Por Antonio Canha (PPGSA/UFRJ)
Revisão: Samantha Sales
Com quantas metáforas se faz uma sociologia? Talvez apenas uma, mas, com nenhuma, não se faz. Conseguimos iluminar o que é propriamente humano na realidade ao imaginar o social como se fosse coisa, ou música, ou teatro, ou mesmo prédio[i]. Aqui, então, gostaria de pensar o social como se fosse espaço, para tentar medir sua dimensão, provar sua geologia, testar o solo e, acima de tudo, sondar sua topologia. Esta, à primeira vista, não me parece ser plana; distingo a silhueta de colinas, umas baixinhas e outras mais altas, prevejo a existência de vales entre morros, por onde correm rios instransponíveis, e suspeito da existência de penhascos tão íngremes quanto mortais. Mas o problema é que daqui, de onde olho, tudo parece um pouco escuro, meio turvo, as coisas não são totalmente distinguíveis, elas se confundem e se escondem meio apagadas. É como se estivéssemos eu e tudo aquilo que vejo, colinas, vales e penhascos, sob a sombra de uma grande montanha que não se mostra a olho nu. Sua penumbra não apenas condiciona a vista de quem olha, mas disfarça também a própria montanha, revestindo o espaço com um indelével ar de mistério.
Em outras metáforas, a montanha aparece com outros nomes, dos quais talvez o mais conhecido seja estrutura. A majestade de seu mistério tem sido arrebatadora ao longo desse século e meio de sociologia. Boa parte das grandes considerações teóricas refletem sobre a montanha e suas propriedades, os efeitos perversos, ou não, de sua sombra, sua durabilidade no tempo e ao mau tempo e, last but not least, a maneira pela qual e as condições nas quais montanhas emergem do solo. Onde está a montanha um dia era planície; a estrutura, por assim dizer, foi uma sucessão de ações que se associaram, se petrificaram e, empilhadas ao longo do tempo, deformaram o espaço social com um imenso bloco reificado que tudo sombreia. Então, ações viram coisas – ou pedras, no nosso caso – muito mais sólidas e estáveis do que as ações que as originaram, sua existência passa a ser naturalizada, irrefletida, e seus efeitos condicionam todas as próximas ações e inclusive as próximas montanhas que podem emergir.
Essa história não é nova, foi contada e recontada por meio de tantas outras metáforas. Porém, para mim, o que ainda não está claro é justamente o fenômeno inverso ao da emergência, ou melhor, a forma pela qual montanhas deixam de existir. Bem, o pensamento sociológico já se ocupou n vezes da chamada ruptura, o velho e o novo, o pré e o pós, certo estado de coisas que deixa de existir e é substituído por um outro estado de coisas. Mas falta refinamento aí. Apenas constatar que uma montanha não existe mais e que agora estamos sob a sombra de uma nova montanha não diz nada sobre o processo de desmoronamento da velha. Tantas perguntas permanecessem abertas: se a montanha implode a si mesma, se ela é demolida por agência externa, se os seus escombros são aproveitados na petrificação da nova montanha, ou mesmo se, na verdade, a velha montanha nunca pereceu, mas a nova é tão maior e mais alta que mesmo a velha está sob sua sombra. Não tenho a pretensão de responder todas essas perguntas, claro, por isso atenho-me a uma: o que acontece quando ainda não está claro se a montanha vai desmoronar ou não? Em outras palavras, me indago sobre o que se passa entre o momento em que uma coisa social começa a dar sinais de fadiga, a deixar de fazer sentido, e o ponto da obsolescência irreversível, quando a coisa passa a ser, definitivamente, velha.
Lembre-se que a sombra da montanha condiciona a vista, ou seja, os efeitos da estrutura não apenas constrangem as ações, mas funcionam também recursivamente a elas, como referenciais de sentido, disposições de oportunidades e distribuição de recursos. Quando uma entidade social dessa importância começa a entrar em colapso, é toda uma socioesfera que se encontra ameaçada, um modo de vida que se decompõe junto. E aí, o que fazem os atores? Adaptam-se funcional e automaticamente à nova realidade ou lutam como podem para salvar seu mundo familiar? Não sabemos direito o que acontece com pessoas, grupos ou movimentos que passaram a vida indexando suas ações a um referencial estrutural que ora se encontra sob risco. Mais ainda, quando enfim a montanha desmorona, a despeito de qualquer trabalho de contenção de encostas, o estado de coisas retorna ao ponto de pré-emergência, como se nada tivesse acontecido?
