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“As plantas mostram que viver junto não é uma questão de comunidade ou de política” (Parte 1), entrevista com Emanuele Coccia

la vie des plantes

Por Emanuele Coccia
Tradução: Diogo Silva Correa

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Depois de seus notáveis ensaios, La Vie sensible e Le Bien dans les choses, Emanuele Coccia retorna este ano com La Vie des plantes, uma poderosa e inovadora reflexão metafísica sobre plantas e os vegetais. Muitas vezes negligenciadas até mesmo pela biologia, as plantas devem ser consideradas como objetos privilegiados do pensamento, capazes de produzir uma abertura para a uma filosofia do mundo concebido como uma mistura, renovando profundamente as abordagens ecológicas, ontológicas e políticas.

Diacritik encontrou Emanuele Coccia durante uma grande reunião para discutir com ele este novo ensaio, que é um dos mais importantes publicados nos últimos anos.

Em seu estimulante ensaio, significativamente intitulado La vie des plantes [A vida das plantas], você abre sua reflexão de modo imediato à constatação do postulado segundo o qual tanto na filosofia quanto na biologia atual as plantas não têm voz – elas parecem mortas para o pensamento. Por quais razões você acha que as plantas são o buraco negro da filosofia? A esse respeito, você chega ao ponto de falar das plantas como um “retorno do recalcado”: elas formam, assim, nosso fundador inconsciente que para você é preciso desvelar? Você pretende, portanto, oferecer o seu ensaio como a reabilitação de um campo cego, ao mesmo tempo, do ser vivo e do pensamento?

Quando se olha de perto, as plantas estão por toda a parte: não só diante de nós, transfiguradas na nossa comida, nas nossas cadeiras e mesas, nos corpos dos animais que nos rodeiam e que nós comemos, no ar que respiramos. Elas estão em toda parte também e, especialmente, em tudo o que sabemos sobre o mundo. Acima de tudo, nós recalcamos o quanto as plantas sustentam, nutrem e moldam o nosso conhecimento do mundo. Da agricultura à farmacopeia, as plantas não se limitam a moldar o mundo e a cultura zoologicamente específicos da espécie humana animal: elas constituem sobretudo o meio através do qual percebemos o mundo, nós o conhecemos, nós nos orientamos nele. Esse é o grande desafio do livro: ao olharmos para as plantas, nós não nos limitamos a observar uma simples coleção de objetos, um mobiliário qualquer do universo em meio a infinita série de coisas, seres vivos, eventos e ruínas que povoam o nosso mundo. Olhar para as plantas significa olhar para este conteúdo específico do mundo que o tornou e o torna possível. Falar de plantas significa falar da origem do nosso mundo, desde o seu início perpétuo, que se repete em cada momento, em cada lugar do globo terrestre.

Falar de plantas significa capturar o primeiro sopro do universo, nomear o lugar onde tudo começa a respirar. É assim desde sempre: mesmo nos documentos mais antigos da nossa civilização, falar de plantas significava compreender as características fundamentais do nosso universo. Assim, os estoicos haviam aprendido a ver nos grãos das plantas a forma transcendental da existência dos logos, da razão. A razão é apenas uma espécie de semente de coisas e das formas e, inversamente, a semente é a encarnação por excelência da racionalidade do universo.

De fato, ainda hoje estamos acostumados a considerar que o fato técnico – o processo pelo qual um técnico manipula a matéria informe para dar-lhe forma – é o fato racional por excelência: testemunhamos aí a gênese da ordem segundo um procedimento racional. A semente parece ser uma radicalização do fato técnico em que o técnico, a técnica, o material e o processo de tomada de forma coincidem tanto material como formalmente. A medicina renascentista traduzirá esta analogia metafísica em um isomorfismo anatomofisiológico: o organismo vegetal é a perfeita coincidência de corpos e cérebros, ou, se você quiser, um corpo que não precisa construir um órgão específico para existir racionalmente. Em outro plano, Aristóteles havia ensinado que a vida vegetativa é “a forma pela qual a vida pertence a todos os seres vivos”: a vida de que goza cada planta – nascer, crescer, reproduzir, morrer – é forma de vida mais paradigmática e, ao mesmo tempo, a mais universal e fundamental. Enquanto ser vivo, cada animal e cada homem participa, exprime e articula esta vida. Por outro lado, a planta encarna em si mesma os gestos primordiais de cada ser vivo: é a aurora e o crepúsculo de toda forma de vida, o que todo ser vivo jamais pode deixar de ser.

