderno’ que outro, através da arrogante suposição de que um momento purifica a si mesmo mais completamente do barulho da tradição ou da distorção de ‘fatores sociais’ do que outros. Latour evoca o exemplo clássico e recente da Revolução Iraniana, perguntando: ‘Quem, então, é o mais moderno?’ A Shah? Khomeini, o islâmico de outra época? Ou Bani-Sadr, o Presidente, que tem procurado refúgio em Paris? Ninguém sabe, e isso porque eles lutam tanto para fazer seu próprio tempo. ’[30] Assim como o espaço e o tempo são definidos pelo duelo entre entidades, ao invés de modelar esse duelo, Latour vai mais longe e argumenta que verdade em si mesma é um efeito retroativo. ‘Uma sentença não se sustenta porque ela é verdadeira, mas porque ela se sustenta é que nós dizemos que ela é “verdadeira”.’[31] Um actante não é nada sem as redes; com as redes, ele é tudo.
F. Um Novo Ocasionalismo
Outro dos aspectos mais estranhos do estranho destino de Latour é que ele é frequentemente mal interpretado, do mesmo modo, por ambos os aliados e críticos – ambos celebraram e condenaram a ‘redução da realidade objetiva a fatores sociais’. Mas essa frase curta contém um triplo mal-entendido: pois pelo fato de Latour abandonar toda redução, isso oferece um profundo relato da realidade, muito mais do que aquele dos realistas, e amplia a sociedade tanto que o soberano humano maquiavélico perde seu privilégio dentro de um desfile amplo de atores vegetais e inorgânicos. Por essa razão, defender ele contra a acusação de ser um construtivista social rapidamente torna-se cansativo. Talvez, melhor seja simplesmente não se importar, confiando nos moinhos do tempo para enfraquecer o zeitgeist da guerra de trincheira entre o ‘realismo ingênuo’ e a igualmente ingênua textualidade e construcionismo. Quando, algum dia, esse processo for finalmente finalizado, a filosofia de Latour continuará de pé- ele me surpreende incomparavelmente como sendo mais original que os barulhentos heideggerianos franceses que ainda se passam da vanguarda continental. Ignorando a injustiça temporária feita a reputação de Latour, nós devemos concluir esse debate com uma revisão das maiores conquistas de Irreduções, todas elas desenvolvidas com mais profundidade em seu trabalho filosófico mais recente.
Primeiro, seu conceito de actante anula a Revolução Copernicana de Kant, simplesmente ignorando-a. Na medida em que objetos reais, ideias, objetos animados e inanimados são substituídos em um mesmo nível, cada um deles ocupando algum espaço concreto na realidade e ambos resistindo e abrindo caminho para influências ao redor, a suposição básica da filosofia moderna desaparece. Essa suposição é que a divisão relacional entre humanos e mundo (se nós lamentamos ele, ganhamos prazer com ele, descontruímos ele, ou assimilamos ele dentro de um absoluto mais profundo) é a única divisão com que os filósofos têm permissão para se preocupar. Latour contorna esse dogma cansativo, opressivo e frequentemente invisível ao nos lembrar de que a relação entre Immanuel Kant e os objetos no mundo não é diferente daqueles entre polícia e criminosos, Lucky e Godot[32], cervo e florestas, ácido e metal, ou fogo e algodão. Cada actante tem direitos iguais em uma ontologia democrática, e as relações são um problema para todos eles- não apenas os para chamados seres racionais.
Segundo, seu conceito de irredução nos força a reconhecer um universo de autônomas, mas interconectadas, camadas, nenhuma delas sendo o único item genuíno no cosmos. Nós não podemos inteiramente explicar os humores em termos de química do cérebro mais do que nós sustentamos que Tony Blair controla cada um dos cidadãos britânicos por telepatia, ou que todas as receitas italianas foram decretadas por Marco Polo. O local não está contido ‘implicitamente’ no global, mas nem as mais amplas estruturas são meramente agrupadas por micro-unidades reais privilegiadas. Cada camada do mundo é sua própria lei, e para quebrar essa lei requer um trabalho genuíno feito pelas camadas acima e abaixo. Entre outras coisas, isso coloca um fim tanto na distinção de Leibniz entre mônadas e meros agregados, e aquele mundo duas-caras de Heidegger dividido entre ser e entes. Para Latour, não há nada exceto seres, e eles são muito mais interessantes que os supostos sonhos vazios de cálculo que conduz Heidegger às lagrimas de raiva.