Não acredito que algo possa sumir definitivamente do espaço, sem deixar rastros. Me parece que a montanha que desmorona não deixa em seu lugar uma planície, mas um buraco, talvez tão profundo quanto alta era sua predecessora. O sol, agora, ofusca aqueles que enxergavam acostumados com a sombra. São órfãos da velha estrutura, à procura de uma nova penumbra que lhes recubra a capacidade de pensar e agir. Pois então, qual sociologia é adequada para lidar com esse fenômeno? Em lugar da emergência, a sociologia da submergência, em lugar do nível, a sociologia do desnível, ou, para se valer de um substantivo mais empregado nos dias de hoje: sociologia da crise.
Quero explorar esse caminho, descobrir as possibilidades de pensar teoricamente e praticar analiticamente uma sociologia das coisas que se vão. A metáfora do espaço é como um convite, uma porta de entrada para um mundo insólito e abstrato no qual as ideias estão menos comprometidas com a verossimilhança, mas que, talvez, ao final produzirão ferramentas aplicáveis. A ideia central é de que o fim de coisas muito significativas, como uma montanha que desmorona, é parte ativa do mundo, ou seja, tem consequências reais para seus habitantes. A maior delas é a confusão, a súbita indeterminação na qual entram aqueles que perdem sua montanha. Em outras palavras, acredito que o desmoronamento de sedimentos sociais produz crise, e é sobre essa crise quero pensar. Porém, antes das pedras rolarem e a crise irromper, é preciso dar uma pausa para apontar o lápis que escreverá essa história.
A perda
Uma das primeiras lições ensinadas ao estudante recém-ingresso em um curso universitário de ciências sociais é que nada se explica por meio da falta. O erro crasso dos evolucionistas era acreditar que os selvagens se definiam como tais pela falta de materiais metálicos, pela falta de teísmo ou pela falta de entidade metafísica monopolizadora da violência. Como não lembrar do quase anedótico comentário de um gramático português do longínquo século XVI, Pero de Magalhães de Gândavo, a quem estarrecia que nas línguas dos selvagens de Vera Cruz faltavam, justamente, as letras F, L e R, e assim não poderiam eles ter nem fé, nem lei, nem rei[ii]? A lição relativista ensina que não podemos projetar elementos ausentes de certo recorte da realidade social para explicar, ou interpretar, suas dinâmicas internas. Os atores e as estruturas devem ser compreendidos a partir de suas próprias categorias, reza a cartilha.
Posso ser acusado de desviar do cânone ao propor que uma ausência é significativa na compreensão da realidade. Se uma estrutura deixa de existir, as categorias que lhe deviam sentido deixam de ser próprias à interpretação do mundo, poder-se-ia argumentar, e uma pretensa sociologia da submêrgencia, ou da crise, viria ao mundo já natimorta. Mas note-se que há grande diferença entre a falta e a perda. A falta é a ausência pura e simples, ela é atribuída a outros sempre na perspectiva do observador, que, a partir de sua própria experiência e do estranhamento do encontro com o outro interpreta as diferenças enumerando aquilo que é seu, mas falta nele: alma, metais, consciência de classe e por aí vai. Essa operação lógica mais acoberta do que desvenda, é sociologicamente imprópria e, muitas vezes, politicamente perversa. A perda, porém, é um tipo de ausência mais complexa, não se enquadra no problema da projeção de particularidades do sujeito sobre o objeto. Ao contrário, sua natureza reside inteiramente no objeto, tornando-se visível ao observador apenas a partir de uma boa investigação sociológica.
Aquele que tinha algo, mas depois o perdeu, é totalmente diferente daquele que nunca experimentou ter. É disso que se trata olhar para o fim das coisas como condicionantes da ação: trata-se de levar em conta a perda, não a falta, como elemento ativo da constituição do mundo. Não é difícil imaginar como a perda produz mudanças significativas na postura das pessoas em situações corriqueiras. A perda de um emprego pode deprimir, a perda de uma partida pode enraivecer, a perda de um grande amor pode traumatizar. Há também perdas positivas, que exatamente por serem positivas não costumam ser chamadas de perdas, ainda que de fato o sejam, mas aparecem sob louvável signo da “superação”. Mas o que é a superação de um câncer senão a perda de um tumor maligno que ora carcomia o corpo? Em todo o caso, qualquer uma dessas cenas compõem peças do mesmo gênero, tratam do drama de lidar com a ausência daquilo que estava, mas se foi, aquilo que um dia era e noutro dia não era mais.