A ciência contemporânea também, sem se dar conta, não deixou de ver as plantas como a origem do mundo. As plantas são, em muitos sentidos, uma força cosmogónica: são os seres que criaram o mundo tal como o conhecemos e habitamos, que fizeram e continuam a fazer nosso mundo em, ao menos, três sentidos.

Primeiro, ao conquistar a superfície da terra e espalhar-se por todo o globo terrestre, as plantas produziram (e continuam a produzir continuamente) a atmosfera rica em oxigênio que tornou possível a vida de toda a vida animal superior: cada animal superior só pode viver porque pode respirar os restos do metabolismo das próprias plantas. Em segundo lugar, ao explorar em maior escala um mecanismo “inventado” pelas próprias cianobactérias, as plantas permitem transformar a energia solar em matéria viva: a vida orgânica é apenas a consequência dessa capacidade alquímica de transformação do sol em massa animada e, sobretudo, de invenção de infinitas formas de existência dessa energia. Chamamos “vida” a esta imensa retorta alquímica ao ar livre, que inventa formas capazes de traduzir e fazer existir a energia de outras formas. Mas é apenas graças à variante vegetal deste processo de exploração e de transdução da energia solar que a vida no planeta deixou de ser um fato marginal – tanto quantitativa como qualitativamente – para dela se constituir enquanto a sua principal característica, a sua própria essência.

Finalmente, as plantas inventaram um corpo que se estrutura não para se opor à exterioridade, mas para aderir a ela o máximo possível: melhor fundir-se com o mundo para melhor modificá-lo. Compreender a planta significa, portanto, compreender o mundo e, inversamente, o mundo é, em primeiro lugar, um fato vegetal. Toda a cosmologia deve partir de uma reflexão botânica. Deste ponto de vista, o livro não é um tratado sobre botânica especulativa: ele é um tratado sobre cosmologia, que, no entanto, nega pelo menos três pressupostos da cosmologia tradicional. Primeiro, o princípio que gera o mundo é um elemento mundano e não um super-sujeito anterior e exterior ao mundo: há um mundo apenas porque – e aí está a sua causa e a sua consequência – a origem e sua expressão estão contidas uma na outra. Portanto, não pode haver reflexão sobre um objeto mundano que não seja, de fato, uma reflexão cosmológica. Em segundo lugar, a origem do mundo não deve ser buscada em um lugar e tempo remotos: ele está em toda parte e existe em todos os momentos, porque a gênese do mundo, do nosso mundo, não é um acontecimento singular (um Big-Bang), mas um processo perpetuamente contínuo. O mundo começa sempre pelo seu centro, no meio, e por isso não há história que não seja cosmologia – [ou cosmológica].

Em terceiro lugar, toda forma viva é, ao mesmo tempo, uma forma do mundo que ela, ao mesmo tempo, produz e contempla: é por isso que o livro pode partir de alguns órgãos ou partes do corpo da planta (a flor, a raiz, a folha) para definir as propriedades do cosmos (sua natureza atmosférica, a singularidade do céu, a existência da mistura universal). Por outro lado, para observar o mundo nós não precisamos de um ponto de vista, mas de um ponto de vida: o universo vive, é um produto dos viventes, em qualquer escala, e é observando o vivo que podemos explicar o universo, e o contrário. De modo distinto do que pensa Meillassoux, nunca podemos ultrapassar o nosso ponto de vida: tudo o que o realismo especulativo diz e pensa pressupõe a presença de pessoas vivas que falam, escrevem e respiram.

