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As leituras elementares da vida acadêmica: neoliberalismo, por Bruno Reinhardt

Retomando a nossa série "As Leituras Elementares da Vida Acadêmica", Bruno Reinhardt oferece uma discussão sobre o neoliberalismo. Sua proposta é, a partir de um maior trabalho de clareza teórica e conceitual, pensar uma antropologia ou sociologia "do" neoliberalismo, como objeto de pesquisa propriamente, mais do que um marco contextual. Reinhardt mobiliza três temáticas que envolvem a definição do termo: economia política, cultura, e constelação de técnicas de governo e auto-governo.

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O conceito de neoliberalismo ganhou enorme popularidade nas últimas décadas e se transformou em uma espécie de guarda-chuva semântico de extensão quase ilimitada. Obviamente não se trata de uma propriedade exclusiva a esse termo. Tensões entre a extensão e a capacidade explicativa ou compreensiva dos conceitos parecem ser endêmicas às ciências sociais. De fato, “neoliberalismo” hoje cumpre funções muito similares a outros termos que perderam fluência recentemente – como pós-modernidade, globalização ou capitalismo tardio – e de fato tende  substituí-los ao reter suas propriedades dispensionalistas. Todos eles oscilam entre fenômenos reconhecíveis e potencialmente delimitáveis em termos explanatórios e candidatos a Zeitgeist, a uma atmosfera histórica, econômica,  política e cultural sem externalidade. Ironizando tal visão univocal da história, Marshall Sahlins, ainda em 2002, pergunta-se “O que aconteceu com o “capitalismo tardio”?” e responde “Virou neoliberalismo” (2002: 59).

Hoje é de fato comum utilizar-se neoliberalismo como sinônimo de “contemporâneo”, principalmente na literatura anglófona. Uma rápida pesquisa na ferramenta de busca Anthrosource, da Associação Americana de Antropologia, sobre o adjetivo “neoliberal” me levou a títulos contendo “Brasil neoliberal”, “Síria neoliberal”, “Dinamarca” e “Alemanha neoliberal” e mesmo “China” e “Cuba neoliberal” como demarcadores de contexto espaço-temporal (não encontrei “neoliberal North Korea”, no entanto).  A óbvia variedade histórica, econômica, política e cultural desses locais já revela como o termo neoliberalismo agrega sem diferenciar. Ele explica sem produzir informação,  no sentido batesoniano de “diferença que faz diferença” e James Ferguson (2010) destaca que neoliberalismo tem sido utilizado na maioria das vezes como  “um sinônimo descuidado para capitalismo” (171). A elasticidade que caracteriza os usos do neoliberalismo é demonstrada também por sua capacidade de adjetivar fenômenos empiricamente opostos na literatura. Assim, a expansão do agrobusiness e das sementes geneticamente modificadas é neoliberal, assim como o consumo de classe média e alta de produtos orgânicos; a destruição do meio ambiente e o avanço de determinadas regulamentações ambientais são ambos neoliberais; a destruição do patrimônio cultural, assim como o crescimento da indústria do patrimônio cultural são neoliberais; o islamismo político e a sua crítica secularista são ambos  neoliberais; a defesa do modelo clássico de meritocracia é neoliberal, assim como as políticas da identidade que o questionam. Em sua etnografia The moral neoliberal, que trata do crescimento do apelo afetivo à compaixão e ao voluntarismo na “Itália neoliberal”, ou seja, contemporânea, Andrea Muehlebach dá tons místicos e hegelianos a essa entidade metafísica argumentando que “O neoliberalismo é uma força que contem sua própria negação” (2012: 25).

Outro problema é a economia moral que acompanha o uso do termo. “Neoliberalismo” tornou-se um poço onde cabem todas as mazelas de um mundo melancólico. Esse anti-intelectualismo tende a torná-lo imune à crítica epistemológica, que passa a ser prontamente acusada de conluio com  o mal[1]. Em um contexto pós-Guerra Fria, em que a esquerda visivelmente perdeu sua capacidade propositiva com a crise do trabalho organizado e da nação (Brown 1999), a luta contra o neoliberalismo enquanto “tudo que está aí” parece ter se tornado um fetiche, e isso tem efeitos na academia. O termos é muitas vezes utilizado como um disclaimer moral, que garante a boa fé do autor entre seus pares, mesmo quando seu argumento prescinde de uma definição clara (geralmente uma forma de fundamentalismo econômico e Darwinismo social). Como destaquei nos exemplos acima, uma das características desse uso genérico de neoliberalismo é que ele presume que a forma política não importa, sendo frequentemente abordado como uma força abstrata e exógena, o tipo de agente que Latour chamaria de “o Grande Leviatã”. Como resultado, o trabalho de definir o neoliberalismo tornou-se bem mais desafiador (e talvez interessante) do que o trabalho de apontar para suas evidências.

Meu objetivo com essa introdução não é rejeitar de antemão o valor do conceito de neoliberalismo ou apontar de forma acusatória para o fato de que ele tenta explicar tudo, logo não explica nada (Laidlaw 2015). Isso seria muito fácil. O próprio argumento hegeliano de Muehlebach pode estar apontando para propriedades singulares desta formação ideológica, sua opacidade como meio de expansão. Philip Mirowski caminha em direção similar quando argumenta que a plasticidade do neoliberalismo enquanto conceito pode ser mais do que um problema epistemológico: “O neoliberalismo continua sendo uma ideologia importante que é mal compreendida, mas curiosamente, retira parte de sua força prodigiosa dessa obscuridade” (2009: 426). Mas para avaliar essa tese, primeiro precisamos de uma definição.