A perda, portanto, não é apenas a ausência pura e simples, mas é a passagem da presença para a ausência, é um momento crítico, uma quebra, que de alguma forma continua a reverberar no tempo e a se fazer sentir, como se ainda estivesse acontecendo a todo novo momento. É a própria permanência da ruptura. Aquilo que foi e não é mais não termina de ser, mas continua a ter sido e não sendo mais. Como se vê, a perda é um fenômeno que conduz os tempos verbais até o limite da cognição!
Nesse espírito, podemos alcançar uma perspectiva diacrônica do mundo social, ou seja, entender que os seres humanos e suas relações não são constituídos apenas de suas ações e disposições em tempo real, mas carregam consigo aquilo que já foi. O presente está sempre embebido de passado, ao mesmo tempo que transborda para o futuro. Mas isso, é claro, já foi percebido por mentes melhores e mais potentes que vieram antes, como Hegel, que constatou que estava em Berlim porque fez uma viagem[iii]. Sem o ato passado e consumado da viagem, não só Hegel não estaria em Berlim, como não haveria escrito o que escreveu, e tudo o que estou escrevendo agora seria inédito, coisa que não o é. Mas o que pode ser inédito, talvez, é imaginar a presença do passado não só em coisas que foram e cujas consequências ainda se fazem sentir, mas também em coisas que deixaram de ser e cujas consequências do deixar de ser ainda se fazem sentir.
A fossilização
A esta altura, tenho uma confissão a fazer. Deixei suspensas por uns parágrafos a metáfora do espaço e a história da montanha pelo receio de ser acusado de positivista. Sei que já é a segunda vez que me defendo de supostas acusações, mas julgo ter um bom motivo. A metáfora do espaço pode induzir a imaginação rumo à física social, ou seja, à ideia de que a realidade humana é tão regular e objetiva como a própria natureza, o que não é verdade em nenhum sentido. Não gostaria, então, que meu vocabulário geológico tivesse o mesmo destino das metáforas biológicas de Durkheim, que serviram como provas cabais de seu terrível natural-funcionalismo (um crime inafiançável no século XXI). Para me resguardar, conduzi o leitor por uma curta, porém densa, mata digressiva sobre a ideia da perda, com o intuito de inserir na reflexão o elemento diacrônico, e assumidamente confuso, sobre a experiência humana, para que ficasse claro o seguinte: no nosso espaço metafórico, as leis naturais não se aplicam ipsis litteris, mas suas propriedades são franqueadas à imaginação para poder ilustrar a abertura e a contingência da realidade social.
Dito isto, podemos retornar tranquilos e aliviados para nossa montanha que desmorona. Mas antes de avançar para o terror e caos do rolamento de pedras, é preciso uma boa imagem sobre do que são feitas as montanhas e que tipo de atividade tectônica que as produz. No espaço social, todo o reino mineral é um fóssil, ou seja, uma petrificação de matéria orgânica. Com isso quero dizer que a origem de tudo que é sólido não pode ser outra que não as atividades humanas pretéritas, originalmente empenhadas, como tão bem definiu Margaret Archer[iv], por meio da criatividade e da reflexividade de indivíduos concretos, mas que com o passar do tempo, por inércia, começam a reproduzir-se por conta própria e se autonomizam de seus criadores. O que vinha da criação e da reflexão, agora bebe da tradição e da distração. É importante que observemos, pois, essa passagem como um processo de objetificação, quer dizer, uma transição do estado de sujeito – humano, ator, criativo – para o de objeto – inumano, coisa, passivo – que se passa quando uma ação se autonomiza.