Em certo sentido, portanto, o conhecimento sobre as plantas não nos falta: temos uma quantidade incrível de informações sobre sua vida, sobre suas formas e propriedades. Mas esses conhecimentos estão, antes de tudo, dispersos em mil disciplinas e saberes e, acima de tudo, nunca são levados ao pé da letra. Não são objeto de negação, mas de recalcamento epistemológico. A ciência biológica, deste ponto de vista, é tão responsável quanto as ciências humanas. Ou talvez a principal razão deste recalcamento seja o grande mysterium disjunctionis da sua separação, a obsessão insana que nos leva a separar – de ambos os lados – as ciências naturais e as ciências humanas e sociais. Reconhecer que o homem é apenas uma das infinitas espécies animais que habitam o universo (como Darwin nos ensinou a fazer) não significa apenas reconhecer que tudo é humano é natural: significa também e sobretudo que tudo o que existe naturalmente é um fato espiritual, participa de logos, da razão e tudo o que o homem exprime, incorpora e articula segundo as formas próprias à sua espécie. O espírito está em toda parte, porque não é um atributo desta ou daquela espécie, mas o ser do mundo. Não se trata de lutar contra o darwinismo, mas, ao contrário, de tomá-lo literalmente, de mostrar que jamais fomos suficientemente darwinistas e que há muitas consequências da intuição darwiniana que ainda assustam os humanistas, mas também e especialmente os cientistas. Na sua recusa em reconhecer a espiritualidade de toda a natureza, a ciência contemporânea permanece uma forma de humanismo arcaizante.

Perante a sua vigorosa defesa e ilustração das plantas, o seu ensaio levanta imediatamente outra questão igualmente decisiva: com efeito, para considerar, como você afirma, que a natureza e o cosmos devem tornar-se “os objetos privilegiados do pensamento”, devemos considerar assim a “filosofia da natureza” que aqui emprega como um pensamento ecológico: em que medida se trata de se abrir a uma filosofia ecológica? De que modo uma tal filosofia se opõe, para você, a uma ecologia dita midiática e política, por meio da qual nossa época nunca teria falado tanto da natureza, mas talvez nunca tão mal e, portanto, nunca tão pouco?

A ecologia hoje está envolvida em batalhas essenciais e vitais, as mais importantes para as nossas vidas. Mas ela o faz no interior de um quadro teórico muito problemático. Se suas batalhas são sacrossantas, enquanto saber, a ecologia é uma ciência reacionária e residual, que transforma exigências políticas perfeitamente justificadas em reivindicações de origem gnóstica: o homem se torna em seus discursos tanto o demiurgo maligno capaz de destruir o universo quanto o anjo da guarda que teria a tarefa de defender a vida em escala global. Ela é reacionária porque considera a vida como um objeto passivo, que seria incapaz de se defender por si mesma, a natureza como uma ordem cujo equilíbrio é substancial e inalterável, e o homem como um sujeito cujo ser e ação não pertencem a essa ordem natural previamente estabelecida. Ela é residual porque, apesar das suas afirmações, vem do mesmo paradigma epistemológico e teológico que deu origem à economia “capitalista”, cuja história Giorgio Agamben tão admiravelmente traçou. O nome moderno para o que, a partir de Haeckel, estamos acostumados a chamar de ecologia, era, diga-se de passagem, economia animal. As duas disciplinas partilham a ideia de que o mundo corresponde ao espaço de um oikois, uma casa, no sentido físico do doméstico, do conhecido; no sentido patrimonial do que nos pertence por direito de propriedade e que, portanto, temos o direito de trocar; e no sentido genealógico da nossa origem e de nosso destino final, do que nós herdamos e do que deixamos de herança.

Ora, nosso universo é um mundo apenas porque não é e nunca será uma casa. Por outro lado, aquilo a que chamamos de casa é, fisicamente, um dispositivo tanto material quanto metafísico que serve para nos separar do céu e da vulnerabilidade que ele pressupõe, para produzir a ilusão da terra como um espaço diferente e separado do céu. Nós nos estimamos superiores aos animais e, no entanto, as nossas casas, os nossos arranha-céus, não são mais do que covas ou tocas invertidas, uma espécie de evaginação temporária da crosta terrestre, uma solha contingente, que nos permite viver na ilusão tanto de pertencer à terra como de não sermos indivíduos celestes, que se banham constantemente no céu ambiente, que se alimentam do céu atmosférico, que constroem toda a matéria do seu corpo através da energia arrancada – pouco a pouco, por bocados – do céu – o oxigénio e a luz. As casas, além disso, são também dispositivos que nos permitem criar a ilusão de uma origem, um ponto privilegiado do globo terrestre que não só nos teria gerado, mas ao qual só podemos regressar. Conhecer a vida das plantas é extremamente importante deste ponto de vista, pois elas são a prova viva de que o território nunca é a origem, mas um ponto de trânsito, que a vida não precisa e não pode ter “casas”, e que tudo na terra tem uma natureza e uma origem celestial.