 Acadêmicos obviamente têm utilizado, mas também debatido, polemizado e tentado dar maior clareza a esse termo. Ou seja, seus problemas epistemológico são bem conhecidos e já existe uma série de trabalhos critico-reflexivos interessados em distinguir escolas analíticas ou paradigmas (por exemplo, Flew 2014). Considero esses debates meta-teóricos uma condição de possibilidade para uma verdadeira antropologia ou sociologia do neoliberalismo, ou seja, um modo de investigação que de fato abarque-o como objeto de pesquisa e não como o nome para um contexto espaço-temporal, o que eu chamaria de uma antropologia ou sociologia sobre o neoliberalismo. Meu objetivo aqui é abertamente exploratório e necessariamente incompleto. Proponho discernir do imenso número de publicações em torno deste tema três modos possíveis de definir o neoliberalismo: economia política, cultura, e constelação de técnicas de governo e auto-governo.

Economia política

Abordagens ligadas à economia política apresentam a visão mais sistêmica e estruturada do neoliberalismo ao defini-lo como uma  doutrina macroeconômica correspondente a uma ideologia politica e um tipo de estado. Sob uma ótica macroeconômica, o neoliberalismo teria quatro pilares: desregulamentação da economia, liberalização do comércio e  indústria,  privatização de empresas estatais e ortodoxia monetarista (estabilidade de preços, orçamentos equilibrados, austeridade). De fato, alguns autores notam que o termo “monetarismo” foi utilizado por muito tempo para designar o que hoje chamamos por neoliberalismo. Esses princípios econômicos implicam um modelo específico de desenvolvimento, que redefine os papéis do trabalho, do capital e do Estado. A composição estrutural dos estados é alterada pela financeirização da economia, que atribui maior protagonismo a este setor na expansão do crédito e da dívida através da desregulamentação dos bancos, levantamento dos controles de capital e remoção das restrições à criação de crédito. Isso se reflete em um rápido crescimento dos mercados financeiros em relação ao estado e à economia produtiva e uma tendência para que uma proporção maior do crescimento do PIB e dos lucros corporativos derivarem de transações financeiras (Epstein 2005). Por fim, o próprio estado deveria absorver, em seu modelo de governança, técnicas administrativas de cunho empresarial, geralmente articuladas em termos de maior flexibilidade, responsividade e dinamismo, valores que supostamente caracterizariam a iniciativa privada.

David Harvey define o neoliberalismo como “uma teoria de práticas políticas econômicas que propõe que o bem estar humano pode ser mais bem sucedido através da incitação das liberdades e habilidades empresariais individuais dentro de uma estrutura institucional caracterizada por fortes direitos de propriedade, mercados livres e livre comércio” (2005: 2). Ele seria sobretudo o projeto ideológico da nova direita que emerge nos anos 1980 e que ganhou ascendência nos Estados Unidos de Ronald Reagan e na Grã-Bretanha de Margaret Thatcher após as crises fiscais que afetaram o modelo keynesiano dominante nos países desenvolvidos até os anos 1970 (Welfare State e New Deal). Harvey destaca como fenômenos imprevistos pelo paradigma keynsiano, como inflação simultânea ao aumento do desemprego, abriu o espaço para novas ideias econômicas, entre elas o monetarismo, as teorias da escolha racional, e o conjunto de propostas da Sociedade Mont Pelerin, orientadas para a escola austríaca de Hayek e Von Mises e aprofundadas por Friedman em Chicago. O fio condutor que agregava essas tendências distintas seria a pressuposição de que “a intervenção do governo era o problema e não a solução, e que uma política monetária estável, mais cortes radicais de impostos nos escalões superiores, proporcionaria uma economia mais saudável, alinhando corretamente os incentivos para a atividade empresarial” (Harvey 2005: 54).

O neoliberalismo teria se disseminado no mundo “em desenvolvimento” através de instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, que utilizaram essa reformas macroeconômicas como condicionantes contratuais. Essas instituições de certa forma abstraíram o neoliberalismo de seu contexto nortista como uma espécie de base tecnocrática para o “desenvolvimento” global. Como sabemos, o Chile de Pinochet, que fez uso direto da expertise dos chamados “Chicago Boys” foi um dos primeiros laboratórios para as reformas neoliberais. Os chamados programas de ajustamento estrutural fizeram dessas organizações internacionais agentes centrais no processo de redemocratização na África durante os anos 1990. O termo “neoliberalismo” de fato ganha fluência ampla durante esse processo de transnacionalização e as desigualdade sociais e crises políticas e econômicas geradas por sua implementação contribuíram para que adquirisse a valência negativa que tem hoje nas ciências sociais. A expansão desta agenda reformista foi estimulada pelo colapso das economias socialistas da União Soviética e da Europa Oriental no final dos anos 80, e pelo movimento “Terceira Via” associado a líderes como Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schroder, que procuraram mover seus partidos de centro-esquerda em direções mais “amigáveis ao mercado”, assim como FHC e Lula no Brasil (Saad Filho e Morais 2018). Mudanças análogas são atribuídas a Deng Xiaoping na China[2].

De acordo com Barnett, abordagens estruturais para o neoliberalismo tendem a tratá-lo como “um projeto ideológico coerente com origens claras e inequívocas, cuja difusão é sustentada e circulada por um conjunto identificável de instituições” ( 2005: 8). Ele “se difunde para baixo e para fora a partir de um conjunto coerente de pólos institucionais localizados nos Estados Unidos e na Europa” (ibid). Da fato, autores como Harvey tratam o neoliberalismo como um “projeto” unitário e classista, “o projeto neoliberal”. Ou seja, ele não é, em última instância, um projeto social amplo, mesmo que equivocado, mas uma ideologia das elites econômicas que visa ganhar ou resgatar do pacto keynesiano o controle da sociedade como um todo. Harvey qualifica o projeto neoliberal como “utópico”, ou seja, sua visão de uma sociedade coetânea com o mercado é literalmente inviável. Harvey destaca que a hegemonização do neoliberalismo teve o papel de ocultar contradições através da captura de instituições culturais e estatais de modo a assegurar o consentimento popular apesar de seus efeitos deletérios.

