Por Laurent Gilson (UCLouvain)
Tradução Diogo Silva Corrêa
Tradução da resenha de Laurent Gilson do livro: David Berliner, Devenir autre. Hétérogénéité et plasticité du soi, Paris, La Découverte, 2022, 176 p [1] .
Alguns autores nunca deixam de nos surpreender com a sua capacidade de passar de um tema de pesquisa para outro com tanta facilidade e rigor. David Berliner é, sem dúvida, um deles. Com Devenir autre, o antropólogo assina um livro que interroga a unidade do sujeito humano em termos da sua propensão para a transformação, metamorfose, cisão, fragmentação, em suma, para a sua irresistível projeção numa alteridade múltipla. Ainda que altamente filosófico, o problema ontológico da “plasticidade do self” é original na medida em que aqui é examinado à luz das ferramentas da antropologia, ou seja, com base em situações vividas que o autor subtrai tanto de estudos etnográficos quanto de obras literárias
Construído em sete capítulos, o livro explora sucessivamente “exoexperiências”, que se desdobram em várias modalidades e em de múltiplos contextos. Berliner as define como experiências nas quais um indivíduo ou um grupo sai temporariamente de si próprio para se identificar com entidades, instâncias e personagens, tanto humanas quanto não-humanas, e até mesmo sobrehumanas. O primeiro capítulo investiga o fenômeno do cosplay. Apoiando-se em dados empíricos, Berliner mede até que ponto a encarnação de um personagem fictício (de filmes, videogames, etc.) vai além do aspecto puramente lúdico da identificação. Tal encarnação permite àqueles que se prestam a isso projetarem-se numa versão melhorada de si próprios – um processo de “empoderamento”, quando é o caso – que continua a acompanhá-los fora da situação artificial, na sua intimidade, como um ideal que os ajuda a ultrapassarem as provações da vida.
O capítulo seguinte volta-se para o “tornar-se um animal”. Nele, o autor explora várias experiências cujo objetivo é aproximar-se de pontos de vista e modos de ser-no-mundo não humanos. Desde as tentativas dos cientistas de viver entre cabras ou como texugo a práticas sexuais estruturadas por relações de domínio entre humanos e animais (puppy plan), até performances artísticas de “retorno à condição selvagem” (réensauvagement) e comunidades furries, David Berliner mostra que estas tentativas de identificação com propriedades animais (tais como imaginadas pelos humanos) não cessam de esbarrar na impossibilidade ontológica da metamorfose total, e consistem, em última análise, em “esquecer a própria humanidade” por um momento – “canibalizações passageiras a um outro não-humano” (p. 62) – a fim de voltar a ela novamente, embora de uma forma ligeiramente diferente.
As “reconstituições históricas” são tratadas no capítulo seguinte[2]. Isto porque as encarnações de personagens de outrora (como por exemplo os sósias de Napoleão) durante as reconstituições têm lugar numa relação particularmente rigorosa com a história, uma vez que não se trata simplesmente de “macaquear”, mas de “reencenar”, materializando e tornando a história tangível (o que requer uma meticulosidade sem paralelo na apropriação de fatos e cenários, e ainda mais na incorporação de gestos e comportamentos). Para o autor, quando a reencenação é levada a um grau de precisão tão elevado, a imitação vai para além do pastiche vulgar e é configurada como uma “reformulação” do personagem e de seu período de referência; personagem que pode se tornar um verdadeiro alter ego para os protagonistas, ressuscitado e atualizado nas coordenadas do presente, ao final de um gesto que mistura nostalgia de uma era fantasiada e invenção resolutamente criativa.