Em primeiro lugar, elas nos ensinam que a vida é um fato celeste: a vida, como a conhecemos, é apenas o princípio de transformação da energia solar (que é, portanto, astral, celeste) em espessura química, em matéria capaz de se mover e se moldar através graças a essa energia. É por isso que a fotossíntese – e, portanto, as plantas – são a base para a ocupação da terra pelos organismos vegetais. São eles que não só produzem a atmosfera rica em oxigênio, mas também constroem os primeiros tijolos consistentes dessa matéria. Tudo o que vemos, tudo o que comemos, tudo o que construímos não é senão do céu, da substância solar capturada, congelada e condensada em formas em equilíbrio metaestável.

Ora, se a vida é um “fato celeste”, ela o é especialmente porque a terra não é um espaço oposto ao céu, é apenas uma das estrelas infinitas que povoam o céu: a planta, em seu corpo e em sua fisiologia, mostra que há uma perfeita continuidade entre terra e céu, entre nosso planeta e o sol, e que só por causa dessa continuidade pode haver vida, só porque a terra é do céu, e tudo sobre a terra é apenas a forma e expressão do céu. Foi Copérnico que nos ensinou isso há quase cinco séculos e, no entanto, ainda temos dificuldade em reconhecê-lo. Se recalcamos a vida das plantas é também porque persistimos em recalcar o céu: somos ptolomaicos dogmáticos, nós jamais fomos copernicanos. O livro afirma o que se poderia chamar de um panouranismo: tudo o que é não é senão céu, e o céu não é senão a matéria de tudo.

Ora, é porque não há senão céu no mundo, que o nosso mundo não é e nunca poderá ser uma casa. O céu é por excelência um espaço de trânsito, de circulação: só tolera movimentos perpétuos. Não podemos habitar o céu: nele só podemos transitar, atravessar e nos mover. A terra, como parte do céu, não é um lugar fixo: ela gira, ela não para de se mover e o seu movimento está sujeito a irregularidades. O nome, além disso, de planeta significa apenas isso: a terra é um vagabundo errante. Como indivíduos terrestres nos é, portanto, literalmente impossível nos fixarmos em algum lugar, mas se você quiser, a ideia de fixação é apenas uma ilusão, a mesma que nos sugere que o sol gira em torno de nós. Deste ponto de vista, a ecologia é apenas a ciência que opera para que a terra se torne literalmente uma prisão: um espaço onde todo movimento, em todos os sentidos, é proibido.

Em segundo lugar, a terra não é nem nunca será uma casa, também e sobretudo, porque não há nada de originário, nada de “natural” na natureza, de seguro, de a priori, estável de uma vez por todas. A Terra não é habitável por si mesma, não é naturalmente capaz de abrigar seres humanos ou outras formas de vida superior. Ela assim tornou-se graças à ação das plantas. E a sua ação foi, em primeiro lugar, uma catástrofe ecológica sem precedentes: é o que se chama de grande oxidação ou de grande catástrofe do oxigênio. A natureza da terra, se é que existe uma, é apenas a de ser um deserto, como todos os outros planetas, um espaço em que os elementos não se misturam e estão congelados num equilíbrio químico imemorial. Foram os viventes que fizeram da terra um lugar habitável. É a sua atividade “poluidora” que altera irremediavelmente este equilíbrio, tornando-a hospitaleiro. Nós não vivemos na Terra, mas dentro da bolha efêmera aberta por outros viventes. Apenas graças a este poluente extremamente poderoso é que estamos vivos: sem a “poluição” (emissão de oxigênio) das plantas, morreríamos em poucos segundos. A questão “ecológica”, portanto, não é obviamente a de deter a poluição, mas de compreender que vivente poderá fazer da poluição humana sua condição de possibilidade, seu alimento, seu oxigênio. Nós esquecemos o papel dos organismos que se alimentam de ruínas, de dejetos: a pesquisa deveria ir na direção daqueles seres que podem reinventar o ciclo metabólico em que ele, o ciclo, parece parar. A questão é sempre: quem pode nascer de nós? É o que demonstram as pesquisas de Gilles Clement, na França, e as de Anna L. Tsing e Eben Kirksey.