Terceiro, esse conceito de tradução desloca todas as teorias anteriores de verdade. ‘Conhecer’ alguma coisa significa simplesmente testar suas forças e fraquezas de tal modo a projetá-lo em uma forma factivelmente acessível. Isso não significa construir uma cópia da coisa na forma de teorias da verdade como ‘correspondência’, já que copias são impossíveis- tudo existe em apenas um lugar e tempo. Isso não significa que tudo deve se associar em um sistema na forma de teorias da verdade como ‘coerência’, já que tal coerência está constantemente sendo rompida pelos pedaços recalcitrantes que surpreendem, fascinam, ou desapontam você- Latour aprecia a falseabilidade e o colapso muito mais que os defensores da coerência fazem. Finalmente, saber alguma coisa não significa que a verdade é gradualmente desvelada por um Dasein historicamente enraizado, já que esse modelo permanece sob o poder da ideia de que a verdade copia o mundo, com a única condição de que as copias sejam sempre parcialmente dobradas pela sombra – e Latour não é amante de sombra. Mais importante que isso, todos esses modelos consideram a verdade como uma responsabilidade dos humanos, ou, ao menos, uma responsabilidade das criaturas sensíveis. Por contraste, Latour sustenta que a tradução dos ritos primitivos em algum seminário antropológico, ou a tradução de um barulhento, florescente, e confuso mundo em um sistema implacável de Hegel, não são diferentes em tipo da tradução do poder do vapor em energia cinética, do hidrogênio em hélio na fusão nuclear, transformada em ouro nos laboratórios alquímicos (assumindo que eles tiveram sucesso), ou os sermões de Jesus do aramaico para o grego, ou a Horda de ouro da Steppe no Samarkand e Kiev, ou ainda um passageiro de metrô da Château d’Eau para o Place Monge. Em todos esses casos, nós temos de seguir os passos da tradução tão cuidadosamente quanto a situação demanda.
Quarto, essa ideia de associação transforma todas essas substâncias em um enxame de agregados. Não há uma essência interna única de uma coisa, incrustrada com trágicos acidentes periféricos a serem varridos pelos teóricos como graxa na janela. Uma coisa torna-se mais real por acumular mais aliados e persuadir mais objetos a deixá-los atravessar o mundo livremente, seja por sedução, prova ou força bruta. Nós não podemos descobrir a natureza de uma coisa olhando em seu coração, mas deve seguir o sangue que circula daquela coisa através de todas suas artérias e capilares muito bem distribuídos.
Esse conjunto único de insights é tão estranho para Heidegger, Derrida e a tradição fenomenológica quanto é para todo o pensamento analítico Anglófono. Isso marca um retorno dos objetos inanimados para a filosofia depois de mais de duzentos anos de esquecimento.
Esse raciocínio latouriano despedaça o realismo tradicional ao garantir realidade mesmo ao ‘ideal’, e ao proibir todas as reduções de exercícios e máquinas complicadas a um elemento-raiz subjacente que explica todos os outros. Ele destrói o relativismo pop ao demandar que nós olhemos as forças do mundo nos olhos, submetendo cada uma de nossas culturas singulares e diversas às negociações rígidas com as culturas bélicas e cruéis do fogo, água, camadas de ozônio, natalidade, doenças e teoremas matemáticos.