Ora, diria um leitor perspicaz, mas a questão não é justamente que tais ações autonomizadas ganham vida própria, ou seja, continuam a agir mesmo sem a criação humana? Então por que passam elas ao estado de objeto inanimado? Não exatamente continuam a agir, eu diria, mas na realidade social, existir por conta própria já é relevante o suficiente. Explico-me: a agência propriamente dita é artifício humano, fundamentalmente humano, é inclusive o que define o humano na realidade. Porém, nessa realidade, o humano a coabita com coisas, objetos, com os quais interage, se informa, interpreta, se baseia, transforma e é transformado, pelo simples fato de que tais coisas estão lá, portanto são incontornáveis em nossa experiência. Durante uma caminhada, ao se deparar com uma pedra no meio do caminho, o ser humano criativo e reflexivo, um poeta de retinas fatigadas[v], não pode atravessar o minério como se lá ele não estivesse, mas deve contorná-lo, saltá-lo ou mesmo escavá-lo, só não consegue ignorá-lo. Portanto, a propriedade mais importante das ações fossilizadas é tão somente existir, ser real, e uma existência que já não depende de indivíduos, pois assim alcançam um estatuto de condicionantes inevitáveis da ação.
Agora, imaginemos tais fósseis, pedras de origem orgânica, depositados uns em cima de outros no transcorrer de muito tempo. Eles vão formando pequenos aclives, saliências no solo que servem de mirantes privilegiados para quem quer que os suba. Essa qualidade, naturalmente, faz deles um ponto útil, interessante para se estar, de modo que mais e mais pessoas queiram subir no montículo de fósseis para realizar elas mesmas suas próprias ações. Tais ações, é claro, também estão sujeitas à fossilização, por meio da mesma repetição irrefletida que acometeu as primeiras. As ações, porém, que se realizam no topo de uma pequena protuberância, por conta da própria condição elevada, necessariamente são ações de uma ordem distinta daquelas que se produzem na planície. No topo enxerga-se mais longe, reconhece-se mais coisas, age-se, portanto, de maneira diferente. Logo, os prováveis novos fósseis que venham a se sedimentar são de uma segunda ordem, mais complexa do que a primeira, justamente porque a englobam e a pressupõem, mas vão além.
O pequeno relevo, então, começa a crescer, sua posição interessante torna-se mais e mais vantajosa à medida que aumenta a contagem dos metros que o distancia do solo. Por fim, temos um outeiro, uma colina já bastante alta, de onde não apenas se vê consideravelmente mais e mais longe, como também se obtém certa privacidade e segurança em relação ao fluxo contínuo da planície. Sua utilidade se diversifica, sua importância se amplia e sua força atrativa sobre novos frequentadores se intensifica. Essas colinas são como sambaquis: montes de fósseis acumulados no solo pela ação humana que se tornam cada vez maiores, mais úteis e habitados ao longo do tempo, de igual maneira são disputados e imitados por outros grupos, porque potencializam a vida, semeiam a sobrevivência e favorecem o surgimento de montes semelhantes ao seu redor.
Quando os povos tupi-guarani migraram para a costa do Atlântico, para as praias do que hoje é o Brasil, encontraram esses montes esquisitos de matéria orgânica e chamaram-lhes “sambaquis”[vi]. Os mais altos chegavam a cinquenta metros de altura, através de milhares de anos de depósito e fossilização pré-colombiana, conduzidos por populações há muito desaparecidas. Os sambaquis do nosso espaço social, entretanto, não têm limite de altura, podem subir muito além dos cinquenta metros. Um empilhamento frenético de ações, fossilizadas em tradições, normas, costumes, festejos, parentescos, linguagem, trabalho, estamentos e muitas outras disposições de ordem social, fazem subir um arranha-céu orgânico que alcança as nuvens. Uma montanha, por fim, que não é uma montanha qualquer, mas uma montanha-sambaqui, cuja atividade tectônica destaca-se por ter origem na própria ação humana, ao contrário das montanhas encontradas naquela realidade muito menos vibrante e curiosa a que chamam “natural”.
O problema é que a consciência da ruptura ontológica que aparta as realidades natural e social não é lá tão difundida, ou ao menos em muitos momentos o ser humano tem dificuldade em dizer a qual realidade pertence aquilo que ele vê ou sente. É o que pode acontecer, e frequentemente acontece, quando nosso sambaqui atinge a altura necessária para adquirir o título de montanha. Aquele imenso relevo, de tão magnânimo volume, atravessa gerações e gerações em contínua tendência de crescimento, até que chega o momento decisivo em que seus atuais habitantes não têm a mais pálida ideia de que afinal foi a agência humana quem ergueu o monumento. Sua altura é tão absurda que os outros montes que crescem ao seu redor parecem minúsculos, e destes, porém, não se duvida que seja trabalho de gente, o que torna muito mais inacreditável que a montanha tenha vindo da mesma lavra. A montanha, originária de anos e anos de depósito de petrificações humanas, laboriosamente construída com criatividade e reflexão, a montanha-sambaqui, termina por ser relegada à outra realidade, creditada a pertencer à insossa e insípida natureza.