E é apenas reconhecendo o caráter emergente da natureza e, portanto, contingente de qualquer equilíbrio vital que poderemos nos libertar dos mal-entendidos da ecologia. Porque se até a nossa vida na Terra se deve a uma catástrofe ecológica, ela não tem nada de autóctone. Nós “chegamos” à Terra, como qualquer outro ser. A vida não tem nada de autóctone, vem sempre de outro lugar. E esta heteroctonia é apenas o nome apropriado para o que chamamos de nascimento. A natureza não é senão isso, heteroctonia: nascer é apenas a necessidade de vir de outro lugar, o fato de ser de outro lugar. Todo ser vivo vem de outro lugar, nem sempre esteve aí.

Por isso, a filosofia da natureza para a qual trabalha não se contradiz firmemente ao tentar refundar a ontologia? A planta não arranca a ontologia da sua base cognitiva? Não se trata, com efeito, de oferecer um novo paradigma filosófico pelo qual o modelo de vida que era a consciência do homem dá lugar à vida das plantas que, sem linguagem e sem sentido, oferece a todos a vida de modo quase absoluto, a imanência sem desvios, ou o que o poeta Stéphane Bouquet chama “a vida das coisas”?

O livro contradiz a ontologia em vários níveis. Primeiro, a ontologia proíbe a possibilidade de encontrar a forma do mundo na anatomia de um dos seres que contém: o livro, ao contrário, assume que a planta encarna o ser no mundo mais radical, e que é descrevendo a planta que conhecemos o mundo. Ao fazê-lo, nega qualquer ordem hierárquica entre seres, entre ser e ser, entre conteúdo e recipiente, entre totalidade e elemento.

A ontologia obriga-nos a pensar a relação ontológica inerente a uma coisa em outra como irreversível: a substância é o que é em si mesma e não pode estar em outro sujeito que não seja ela mesma e a modificação desta herança coincide com a destruição. Pelo contrário, o livro mostra que as plantas transformaram o mundo e a vida em fatos atmosféricos, ou seja, o espaço em que tudo se mistura com tudo, tudo está literalmente em outro sujeito que não ele mesmo.

A ontologia sempre pensou na unidade do mundo sob a forma de analogia ou univocidade do ser: há apenas um mundo porque todos os seres partilham o mesmo ser que se articula na pluralidade dos seres, ou porque os diferentes seres partilham uma semelhança ontológica entre eles. A observação das plantas, mas também de tudo o que fazemos, mostra que o mundo não precisa nem de uma semelhança compartilhada por todos os seres nem do mesmo ser para dizer um. O mundo é unificado pela respiração, isto é, pelo movimento metafísico que transforma o lugar no conteúdo do que ele contém e vice-versa. Respirar não é simplesmente uma necessidade fisiológica; é o ritmo e a estrutura do nosso ser no mundo, ou melhor, a forma da mundanidade de todas as coisas. A respiração é a continuidade do díspar que não pressupõe unidade: não há analogia nem univocidade entre mim e o ar que respiro. E, no entanto, a respiração faz dela uma unidade física e metafísica. É o movimento que permite que o conjunto díspar de coisas, eventos, materiais que estão aqui para coexistir, para ser um.

Não se trata de reconstruir a ontologia, mas de destruí-la multiplicando não os modos de ser, mas os sujeitos da herança. Desde Aristóteles, a ontologia tem medido a intensidade do ser de cada ser de acordo com seu caráter substancial: é realmente apenas o que não está em alio, em outro substrato ou sujeito. Estar no mundo significa não só estar em um substrato diferente de si mesmo – o mundo – mas ser capaz de estar e literalmente estar em todas as pessoas do mundo. Eu existo, sou, isto é, sou, sou, neste mundo, não só porque estou num único substrato, o meu corpo, mas porque posso estar no espaço imaterial destas linhas que aparecem diante de vós, mas também nos vossos olhos, nas vossas memórias, nos sons que fazem quando leem este texto. Ser para algo mundano significa poder estar em todo o lado, estar em tudo.