Embora eu deixe uma discussão completa da ideia para meu livro que será lançado em breve, eu acredito que a filosofia de Latour é melhor interpretada em termos da noção clássica de ocasionalismo. Essa doutrina é geralmente lembrada como uma teologia charmosamente ingênua em que Deus intervém em cada momento para fazer com que todas as relações causais ocorram (não apenas as relações entre mente e corpo), dado que as substâncias são consideradas como muito fracas para agir por elas mesmas. Malebranche é o mais proeminente nome europeu nessa tradição, mas sua origem repousa muito mais cedo no Iraque medieval, onde a escola de al-Ash’ari desempenhou um papel de destaque na teologia islâmica, e onde ela alcançou seu pico no famoso trabalho A incoerência dos filósofos de al-Ghazali. Contudo, o Deus micro-administrador das causas desses teólogos é meramente uma possível solução para um problema filosófico subjacente. Isto é, nós apenas vemos coisas no mundo enquanto contíguas ou lado a lado; sua influência direta uma sobre a outra deve sempre ser inferida ao invés de vista. Por isso David Hume (um grande admirador de Malebranche) meramente continua a tradição ocasionalista, por mais veemente que seja seu ateísmo. Por essa razão, a Era do Gelo Kantiana em filosofia está de fato encurralada pela tradição ocasionalista, zombando como antiquadas e devotamente ultrapassadas. Como argumentado mais cedo nesse ensaio, eu sustento que o problema central da filosofia é equilibrar a realidade interna de objetos individuais com a necessidade de explicar como eles podem penetrar na concha um do outro e conseguir uma genuína influência mútua. Eu sustento depois que Bruno Latour pega esse touro pelos chifres enquanto outros, mais influentes pensadores contemporâneos, se contentem com a parcial solução para o problema.
Para avaliar a conquista de Latour na filosofia, nós devemos considerar o seguinte dilema. Os ocasionalistas e os céticos certamente tem razão quando eles fecham cada coisa individual em si mesma, duvidando que sua força escorra de alguma forma em outras coisas. Para fazer coisas meramente lado a lado, ao menos garanta a elas um pouco de privacidade, autonomia e uma vida domestica inviolada. E isso é uma das duas coisas que a filosofia tem de fazer. Mas a outra coisa que a filosofia deve fazer é realizar o gesto contrário, mostrando um modo em que as coisas conseguem libertar seus poderes uns contra os outros. Sem isso, nós devemos ser deixados com a teoria de incontáveis micro-universos, cada um empurrados uns contra os outros sem nenhuma forma de comunicação. Tal teoria obviamente seria tão infrutífera como uma descrição do mundo que ninguém jamais tentou fazer. Talvez Espinosa tenha chegado mais próximo com seu paralelo infinito de atributos divorciado de todo contato mútuo, mas já que todos esses atributos pertencem a Deus, mesmo Espinosa acaba interrompendo o mais provável ocasionalismo. O mesmo compromisso inevitável é encontrado em todos os ocasionalistas: cada um deles deve permitir um momento especial de hipocrisia, estabelecendo um lugar único onde todas as coisas fazem contato de algum modo. Para os ocasionalistas teológicos, isso é obviamente Deus, quem pode interferir nos eventos do mundo, embora nada mais possa fazer. Para os céticos, é a mente humana que aproveita esse poder hipócrita: não importa o quanto Hume duvida do nosso conhecimento sobre a relação entre o algodão e o fogo, ambos são ao menos unificados na mente humana através da conjunção do hábito, mesmo se nenhum tipo de conjunção ocorra no mundo além do hábito mental. Se o ocasionalismo realmente é o problema central na história da filosofia, como eu sustento, então nós podemos agrupar famílias de filósofos baseados em como eles lidam com a necessidade de equilibrar a vida autônoma de objetos com as forças que atravessam seus firewalls.
Nesse espírito, nós podemos colocar a questão ocasionalista para Bruno Latour. Em sua filosofia, nós descobrimos que tudo acontece em apenas um lugar e um instante, e isso sela cada actante em uma realidade completamente específica que não dura muito quando atravessa diferentes lugares e momentos. Contudo, ao mesmo tempo, ele é o filosofo das relações par excellence; poucos pensadores tem garantido tanto prestígio para as redes e interações como ele faz. Onde, então, é o ‘ponto de exceção’ na filosofia de Latour? Onde a interação ocorre para ele? Ela claramente não é encontrada na deidade hipócrita dos ocasionalistas. Diferente da maioria dos filósofos europeus atuais, Latour não é um descrente. Contudo, se ele jamais escreve uma teologia, é uma aposta segura que seu Deus emergirá como um tradutor e negociador de forças incertas, mesmo se esse actante divino for especialmente poderoso e sábio. Ainda mais claramente, Latour não se retira para a ilha do coco dos céticos, onde os links entre os actantes ocorrem apenas dentro de uma frágil esfera psicológica de conjunções habituais. Ele é muito realista para isso, muito disposto a deixar todas os tipos de forças não-humanas afetarem todas as outras.