Ponto fulcral na trajetória humana, a naturalização das coisas sociais foi trabalhada, destrabalhada e retrabalhada pela teoria social da melhor estirpe já muitas vezes. Para nós, que temos objetivos muito simplórios, basta dizer o seguinte: quando os seres humanos tomam sua montanha por algo dado, quando ela passa a compor a paisagem como se fosse parte da natureza, aquém, portanto, da ação criativa, o criador está alienado de sua criatura. Aí, retornamos ao estado lógico no qual começamos este pequeno ensaio, o de uma obra social tão monumental que se encontra coisificada, alienada, como se fosse natural. É aí que a montanha, tida como constante, sombreia a paisagem, condiciona a visão, informa a ação, distribui os recursos, hierarquiza as posições e divide os trabalhos sem, contudo, que se perceba. Ela vira estrutura, tão misteriosa quanto presente, tão fantasmagórica quanto real. E nós, que levamos tanto tempo para erguê-la, de uma só vez vamos derrubá-la, pois afinal, como profetizou o velho mago barbudo, tudo que é sólido se desmancha no ar.
O desmanche
Habermas uma vez escreveu sobre o magma líquido contido por anéis de lava endurecida debaixo de um vulcão[vii]. Estava falando sobre os clássicos da filosofia e sua improvável, porém real, contemporaneidade. A imagem refere-se às ideias dos pensadores, vivas e quentes como o magma, em contraste com o contexto histórico de suas biografias, há muito endurecidas como lava petrificada. Como o alemão não se deteve mais de três linhas nessa comparação, oportunamente podemos explorar sua figura de linguagem para o bem de nossa obsessão geomórfica. E se as montanhas-sambaquis forem, na verdade, sambaquis-vulcões? Ou seja, se as montanhas de fósseis ocultarem, em seu interior, matéria líquida e quente, contidas por ações petrificadas que as impedem de vir à superfície, dando-lhes um apenas aparente ar de estabilidade. Esse magma, evidente, também tem origem humana, são ações, invenções, criações, que por algum motivo não se petrificaram, mas permaneceram vivas, indeterminadas, como se ainda tivessem algo a dizer.
Lembremos que o processo de fossilização se dá por meio da repetição irrefletida, na qual uma ação humana inventiva, consciente de sua própria novidade, torna-se habitual, corriqueira, até um ponto singular em que passa ao automatismo. Aí, a antiga invenção autoconsciente vira tradição alienada, sólida, enfim. Porém, um elemento indispensável para esse caminho ser concluído é que a ação em questão seja ponto pacífico, quer dizer, a passagem da invenção para a tradição requer certa dose de consenso, um acordo entre todos os envolvidos com a correção de sua forma e o bem de seu conteúdo. Imagine que determinada maneira de cantar, certa forma de cozinhar ou um arranjo qualquer de divisão sexual do trabalho levante polêmicas, divida opiniões e suscite paixões. Não poderão atingir o ponto da repetição irrefletida, pois sua validade e pertinência estão em jogo, as atenções estão voltadas para seu caráter. Elas são, portanto, indutoras de conflito, não de consenso. Chegamos, então, a uma importante contraparte ontológica das ações fossilizadas baseadas no consenso: as ações magmáticas, líquidas e quentes, filiadas ao conflito.
Muito embora os conflitos não se sedimentem, mas permaneçam indeterminados, podem muito bem estar aterrados por camadas de fósseis consensuais que os mantêm controlados. Como lagos de ação liquefeita e incendiária, perigosamente contemporânea, que subjazem latentes sob as camadas da ordem corriqueira e habitual. Eis então o sambaqui-vulcão, estável na superfície, volátil na profundeza. Não restam dúvidas, agora, de que o vulcão há de entrar em erupção, trazendo à tona as chamas do dissenso e derretendo as certezas em lava incandescente. Mas como e sob que circunstâncias pode o magma do interior irromper à superfície?