Poderosas influências ideológicas circularam através das corporações, da mídia e das inúmeras instituições que constituem a sociedade civil – tais como universidades, escolas, igrejas e associações profissionais. A “longa marcha” através destas instituições . . a captura de certos segmentos da mídia, e a conversão de muitos intelectuais para formas neoliberais de pensamento, criou um clima de opinião em apoio ao neoliberalismo como garantia exclusiva de liberdade. Estes movimentos foram posteriormente consolidados através da captura de partidos políticos e, em última instância, do poder estatal (Harvey 2005: 40).

Wacquant caminha em direção similar quando define o neoliberalismo como “um projeto transnacional” originado nos Estados Unidos e difundido por uma nova classe dominante, buscando a reorganização de cima para baixo das “relações entre mercado, estado e cidadania” (2010: 213); em suma, um tipo de engenharia social. Ao mesmo tempo, esta classe social emergente, treinada por instituições que compartilhavam as mesmas perspectivas, adotou quadros mentais e disposições que não estão inteiramente sob seu controle. Um novo senso comum emerge da capacidade de abstração do discurso burocrático (Bourdieu e Wacquant 2001), atualizado em conferências, relatórios, comissões e institutos, gerando assim a “globalização da problemática americana” (Bourdieu e Wacquant 1999: 46). A esse braço tecnocrático se agregaria o braço repressor do estado policial.

Em seu trabalho sobre o sistema carcerário nos EUA, Wacquant destaca que o neoliberalismo não é uma proposta de redução do Estado, mas um projeto quintessencialmente político que funda um estado de “tipo centauro”. Esse estado aumenta a liberdade em um dos extremos da divisão de classes e, ao retirar cobertura social, oferece ao excluídos apenas medidas punitivas. Isso o leva a sugerir que o vínculo entre a crescente liberdade econômica em certos setores e a “penalização da pobreza” não seria acidental, mas um “elemento central da implementação doméstica e da difusão transnacional do projeto neoliberal, o ‘punho de ferro’ do estado penal acasalando com a ‘mão invisível’ do mercado em conjunto com o desgaste da rede de segurança social” (Wacquant 2009: 67). Tal simbiose teria três funções: (a) neutralizar as frações supranumerárias da classe trabalhadora e rebeldes dentro de seu ambiente social; (b) disciplinar elementos dessocializados dos empregados e elementos inseguros da classe média; e (c) reforçar e reafirmar o papel do Estado, das elites e da ideologia meritocrática. Wacquant defende de modo bastante claro que a síntese entre mercado e punitivismo seria o “núcleo institucional” (76) do neoliberalismo. Se comparado a Harvey, nota-se aqui um foco maior na coerção do que no consenso induzido.

De maneira geral, autores como Harvey e Wacquant tendem a tratar o neoliberalismo como uma fase do capitalismo. Assim, neoliberalismo estaria para a globalização econômica e capitalismo financeiro, assim como o keynesianismo esteve para o capitalismo nacional monopolista entre os  anos 30 e 70, e o liberalismo clássico esteve para o capitalismo competitivo do século 19. Ortner segue o mesmo padrão quando argumenta que: “o neoliberalismo é simplesmente o capitalismo tardio tornado consciente, levado a extremos e com efeitos mais visíveis” (2020: 19).

Como destaquei na introdução, vejo com desconfiança a tendência a definir o neoliberalismo como um período e a comparação como o termo capitalismo tardio é de fato útil. Capitalismo tardio é um marcador temporal de ordem descritiva, que caracteriza transformações estruturais nas cadeias produtivas e nos regimes de valor, como destaca o próprio Harvey (1992) em trabalhos anteriores, Lash e Urry (1988), entre outros. Ele remete à transição de modos Fordistas ou Tayloristas para formas mais flexíveis de produção, regulamentação e organização do local de trabalho, que começaram nas democracias ocidentais industrializadas nos anos 60 e 70. Isso se associa, por exemplo, à transferência ulterior de grandes segmentos da produção industrial para o “Terceiro Mundo” e uma mudança de ênfase dos bens de consumo duráveis para os intangíveis: informação, comunicação, serviços (o “setor terciário”).  A comodificação gradativa da informações e dos serviços indicava que não eram apenas novos produtos que estavam entrando em circulação; os meios de produção de novos produtos se tornaram produtos (programas de computador, sistemas de design, consultoria de gerenciamento, etc.), incluindo pessoas elas mesmas, crescentemente engajadas em formas de trabalho “emocional” e “afetivo” (Hoschchild 1983, Hardt 1999).  Por sua vez, neoliberalismo é sobretudo uma ideologia política, uma agenda abertamente (e não apenas tacitamente) normativa sobre a relação adequada entre o estado, o capital, a propriedade e os indivíduos. Quando votamos, por exemplo, não perguntamos se o candidato é Taylorista ou Toyotista. Assim, quando utilizamos neoliberalismo como um contexto espaço-temporal estamos oscilado de maneira incerta entre ideologia e infraestrutura econômica, o que fatalmente leva ao problema da historicidade.

Em um artigo sobre a “historicidade do estado neoliberal”, Mathieu Hilgers (2012) critica as abordagens estruturais acima por tomar o neoliberalismo como uma forma ideológica universal e abstrata meramente ilustrada através de estudos de caso, um modelo type/token especialmente problemático para os antropólogos. Bourdieu  de fato destacou com destreza o poder de abstração, de opacidade a contextos, que caracterizaria a burocracia neoliberal, mas toda implementação de políticas econômicas implica em algum tipo de negociação, fricção e  modificação de modelos, como demonstra uma série de trabalhos de cunho mais etnográfico sobre a burocracia (por um exemplo clássico, ver Herzfeld 2016). Hilgers demonstra como em diversos casos africanos, a liberalização econômica não esteve necessariamente aliada à redução de gastos estatais com bem-estar social, muito menos com um aparato penal em rápida expansão, apesar de Ferguson  (2006) destacar a emergência de “enclaves” de soberania que articulam capitalismo extrativo e empresas de segurança privada (ambos globais). 