O quarto capítulo analisa as implicações cognitivas e emocionais do processo de mudança. Para isso, o autor apresenta-nos os jogos de RPG (role-playing game) em tamanho real. Ao investirem coletivamente em universos fictícios, os jogadores de RPG assumem as características de personagens que interagem entre si. O esforço psíquico tem consequências, na medida em que, para se impregnar de seu personagem, o jogador se obriga a agir como ele, mas também a pensar, sentir e percebê-lo à sua própria maneira. As emoções vividas são reais; testemunham o poder vertiginoso e a intensidade do dispositivo dentro do qual o papel pode se apossar do ator (em vez do contrário), e até ultrapassá-lo. Tanto é que tal transformação requer uma série de rituais, tanto coletivos como individuais, para que as pessoas se desvinculem dos efeitos após o momento de atuação, de modo a progressivamente voltarem à terra, mantendo uma impressão íntima da experiência de encenação.
O capítulo seguinte aparece no livro como uma lufada de ar fresco, já que marca uma pausa entre as explorações etnográficas, para melhor focar nas condições de possibilidade da mudança, do tornar-se outro, condições que David Berliner descreve como “tecnologias da passagem”. Pois se, na verdade, os exemplos acima mencionados atestam todos um ponto de transformação repentino (ou seja, um momento de êxtase fugaz em que o sujeito parece ser habitado, ou mesmo substituído, por uma alteridade), este ponto requer, no entanto, um enquadramento[3] para ocorrer, ou melhor ainda, para ser “enunciado”. E um enquadramento dotado de duas propriedades: por um lado, ele deve reunir um certo número de elementos ad hoc (vestimentas, cenas, fórmulas, cantos, etc.) cuja conjugação com um espaço-tempo torna possível a transformação (um dispositivo, em suma)[4]. Ele deve, por outro lado, responder mais amplamente a uma configuração sociocultural cujos códigos ele empresta para acentuar, travestir, inverter ou subverter, ao ponto de transgredir os limites de tal configuração sociocultural o olhar de outrem. Outrem que reconhece o caráter extraordinária da experiência, até mesmo nela participa plenamente, encarnando, apesar de si mesmo, um ser ou um objeto[5], cujo olhar ou presença são susceptíveis de catalisar a travessia.
Fonte inesgotável de duplicação e um lugar propício para a ambiguidade, a literatura está no coração do sexto capítulo. Mais precisamente, é a atividade e escritor que interessa a Berliner, na medida em que ela se casa perfeitamente com a arte da dissimulação. Os abundantes exemplos tratados[6] são testemunhas disso: muitos autores usam pseudônimos ou codinomes romanescos tanto para expressarem facetas de si mesmos que normalmente estão escondidas quanto para explorarem mundos inacessíveis; e isso para não mencionar a quantidade colossal de ficção que trazem à baila impostores inteligentes, adeptos da duplicidade e da camuflagem, ou mesmo personagens camaleônicos. Todos estes gestos traduzem o quanto o uso de máscaras – particularmente fáceis e com infinitas possibilidades no caso da literatura – apresenta uma potência formidável para operar uma travessia na direção de uma identidade múltipla, dando livre curso ao potencial imaginativo, assim como à expressão do que antes era indizível. No entanto, essa experiência demiúrgica não está isenta de riscos, sendo o principal deles aquele da criatura que escapa ao seu criador, com as terríveis consequências da fragmentação identitária que se segue. Esse capítulo é ainda mais cativante porque aprendemos que o próprio David Berliner se envolveu numa tal atividade ao fabricar um alter ego antropológico cujas crónicas eu, pessoalmente, li assiduamente (e credulamente) durante muitos meses, contribuindo assim para a existência dessa outra face de Berliner na cena pública.
As experiências da multiplicidade do self não se desenvolvem apenas no registo da performance lúdica, elas podem também ocorrer em contextos de violência, e assim tornarem-se avatares do sofrimento. Tal é o tema do capítulo final e, provavelmente, o mais importante. Dominados e violentados, oprimidos e humilhados, precarizados e explorados, membros de grupos minoritários sob vários regimes históricos (populações colonizadas, judeus, afrodescendentes, identidades de gênero e orientações sexuais não convencionais, etc., assim como todos aqueles que acumulam essas várias dessas etiquetas) desenvolvem existências elásticas, com suas contradições e ambivalências, não somente para sobreviver à hostilidade cotidiana que suportam, mas também para lidar, na medida do possível, com os tramas e estigmas que lhes impregnam a intimidade. Nestes casos, a plasticidade identitária constitui uma verdadeira estratégia de navegação entre veredictos sociais, levando por vezes à frustação, como a figura do passeur que se desloca entre mundos, mas à custa de tensões psicológicas indissolúveis.