Não, a resposta, no caso de Latour, é mais genérica. A resposta é que suas traduções e interações ocorrem no mundo. Enquanto isso pode soar vago à primeira vista, existem muitas imediatas implicações negativas que são cruciais para sua filosofia. Primeiro, requer a imediata rejeição de qualquer reino transcendente platônico de formas puras não contaminadas pelo substrato material. Essa rejeição não chocará ninguém, já que o platonismo de todo tipo é quase tão fora de moda na filosofia hoje como o racismo geográfico de Kant. De uma forma mais acurada, como nós temos visto, a mundanidade imanente de Latour abole qualquer potencialidade aristotélica que repousa armazenada por trás do que é real, e também cancela qualquer retirada misteriosa do ser ou seres no estilo heideggeriano. Para Latour, tudo que existe está inscrito em algum lugar no mundo- nesse exato momento. Não há nada fora do momento atual e todos os espaços em várias redes, cada uma delas comprimindo e cedendo entre as forças dos outros. Tudo é real. Nada está sem expressão, e nada está tão profundamente contraído ou rodeado que não possa ser registrado em algum lugar no universo atual.
Com todas essas teorias, Latour corajosamente nos oferece uma metafísica completamente desenvolvida da realidade, diferente dos celebrados neo-copernicanos que dominam tanto a filosofia analítica quanto a continental, e que suprimiam suas suposições metafísicas por trás de uma tela de disputas repetitivas sobre as condições pelas quais a realidade é dada aos humanos. Em sua rejeição da potencialidade e sua insistência de que tudo é real, Latour nos faz lembrar da antiga escola Megariana, inimiga de Aristóteles. E se qualquer um desejasse produzir uma controvérsia útil com Latour, não deve ser através da acusação cansativa de construtivismo social, mas sim com uma acusação similar àquelas feitas por Aristóteles contra os Megarianos na Metafísica no Livro IX. Por exemplo:
- Se um construtor de casa não está naquele instante construindo, os Megarianos dizem que ele não é um construtor de casa. Aristóteles responde que isso colocaria o construtor profissional que está dormindo na mesma posição que alguém inteiramente ignorante da arte de construir, o que parece contra-intuitivo. Uma questão similar para Latour seria essa: um Pasteur imaginário e fracassado realmente não seria diferente da vasta tribo de humanos que também não fizeram nenhuma revolução em medicina? Nós iremos admitir que um Pasteur fracassado, ou um Pasteur morto em um acidente aos dez anos, nunca teria sido lembrado como ‘Pasteur’. Mas isso me traz certa dúvida sobre como o gênio é conhecido ou manifestado, não de sua realidade. É realmente verdadeiro que as forças em potência não estão inscritas em um actante sobre e acima do completo estado de coisas dos actantes atuais, sua trajetória de sucesso? Essa questão vale a pena ser discutida.
- Aristóteles também acusa que desde que os Megarianos permitiram nada em reserva que não estivesse já expresso no mundo, eles não conseguiram explicar a mudança ou o movimento. Contudo, se eu envelheço, ou caminho de Atenas para Megara, ou do Quarteirão Latino para os Inválidos, sou eu quem faz isso- não o completo estado atual do “eu”, com todas suas relações monetárias transitórias com outras coisas.
- Se os actantes estão constantemente em relação com outros, cada um deles encontrará um outro diferentemente. Contudo, o que torna um actante ‘a mesma coisa’ para cada um dos outros actantes com que ele se relaciona? O que torna o meu sapato o ‘mesmo’ para o concreto da calçada, para uma formiga ameaçada rastejando por perto, para o polidor de sapato que se aproxima de mim, para o filtro de luz do sol através do ar, e para os minúsculos tremores sísmicos que fazem com que meu sapato vibre imperceptivelmente em cada instante? O perigo para Latour aqui é que um actante se reduz a uma série incrível de manifestações, cada uma delas conectada ao resto apenas por alguma coisa próxima a ‘semelhanças de família’, que são uma solução epistemológica para um problema metafísico.