Como destaca Kaviraj (2005), a modernidade em contextos pós-coloniais se singulariza por encadeamentos históricos distintos de mudança sociais relativamente lineares ocorridas nos centros metropolitanos, o que serve de advertência ao modelo histórico genérico que fundamenta as teorias estruturais da economia política. A sucessão liberalismo, keynesianismo, neoliberalismo não se aplica aos casos de África, América Latina e Ásia e isso faz com que as reformas neoliberais respondam a problemáticas e campos de forças específicos. Além disso, a associação  entre neoliberalismo e redução do investimento social do estado não se aplica aos países da OCDE, nem ao Brasil, pelo menos em médio prazo. A questão parece ser como esses gastos são dirigidos, e encontramos grande variedade de respostas. Em suma, a diferença entre a auto definição do neoliberalismo, por exemplo, sua crítica genérica à ineficiência do estado, e sua implementação não se dá somente como uma tática de poder, como assume Harvey, mas também como efeito diferenciador gerado pela contextualização, incluindo as contingências da politica democrática. O processo político pode até levar a uma dissociação entre neoliberalismo e conservadorismo pró-elites, ou, pelo menos a uma visão mais matizada e menos unitária sobre seu poder. Exemplifico.

A maioria dos trabalhos antropológicos que tomam o neoliberalismo como contexto tendem a focar ou em sua violência socialmente desagregadora, o que Ortner chamou de “Dark Anthropology” (2016), ou em casos de resistência, mantendo a nitidez sistêmica da linha entre dominadores e dominados. Mas existem casos bem mais limítrofes. Em sua discussão sobre a criação de novas municipalidades rurais entre comunidades indígenas na Bolívia, Orta (2013) observa que “existe uma curiosa sinergia entre os modos de governança neoliberal e as técnicas indígenas de reprodução comunitária” (120), e argumenta que a descentralização política e administrativa associada às reformas neoliberais do estado na Bolívia (definido como “semi-neoliberal”) tem sido fortalecedora em nível local; apesar de nociva em nível nacional[3]. Comentando sobre o crescimento de programas de renda mínima no sul global, como no Brasil, México, Bangladesh e África do Sul, James Ferguson comenta que:

O raciocínio aqui frequentemente inclui elementos reconhecidamente neoliberais, incluindo a valorização da eficiência do mercado, a escolha individual e a autonomia; a questão do empreendedorismo; o ceticismo sobre o estado como prestador de serviços. Mas as políticas são declaradamente (e, penso eu, genuinamente) “pró-pobres” e neoliberais – é a estranheza desta conjunção que é de interesse aqui (2010: 176).

Raciocínio similar pode ser estendido ao universo das ONGs. Elas são um dos mais distintos frutos do chamado neoliberal para maior participação da sociedade civil nas demandas sociais. E mesmo que entendamos seu protagonismo como um reflexo problemático e despolitizado de dinâmicas de socialização das dívidas e individualização das responsabilidades, o universo de intervenção dessas organizações é dificilmente redutível (pelo menos in toto) a um “projeto das elites”. Com efeito, com referência às economia populares na Argentina, Veronica Gago (2018) propõe falar de um “neoliberalismo desde baixo”.

Cultura neoliberal

Autores interessados pelo que chamaria de “cultura neoliberal” ajudam a refinar o problema da hegemonização do neoliberalismo. Utilizo o termo cultura  aqui de modo frouxo, como conjuntos compartilhados de crenças, práticas e instituições geradoras de disposições e atitudes valorativa singulares. Em O Terceiro Espírito o Capitalismo, Boltanski e Chiapello (2009) endereçam de maneira rica uma questão sugerida na seção anterior: a imunidade à crítica adquirida pelo capitalismo contemporâneo. Eles assumem que, se a ideologia dominante persiste de maneira tão veemente apesar de seus efeitos deletérios, ela não pode ser reduzida a uma simples expressão dos interesses particularistas de classe, tendo sido capaz de aceitar e mesmo absorver pontos de vista críticos. Além da cultura mais genérica transmitida pelas escolas, famílias e mundo do trabalho, o “novo espírito do capitalismo” seria difundido através da formação das elites e da instilação de valores que fornecem justificativa moral e motivação pessoal para o engajamento. Sua análise dos livros de gestão utilizados no treinamento de  executivos explora as ressonâncias entre a cultura do neoliberalismo e a “crítica artística” progressista dos anos 60 e 70 contra formas verticais de controle. Assim, a problematização empresarial dos modelos administrativos centralistas e burocráticos que caracterizaram o pacto keynesiano [segundo espírito] se apropria de valores transgressores da crítica artística – como inovação, flexibilidade e autenticidade  – ao mesmo tempo em que escanteia seus aspectos sociais relativos ao capitalismo. 

 A análise de peças de discurso empresarial, cujos vários componentes são hoje cada vez mais difundidos na esfera pública em geral, fornece um meio mais situado para se traçar a disseminação de valores e disposições que “positivam” as instabilidades estruturais geradas pela desregulamentação neoliberal ao enquadrá-las como oportunidades para a auto-realização dos sujeitos.  Penso, por exemplo, na mitologia contemporânea do empreendedor como “risk-taker”, que constrasta com a racionalização frugal e puritana do tempo e do investimento no primeiro espírito do capitalismo,  ou a moralização negativa da estabilidade empregatícia enquanto “acomodação”. Essa mudança no ethos das elites (cada vez mais expandida para os trabalhadores de modo geral) inclui reformas no conceito liberal clássico de “meritocracia” causadas pelo resgate de valores antes considerados“patrimoniais”, como habilidades de socialização e persuasão e manutenção de redes pessoais (networking).  Na conclusão da Ética protestante, Weber já de fato intuíra que o progressivo esvaziamento da dimensão transcendente e ascética da “vocação” puritana tenderia a dar lugar a uma ethos econômico “esportivo” (como na famosa meta-narrativa americana dos losers e winners). Essa temporalidade  errática tender a ser acelerada em um contexto financista em que risco, securitização, e aumento da “fluidez” capitalizam justamente a contingência e produzem cadeias cada vez mais “derivativas” de prognósticos como um modo de governar o futuro sem domesticá-lo.