David Berliner oferece-nos, definitivamente, um trabalho cheio de acuidade e relevância, que atualiza de uma nova forma – e não sem humor – as reflexões sobre a dialética da permanência e da inconstância, da mesmidade e da alteridadel o um e o outro não cessam de reinventar um equilíbrio sempre versátil, cujo operador é buscado na condição inextricavelmente múltipla do sujeito humano. Nota-se, aliás, que o autor evita judiciosamente a armadilha do “escapismo” como uma interpretação exclusiva dessas exoexperiências para se concentrar sobretudo na sua potência criativa e no seu caráter coextensivo à vida social. A este respeito, Devenir autre é sem dúvida um livro profundamente antropológico. Os proponentes dessa disciplina não deixarão de ficar impressionados com as analogias que os exemplos apresentam com as transições e tribulações específicas à sua prática (Berliner refere-se frequentemente a elas). Mas, no fundo, cada leitor seguramente poderá ser capaz de se reconhecer nas linhas desse texto – cuja acessibilidade, diga-se de passagem, deve ser sublinhada, apesar da sua densidade teórica -, à medida que as situações que ele desenvolve ecoam uma multiplicidade de experiências de vida, bem como debates contemporâneos em torno do significante vazio que constitui a “identidade” (a este respeito, o autor extrai de sua trajetória reflexões políticas inspiradoras, que contrastam com a vacuidade das posturas transmitidas no espaço público). Por fim, uma vez fechado o livro, não se pode deixar de pensar na frase de abertura de Mille Plateaux [Mil-Platôs]: “Nós escrevemos Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, isso já era muita gente”[7]. Esperamos que David Berliner tenha conseguido unir a pluralidade seres que o compõem, no final da escrita desse texto altamente pessoal… ou, na verdade, não…
Notas:
[1] Texto na sua versão original, em frânces, pode ser encontrado em: https://journals.openedition.org/lectures/57297 .
[2] Lamentamos, contudo, que o autor, desde o início do aludido capítulo, relegue as experiências paroxísticas de identificação (devemos até falar aqui de verdadeira dissociação) com personagens fictícios, místicos ou históricos para o registro da psiquiatria. Embora não haja dúvida que estes casos particulares fazem parte de uma tendência patológica, teria sido interessante incluí-los com mais nuances na reflexão transversal do livro, pois o seu valor heurístico permitiria refinar o continuum de formas de exoexperiências desdobradas ao longo do livro, assim como ligá-las a questões de saúde mental.
[3] Sem surpresa, o trabalho de Erving Goffman e seus associados continuadores são postos a trabalhar aqui em ocasiões ocasionais, dado o seu caráter operacional na compreensão das fontes ‘teatrais’ da vida social e dos efeitos ‘entendedores’ a elas
[4] David Berliner cita em particular o conceito de encanto apropriado do ‘dispositivo apropriado’ por Arnaud Halloy e Véronique Servais para descrever os processos em curso no advento de uma ‘exoexperiência’.
[5] A este respeito, o exemplo da cura analítica utilizada pelo autor parece ser particularmente convincente, ao mesmo tempo que apresenta uma análise resolutamente inovadora e original do dispositivo.
[6] Mencionemos em particular Gary de Philip Roth e Romay, que são usados pela sua exploração para o assunto do autor.
[7] Deleuze Gilles & Guattari Félix, Mille Plateaux. Volume II Capitalismo e Esquizofrenia. Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 9.
Para citar este texto: GILSON, Laurent. Tornar-se outro. Heterogeneidade e plasticidade do self. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 12 de agosto de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/08/12/ tornar-se-outro-heterogeneidade-e-plasticidade-do-self-por-laurent-gilson /
Muito instigante a discussão.