- Finalmente, há uma questão que Aristóteles nunca colocou para os Megarianos. Isto é, se cada actante em sua completa concretude é fechado em um instante singular de tempo, então o que conecta cada uma das coisas que atravessa sua trajetória através das eras? Aqui nós tangenciamos as outras doutrinas clássicas do ocasionalismo: a criação contínua de um universo preenchido somente com instantes isolados e perecíveis. Se eu não sou, na verdade, ‘o mesmo’ actante em cada momento da minha história, o que conecta cada um desses inumeráveis selves de uma forma que permite a mim ser a mesma pessoa? Aqui, uma vez mais, as ‘semelhanças de família’ não funcionam (e elas podem nem mesmo ser a solução preferida de Latour). Não é uma questão de como outros podem me identificar como a mesma pessoa através de instantes de tempo, pois isso é meramente um problema de conhecimento. O problema metafísico subjacente é se há realmente alguma coisa idêntica enquanto o drama do mundo se desdobra. A resposta de Latour pareceria ser um ‘não’, e isso também me surpreende como algo que vale a pena ser debatido.
O fato de Latour provocar tais questões é o suficiente para mostrar que ele tem sido bem-sucedido em reviver a metafísica na filosofia continental. O mesmo não pode ser dito das figuras mais famosas (alguns deles grandes filósofos de qualquer forma) que meramente procuraram novas variações do solitário sujeito humano encarando a escuridão, o mundo desconhecido. A importância de Latour repousa em sua mudança em direção a uma filosofia de “objeto-orientado”. Infelizmente, desde sua aparição em irreduções em 1984, alguns autores tem seguido ele direto para esse caminho. Se um trabalho mais radical de filosofia apareceu durante o terrível anos 80, isso é desconhecido para mim.
Notas
[1] The Pasteurization of France, p. 166.
[2] The Pasteurization of France, p. 158.
[3] The Pasteurization of France, p. 158.
[4] The Pasteurization of France, p. 158.
[5] The Pasteurization of France, p. 158-9.
[6] N.T: O termo “feito”, ao invés de “realizado”, resgata o vocabulário pragmatista que Latour tanto utiliza, remetendo a figuras como William James.
[7] The Pasteurization of France, p. 159.
[8] N.T: G. H.= Graham Harman
[9] The Pasteurization of France, p. 162.
[10] The Pasteurization of France, p. 188.
[11] The Pasteurization of France, p. 161.
[12] N.T: Referindo-se ao anel de Nibelungo, uma peça clássica de Wagner com quatro grandes óperas.
[13] The Pasteurization of France, p. 166.
[14] N.T: Referência ao giro copernicano proposto por Immanuel Kant no século XVIII.
[15] The Pasteurization of France, p. 160.
[16] The Pasteurization of France, p. 181.
[17] The Pasteurization of France, p. 177.
[18] N.T: ‘Whig history’ é uma forma de ver a história como inevitável, seguindo uma linha determinista, com um passado potencialmente determinado.
[19] N.T: Edward Gibbon foi um historiador do século XVIII que escreveu o “Declínio e Queda do Império Romano”.
[20] The Pasteurization of France, p. 176.
[21] The Pasteurization of France, p. 176-7.
[22] The Pasteurization of France, p. 185.
[23] The Pasteurization of France, p. 159.
[24] N.T: North Atlantic Treaty Organization: Organização do Tratado do Atlântico Norte. Também chamada de OTAN.
[25] The Pasteurization of France, p. 171.
[26] The Pasteurization of France, p. 233.
[27] The Pasteurization of France, p. 226.
[28] The Pasteurization of France, p. 165.
[29] The Pasteurization of France, p. 165.
[30] The Pasteurization of France, p. 165 [pontuação modificada]
[31] The Pasteurization of France, p. 165.
[32] N.T: Personagens da peça “Esperando Godot” de Beckett.
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