O diagnóstico de que o neoliberalismo implicaria em uma eventual reversão no processo de secularização do tempo da profecia para o prognóstico racional (Kosseleck 2006) parece sustentar o trabalho de Jean e John Comaroff (2000) sobre a cultura do “capitalismo milenarista”. Para os Comaroff, a ética do neoliberalismo repousa na crença de que é possível produzir riqueza quase que por magia. A sofisticação dos mercados, produtos e tecnologias dá ao capitalismo financeiro um grau de autonomia com relação às cadeias produtivas sem precedentes na história da economia política. Com a desmaterialização da economia, as ações e os mercados de futuro realizam o sonho dos alquimistas de gerar riqueza ex nihilo. Essa base especulativa para a produção e acúmulo de valor reflete-se em uma economia moral que rompe com o modelo weberiano da ética do trabalho e da racionalização e incita a disseminação das chamadas “economias ocultas”. O reaquecimento da economia dos milagres, oráculos e bruxaria nas franjas pós-coloniais ou a proliferação generalizada de esquemas de pirâmide podem ser vistos como a contra-face popular da cultura empresarial explorada por Boltanski e Chiapello.

Precariedade, mais do que desigualdade ou pobreza, tem sido o termo privilegiado para endereçar o horizonte temporal de exceção deste capitalismo de cassino (Han 2011, Stewart 2012). Ansioso e refratário ao planejamento, esse horizonte basicamente corrói o futuro de médio prazo (Guyer 2007) com as urgências do futuro próximo, ao mesmo tempo em que o futuro de longo prazo decai de utópico a escatológico. Com a transição generalizada dos empregos e carreiras para os trabalhos pontuais de curto prazo, a precariedade não é mais exclusividades dos depauperados.

Uma corrente alternativa de estudos sobre a cultura neoliberal se debruça sobre a redefinição da cidadania e da etnicidade em termos mercadológicos. Trata-se da objetificação neoliberal da “cultura” e as dimensões mercadológicas do multiculturalismo. Thomas Eriksen (2015) menciona o caso dos Sami, do norte da Escandinávia, cujas lutas por reconhecimento transitaram da reivindicações por terra, autonomia política e direitos linguísticos para a exploração do valor étnico de sua cultura através do turismo:

Uma mulher Sami, que agora recebe turistas em sua casa, servindo comidas tradicionais e entretendo os visitantes com histórias e mitos Sami, explica que esta atividade a coloca em contato com suas origens de maneiras que parecem mais autênticas do que a atividade política. Agora, diz ela, as pessoas pagam voluntariamente para ouvir suas histórias, para se familiarizar com o estilo de vida sami e para comer comida sami. Isto, por sua vez, tornou necessário para ela mesma reaprender sua herança meio esquecida (915).

Esse tipo de revitalização cultural individualizada, apolítica e enquadrada por uma ética da auto-realização é implementada como uma forma de “branding” coletivo chamada pelos Comaroff (2009), em outra ocasião, de “etnicidade inc.”. O conceito foi inspirado na recente institucionalização dos Zulu enquanto etno-empresa incorporada no mercado de venture capital (incluindo o parque temático “Shakaland”) e é ilustrado no livro por outos casos, como os cassinos indígenas americanos, a transformação de identidades nacionais em logomarcas, religiões declaradas propriedade intelectual e empresas de marketing especializadas em populações étnicas.

De maneira geral, o que chamei aqui de abordagens culturais dotam de carne e cotidiano as estruturas sistêmicas apresentadas pela economia política e assim elaboram de modo mais concreto sobre o trabalho pedagógico (e/ou hiper-ritualizado) de hegemonização do neoliberalismo. Seu grau de refinamento, no entanto, tende a variar de acordo com a escala de análise, indo de uma “cultura neoliberal” global e genérica a mergulhos mais cuidadosos sobre casos particulares, com maior densidade etnográfica.  De certa forma, esse paradigma exemplifica bem como as virtudes e vícios do conceito de neoliberalismo têm a mesma fonte. Por um lado, ele nos ajuda a articular fenômenos tão díspares quanto escolas macroeconômicas, sistemas prisionais, literatura de administração, zumbis e turismo étnico. Por outro,  o que aparece como “ar de família” muito rapidamente se transforma em efeitos intercambiáveis de uma mesma “força” abstrata e exógena. Como pesquisador do pentecostalismo, por exemplo, considero a equação feita pelos Comaroffs entre derivativas, casinos, esquemas de pirâmide e teologias da prosperidade interessante, mas excessivamente genérica para me ajudar a lançar luz sobre esse movimento religioso (Reinhardt 2021). O mesmo vale para o debate sobre a mediação mercadológica da cidadania e das identidades, que me parece ignorar como indivíduos e coletividades podem mobilizar esses recursos sem serem, pelo menos totalmente, tragados por sua lógica (ver Carneiro da Cunha 2009). Para evitar essa guiada repentina de uma ideologia para um contexto sem externalidade possível é necessário desagregar o neoliberalismo em seus componentes e traçar sua formação e adaptação, algo que acredito diferenciar a terceira abordagem, centrada nas tecnologias de governo e auto-governo.

Governamentalidade

Poder verticalizado, Estado que age na sociedade de modo unificado e coerente e ideologia dominante que alicia as massas aos projetos político-econômicos da elite. Os traços essenciais das abordagens estruturais para o neoliberalismo soam como uma descrição didática de tudo que Foucault intentou desfazer com sua teoria da governamentalidade. Foucault destaca que os mecanismos do governo liberal não dependem da produção de uma forma generalizada de consentimento e que o Estado não possui caráter geral de classe ou mesmo unidade, sendo composto por uma constelação de dispositivos que exercem seu poder não apesar, mas através da liberdade dos sujeitos políticos, eles mesmo individualizados pelo estado de direito e totalizados enquanto “povos” democraticamente soberano e “populações” biopoliticamente administradas por regimes probabilísticos de conhecimento e expertise.