Por outro lado, não se trata de desconstruir o fundamento cognitivo da ontologia, mas, ao contrário, de estender e banalizar o conhecimento, tornando-o uma qualidade que coincide com o ser. Trata-se de reconhecer que o que chamamos de pensamento é apenas a possibilidade de se tornar o lugar de tudo o que é. A consciência é só isso: experimentar que algo ou uma forma diferente de nós está dentro de nós. Neste sentido, o conhecimento ou pensamento não é uma exceção à ontologia, mas sua forma banal e elementar. Se ser significa estar em algo, cada ser é um objeto da consciência de outra coisa. Tudo o que é, está em algo e por isso é pensado por outros. Tudo o que é, está em tudo, e é pensado por tudo. Não precisas de uma consciência para pensar. O pensamento é o sopro dos seres. Não precisamos de um cérebro para pensar: o pensamento é o fato, a forma e o ritmo de nossa imersão no mundo, a configuração que nossa abertura ao mundo adquire em um momento ou outro.

Se o pensamento é apenas uma intensificação de uma relação ontológica e não a sua suspensão, o ser é apenas uma intensificação de uma relação cognitiva. O pensamento é apenas o fato e a forma de estar no mundo. E, por outro lado, há mundo porque cada ser não se limita a se definir por uma forma, uma diferença, uma autonomia, mas é sempre construído a partir da mistura com o resto dos seres. Se uma coisa é capaz de pensar não é porque ela é dotada de linguagem ou consciência, mas porque está no mundo. E, de modo inverso, estar no mundo, isto é, poder ser atravessado por tudo o que existe e acontece e poder atravessá-lo, coincide sempre com o pensamento. Estar no mundo significa ter a obrigação de se moldar a partir dos outros, e de moldar o mundo para poder moldar a si mesmo: o pensamento é apenas isso, é apenas o sopro dessa mistura de tudo com tudo, é apenas a sua potência, o seu ritmo, a sua respiração. Toda coisa, se ela é, ela pensa porque está no mundo, e inversamente, todo pensamento é apenas a expressão de um ser no mundo, da mundanidade das coisas. Não há pensamento que não seja um pensamento do mundo e no mundo. O pensamento não é o espírito da distinção, ele é uma força cósmica que abraça, implica, molda e anima tudo, cada pedaço de matéria e permite e obriga tudo a se misturar com todo o resto: pensar significa penetrar algo deixando sua essência intacta, sem ser obrigado a digeri-la, a destruí-la.

Deste ponto de vista, o pensamento é apenas a natureza mais profunda do que chamamos matéria. O erro é pensar que os circuitos neurais são a causa e forma do pensamento quando eles são apenas uma de suas possíveis traduções. Infinitas traduções possíveis. O pensamento está por todo lado, e existe em todas as formas possíveis. Consciência e linguagem são apenas um exemplo. Mas elas pressupõem a capacidade metamórfica do pensamento para existir em outras formas, em outros materiais. A linguagem em si mesma é menos unitária do que imaginamos, pois é som, imagem, papel, pixel, neurônios. A ação que segue uma deliberação consciente não é uma consequência do pensamento (um movimento irracional de pura matéria alógica pura), ela é o mesmo pensamento que foi expresso e moldado na forma de uma deliberação traduzida, transformada em movimento da carne, estendida em outro corpo. O pensamento não é uma entre outras coisas, ele é apenas a tradutibilidade de tudo em qualquer outra forma, a capacidade de qualquer forma de se traduzir, de passar para uma outra forma, para outro médium. Em suma: a possibilidade de tradução (não só entre duas línguas, mas entre dois materiais) implica sobretudo que não haja língua materna e que não haja língua efetiva – ou que a língua esteja em toda parte, que tudo seja logos.

É por isso que o livro defende a ideia de um panouranismo (tudo é céu, e só há céu no universo): tudo no céu é atualidade do pensamento, porque o pensamento é apenas o fato de estar no mundo. A palavra grega para céu significado seguinte: ouranos são as fronteiras do pensamento, e o céu é apenas o espaço dos entes que chegam onde o pensamento chega e vice-versa.

Fonte: https://diacritik.com/2017/05/03/emanuele-coccia-les-plantes-montrent-que-vivre-ensemble-nest-pas-une-affaire-de-communaute-ni-de-politique/

CONTINUA NA PARTE 2

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