Foucault também forneceu uma análise pioneira sobre o neoliberalismo em seu curso O Nascimento da Biopolítica, de 1978. Nele Foucault reitera seu desgosto por análises sistêmicas ao observar que evita uma teoria do estado como se “evita uma refeição indigesta”, vendo “o estado [como] nada mais do que o efeito móvel de um regime de múltiplos governos” (Foucault 2008: 77). Foucault identificou a ascensão do neoliberalismo em termos de uma reação intelectual à economia keynesiana e ao welfare state, por um lado, e a prioridade dada às políticas econômicas de capacitação e conformidade com o mercado na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, por outro. Enquanto as ideias associadas à Hayek e à Escola Ordoliberal Alemã de economistas e historiadores foram relativamente marginais durante grande parte das décadas de 1940 e 1950, elas ganharam adeptos importantes nas décadas de 1960 e 1970. De particular importância foi a aliança intelectual formada com o trabalho que estava sendo realizado pela Chicago School, que propunha uma “generalização mais profunda da forma econômica do mercado … em todo o corpo social” (Foucault 2008: 243). Foucault nota que os autores americanos procuravam “estender a racionalidade do mercado, os esquemas de análise que ela oferece e a crítica da decisão que ela sugere, a domínios que não são exclusivamente ou não primariamente econômicos: a família e a taxa de natalidade, por exemplo, ou a delinquência e a política penal” (323).

Um ponto inicial que merece destaque é como Foucault discerne diversas linhagens de neoliberalismo enquanto um “estilo de pensamento”: a “economia social de mercado” ordoliberal, a escola austríaca e a escola americana. Essa pluralização interna do fenômeno fornece um importante contrapeso para a tendência a homogeneizar o neoliberalismo enquanto Zeitgeist e ajuda a entender as variações regionais, combinações, disputas internas e inovações advindas de sua globalização[4]. Esse maior potencial analítico também indica que Foucault oferece uma leitura do neoliberalismo como genuinamente uma ideologia ou um conjunto delas, um “ismo”. Isso  pode se dever ao fato de ele não ter vivido para ver a sua implementação, mas como destaquei, acharia difícil que ele corroborasse usos contemporâneos do termo “estado neoliberal” ou definições do neoliberalismo como contexto histórico-geográfico. Foucault está interessado sobretudo nos diversos dispositivos de governo gestados e gestáveis por essa matriz ideológica e sua articulação particular da Verdade econômica e política.

Foucault destaca como os autores neoliberais se esforçaram explicitamente para distinguir-se do liberalismo clássico, incluindo o papel ativo que imaginavam para o governo na criação das condições para a difusão de mercados e mecanismos semelhantes aos de mercado. De acordo com Miller, Foucault percebe que “a grande contradição do neoliberalismo é sua paixão pela intervenção em nome da não-intervenção ” (2010: 56). Embora a governamentalidade neoliberal procure minimizar ao máximo o poder do Estado, ela também reconhece que o mercado só pode ser mantido viável através de apoio governamental e legal ativo. Como destacam autores como Albert Hirschman e Louis Dumont, a tradição liberal trabalhou intensamente para legitimar a economia moral e passional do mercado como expressão e realização última da natureza humana universal. Em contraposição, Foucault destaca que o neoliberalismo é abertamente construtivista e que em sua visão o Homo Economicus não é a de um ser natural com formas previsíveis de conduta, mas uma forma de subjetividade que deve ser trazida à existência e mantida através de relações de poder destinadas a encorajar e reforçar as práticas individuais de subjetivação.

O aspecto que exemplificaria este axioma de forma mais clara é a substituição do dispositivo “força de trabalho” por “capital humano” ou “capital hábil”,  baseado na concepção de um “sujeito empreendedor” ou um “empreendedor do Self”, que administra a si mesmo de maneira racional e “vende” seu pacote de habilidades no mercado, sendo em ultima instância responsável por sua “empregabilidade”. Se, desde a sua formação soberana, o estado moderno foi progressivamente governamentalizado através de dispositivos disciplinares e biopolíticos, trata-se agora de transferir essas tecnologias de governo para a chamada “sociedade civil” através de novos arranjos regulatórios. Urciuoli (2008) exemplifica esse procedimento ao analisar o surgimento do “discursos de habilidades” dentro do cenário corporativo e educacional dos EUA, no qual estudantes e trabalhadores são conceituados como “pacotes de habilidades”. Especialmente as habilidades “suaves” [soft skills] – como aquelas relativas à comunicação, às relações humanas e à liderança – são entendidas como facetas da personalidade individual com valor de troca no mercado de trabalho. Urciuoli traça como as soft skills têm suplantado as hard skills relacionadas às tarefas manuais e mecânicas – e argumenta que as primeira inevitavelmente “representam uma confusão de linhas entre o self e o trabalho, fazendo com que se repense e transforme o self para melhor se adequar ao próprio trabalho, algo que é altamente valorizado em uma economia cada vez mais orientada para a informação e o serviço” (Urciuoli 2008: 215). Dunk (2002) mostra como os serviços de “aconselhamento” e “reciclagem” disponíveis para trabalhadores da indústria do papel no Canadá enfatizam a responsabilidade do trabalhador individual em ser flexível e se ajustar aos caprichos do mercado de trabalho, reforçando um entendimento instrumental, individualizado e competitivo da perda de empregos e ajuste econômico que redireciona a atenção dos trabalhadores para longe das razões estruturais de sua situação, excluindo assim qualquer possibilidade de solidariedade do trabalhador. 

Processos análogos de governo através da incitação do cálculo individual, da responsabilização e da auto-gestão empreendedora dos sujeitos tem sido observados por pesquisadores em campos que excedem o explicitamente econômico, como a segurança (vigilância comunitária), a saúde e a psicologia centradas na temporalidade preventiva, assim como em pedagogias humanitárias e religiosas dedicadas à habilitação empreendedora. No campo político, autoras como Melinda Cooper (2017) e Wendy Brown (2019) destacam como o neoliberalismo não apenas privatiza atribuições do estado e assim fragmenta estratégias classistas no campo do trabalho, mas também expande o privado na direção relacional que Hayek chama de “esfera pessoal protegida”, incluindo uma ênfase moral renovada na família (lembrando que o complemento do famoso adágio de Tatcher de que “não existe sociedade” é “o que existe são homens e mulheres individuais e suas famílias“). Isso explicaria sua ressonância a princípio surpreendente com o conservadorismo moral.

Foucault também antecipa algumas das implicações da racionalidade de governo neoliberal para a gestão biopolítica das populações. Ele nota que a governamentalidade neoliberal evita qualquer tentativa de redistribuição geral de renda e que a pobreza relativa deixa de ser um problema político.  Seu foco recai sobre a pobreza absoluta, o que dá origem a um novo tipo de estratificação das populações:

O pleno emprego e o crescimento voluntarista são renunciados em favor da integração a uma economia de mercado. Mas isto envolve um fundo de população flutuante, de uma população liminar, infra- ou supra-liminar, no qual o mecanismo de garantia permitirá que cada um viva de tal forma que possa sempre estar disponível para um possível trabalho, se as condições do mercado assim o exigirem. . . . A eles é garantida meramente a possibilidade de existência mínima em um determinado nível, e desta forma a política [policy] neoliberal pode funcionar (2009: 207)

O “exército de reserva” detectado por Marx na Grã-Bretanha industrial no século XIX torna-se assim um componente estrutural previsto pelo sistema administrativo, uma população interpelada pelo estado através de “interesses” estatisticamente extraídos e cada vez mais fragmentários (além do braço punitivista destacado por Wacquant). Benefícios de saúde, por exemplo, são desagregados em políticas, esquemas e agências separadas para, digamos, mães trabalhadoras, homens aposentados, meninas, crianças em idade escolar rural, deficientes, vítimas de determinada doenças crônicas, etc., e as exigências e demandas públicas também se tornam desagregadas. A lógica keynesiana dos “direitos sociais” constitucionalmente garantidos dá lugar assim a uma miríade de auxílios para “grupos de interesses”. Como não existe um direito geral em torno do qual um coletivo de massa como um sindicato nacional possa agitar ou barganhar, o campo das exigências sociais se torna completamente heterogêneo. Essa nova dinâmica governamental tem se mostrado extremamente fértil em países em desenvolvimento, em que vastas seções da população de fato nunca entraram nas relações capitalistas de produção e são incorporadas pelo aparato do estado através de auxílios justaponíveis, conformando uma espécie de estado de bem estar social de exceção, que mantém o “capital humano” em constante espera (e “auto-aperfeiçoamento”), alerta para quando (e se) o mercado de trabalho requisitar sua colaboração. Seu análogo nos países desenvolvidos são hoje os imigrantes e refugiados.

Claro que essa expansão de pesquisas em torno do mesmo padrão iterável em diversas instâncias da vida pode gerar uma deformação no modelo foucaultiano e inflar o neoliberalismo em hegemonia e tipo de estado. Mas o método não-estrutural de definir o neoliberalismo como um tipo de racionalidade e traçar dispositivos específicos de subjetivação em sua formação, difusão e implementação tem a virtude de submeter esse conceito a uma análise mais empírica e historicamente situada, que não assume que tudo que as pessoas e instituições fazem é “neoliberal”. Isso tende a torná-lo mais aberto à falseabilidade, logo mais apto a produzir conhecimento.

Outra vantagem desta abordagem é que ela prescinde da ideia sistêmica de um ponto global de emanação, seja ele classista ou institucional. De acordo com Lazarratto (2012), como modalidade de governo, o neoliberalismo não é rastreável a uma única instituição ou fonte, seja o FMI, o Banco Mundial ou o mercado financeiro. Ele transcende oposições fáceis, tais como estado vs. mercado ou economia “real” vs. financeira. Sua unidade “não é sistêmica, mas operacional, ou seja, constitui uma ‘política’ que dá origem a composições e unificações sempre parciais e temporárias” (107). Estes conjuntos podem agregar partidos políticos, instituições financeiras, empresariais e de serviços, burocracias, mídia, universidades, humanitarismo e organização religiosa através de múltiplos arranjos e constelações de tecnologias de governo e auto-governo.

O trabalho clássico de Aihwa Ong (2006) no Leste e Sudeste Asiático é exemplar nesse sentido, já que revela a proliferação de soberanias diferenciadas, regimes de direitos e cidadanias dentro e fora das fronteiras nacionais, com o objetivo de maximizar as conexões com o capitalismo. Os Estados diferenciam suas políticas de acordo com zonas de intervenção (tais como turismo, agricultura, indústria, saúde, trabalho) e populações-alvo. Desta forma, a governabilidade neoliberal favorece um conjunto heterogêneo e flexível de cálculos, escolhas e exceções que constituem segurança, vida e ética, ao invés de um sistema totalmente coerente. Ela se soma a dispositivos de outras ordens e períodos, incluindo a coerção aberta e formas disciplinares clássicas, o que leva Ong a de fato assumir que “o neoliberalismo em si não é a característica geral das tecnologias de governo” (Ong 2006: 3) asiáticas.       

Conclusão

Concluo sublinhando que, para além da questão do rigor científico,  a necessidade de se desenvolver uma sociologia ou antropologia do neoliberalismo e não apenas sobre o neoliberalismo, é também política. Nesse sentido, é interessante notar que os Membros da Sociedade Mont Pelerin utilizaram esse termo no fim dos anos 50 para diferenciar sua visão do liberalismo clássico, mas o abandonaram rapidamente. Em geral, pode-se dizer que, com o tempo os neoliberais doaram de bom grado o termo para seus críticos. Medida de fato inteligente. Mitchell Dean observa que o Institute for Public Affairs, um think tank australiano pró-mercado, define neoliberalismo como “uma versão esquerdista do aperto de mão secreto; um sinal de que o leitor está com os companheiros de viagem” (Dean 2010: 1). Trata-se obviamente de um gesto estratégico: transformar “neoliberalismo” em uma espécie de teoria da conspiração de esquerda. Obviamente não corroboro essa visão e reconheço a qualidade dos trabalhos que chamei aqui de sistêmicos ou estruturados, mas acredito que a representação unitária, vertical e classista de neoliberalismo fornecida por este acadêmicos possas fornece munição ao inimigo.

Como destaquei na introdução, a inflação semântica e moral do conceito de neoliberalismo  é também um sintoma mais geral da ausência de alternativas ao capitalismo globalizado do pós- Guerra Fria, a ausência literal de um “fora”, real ou ideal, que nos permita objetificá-lo. Nesse sentido, qualquer tentativa de “resgatar” a classe trabalhadora da hegemonia neoliberal, terá que esclarecer para onde esse resgate os levaria ou mesmo o que seria um trabalhador hoje, questões ainda pouco debatida pelas esquerdas, que se encontram em uma luta perpétua para governar uma economia e um estado que não os pertencem mais. Em contraste, Foucault propõe uma pergunta mais interessante: o que a esquerda poderia aprender sobre as práticas de governo a partir da análise da ascensão da mentalidade de governo neoliberal? Ele argumenta que, em contraste com o liberalismo, “O que falta ao socialismo não é tanto uma teoria do Estado, mas uma razão governamental, a definição do que seria uma racionalidade governamental no socialismo. Ou seja, uma medida razoável e calculável da extensão, modos e objetivos de governo” (Foucault 2008: 91-2). Foucault destaca que isso não foi e não será encontrado nos pensadores canônicos do socialismo, nem no chamado socialismo real, cujos modos de governo foram sobretudo o que ele qualifica como “simbiose infeliz” entre socialismo e liberalismo.

O curso de Foucault sobre o neoliberalismo também indica uma reconciliação com Weber, anteriormente criticado, juntamente com a Escola de Frankfurt, por sua teoria da dominação. Weber classicamente se negou a lidar com “o capitalismo” de maneira genérica, fornecendo tipologias de capitalismos, e indicando assim sua rejeição à proposta de que as relações econômicas determinariam ordens sócio-legais particulares.  Foucault compartilha essa visão quando afirma que “O econômico deve ser considerado como um conjunto de atividades regulamentadas desde o início: é um conjunto de atividades regulamentadas com regras que se desdobra em escalas, formas, origens, datas e cronologias completamente diferentes; regras que podem compreender um habitus social, uma prescrição religiosa, uma ética, uma regulamentação corporativa e também uma lei (Foucault 2008: 163). Em suma, se o econômico é, desde o início, um conjunto de atividades regulamentadas e não um “domínio” da vida domesticável por fora, soluções para os problemas contemporâneos não serão encontradas no campo dos valores ou ideais políticos redistributivistas, mas nas práticas de organização e regulação da vida, para onde nossa criatividade deveria ser canalizada. Isso poderia inclusive se dar através do repertório neoliberal, que apesar de não neutro, é sub-especificado, como destaca James Ferguson (2016).

A advertência de Harvey de que o neoliberalismo seria uma “utopia” pode ser usada para destacara a urgência de se desmontar este Grande Leviatã em seus componentes. Primeiramente, a análise crítica é um modo de não ceder ao anti-intelectualismo e pragmatismo que alimenta a própria erosão neoliberal do tempo comum e do sentido de público. A tarefa de expôr brechas ideológicas entre a utopia neoliberal e o “neoliberalismo realmente existente” exige descrições empiricamente detalhadas e conceitualmente abertas, e não apenas listas de exemplos ou manifestos indignados. Segundo, se o neoliberalismo é de fato utópico, é importante perguntarmo-nos por aquilo que impede sua plena realização. Se nem tudo é adjetivável como “neoliberal”, cabe-nos aqui perguntar de modo mais sistemático por aquilo que resta, seja como resistência seja como simples latência irredutível à lógica do capital humano. Passaríamos assim de um pragmatismo conservador (a razão neoliberal é o melhor dos mundos possível, mesmo que melancólico), para uma espécie de socialismo realista, no sentido de Mauss e Graeber, que toma formas relacionais, distributivas e pluralistas de florescimento humano( elas mesmas desde sempre “realmente existentes”) como modelos potenciais para novas razões de governo; razões para resgatar o futuro e quebrar o feitiço temporal que hoje nos confina entre a precariedade e a escatologia.

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[1] Acusações sobre o suposto fascínio de Foucault  pelo neoliberalismo já se tornaram uma subindústria acadêmica (Behrent e Zamora 2015).

[2] Sobre a interessante absorção da lógica neoliberal de mercado sem a assunção de uma noção universal de propriedade privada na China pós-Maoista, ver Weber (2000).

 [3] Por um debate refinado sobre reformas neoliberais, descentralização administrativa e autoctonia em África, ver Hilgers 2011.

[4] Em um trabalho que incorpora insights de Foucault a uma matriz marxista, Laval e Dardot (2016, capítulo 1) antecipam  essa linha do tempo até a crise do laissez-faire liberal do final do século XIX. Destacam o pioneirismo do que chamam de “concorrencialismo social”de Herbert Spencer, inspirado em Darwin e Malthus. Outros, como Leshem (2016), iniciam sua genealogia do neoliberalismo no próprio cristianismo primitivo.

Para citar este post:

REINHARDT, Bruno. As Leituras Elementares da Vida Acadêmica: Neoliberalismo. Blog do Labemus, 2021. Disponível em: https://blogdolabemus.com/?p=17300

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