Penso haver dois tipos possíveis de resposta a tal pergunta. A primeira imagina que a erupção parte de uma provocação exógena, seja ela intencional ou não; a segunda, ao contrário, constata que ela advém das dinâmicas endógenas, desde o tênue equilíbrio interno ao vulcão. Apesar de distintas, decerto as duas respostas não são contraditórias, podendo se complementar ou mesmo coexistir como duas explicações válidas para dois fenômenos separados. Aqui se trata de outro tema sensível da teoria sociológica: como as sociedades mudam? Quem ou o que as faz mudar? A partir de onde surge a mudança? Esta é orientada pela ação ou está prescrita dentro de imperativos sistêmicos? Mais uma vez, o tópico é longo e incerto, o que nos oferece a prerrogativa de não o revisar por completo e muito menos tomar partido, mas basta-nos aventar sumariamente uma de suas possibilidades.
Podemos imaginar os casos em que a erupção é provocada por novas ações humanas que escavam a rocha da montanha e fazem vazar o magma, uma operação que, por seu turno, pode ter duas modalidades, a intencional e a acidental. A intencional parece ser clara: aqueles que nunca se conformaram com o aterramento das polêmicas pretéritas, que ainda sonham com possibilidades de vida subjacentes no interior da rocha, procuram escavá-la para fazer emergir suas denúncias e insatisfações, sublinhando as injustiças e os apagamentos da história. De outra natureza são as provocações acidentais, ocasionadas por excursões ingênuas no subterrâneo da rocha, como historiadores que mergulham no passado para estudar este ou aquele aspecto, mas que descobrem, além dos fósseis, uma matéria viva, quente e fascinantemente contemporânea, a qual trazem consigo para a superfície.
Em qualquer uma das situações, as câmaras que alojavam o conflito são violadas, o magma, enfim, vira lava e emerge conjurando velhos fantasmas. Em efeito cascata, o ressurgimento de antigas querelas põe consensos mais recentes em suspeita, pois descobre-se que a fundação da grande estrutura é frágil e movediça. A lava escorre pela superfície dos acordos fossilizados testando-lhes a solidez, sua capacidade de resistir às intempéries é posta à prova e, evidente, alguns consensos não resistem, se liquefazem e engrossam a avalanche demolidora. O momento aqui é crítico, pois quando a lava começa a derreter as petrificações a tendência passa a ser o desmoronamento total. Porém, como tudo no mundo social, as tendências permanecem abertas às contingências das ações, o quadro não é irreversível e um trabalho de apagamento de incêndio ainda pode virar o jogo em favor do antigo ordenamento.
Sem dúvida, existe grande variação de solidez entre as montanhas. Há aquelas erguidas sobre bastante consenso, com pouca matéria líquida por debaixo, e há aquelas que são como barris de pólvora, em que uma pequena camada de pedra envolve um grande interior explosivo. Em cada uma dessas há uma história de formação da qual a configuração presente é devedora. O processo de formação da montanha e sua configuração atual são as condições nas quais os seres humanos fazem sua própria história, e dessa forma podem eles, se souberem, soprar o vento a favor do incêndio ou contra o fogo. Nesse momento já estamos em crise, pois a grande estrutura foi desnaturalizada, sua perenidade acabou, agora seu futuro depende de uma situação indeterminada. A indeterminação da situação é um aspecto importante da crise, pois ela está localizada num período e é suscetível a jogadas, mas a crise também se remete a uma dimensão menos pragmática: àquela ideia da perda.
Quem tenta apagar o fogo ou fazê-lo crescer está se filiando a um dos lados da perda. Uns querem que a montanha desmorone, para enfim perder sua influência maligna e construir algo novo, e outros querem preservar a bondade que dela emana e evitar o caos que seria encarar o mundo sem sua referência. A situação de crise, pois, está indexada aos relacionamentos históricos que diferentes grupos mantêm com a estrutura e entre si. Mas isso não significa, porém, que toda a crise está prevista num roteiro anterior escrito pelo télos oculto da história, mas está, é claro, aberta à criatividade de seus atores. O estudo da crise, portanto, deve levar em conta sua natureza dupla: a crise é histórica e contingencial, estruturalmente informada e pragmaticamente aberta; é situacionalmente indefinida e sistemicamente municiada.
Crise em dois tempos
A noção segundo a qual ações contextualmente situadas podem desprender-se do tempo e continuar a existir além da situação, como se fossem fossilizadas, só pode ser possível por meio de uma ontologia estratificada da realidade. Quer dizer, o real existe em mais de um nível, um das ações e outro das estruturas, que se relacionam e se influenciam, mas permanecem aparentemente desconectados, pois as estruturas, como se fossem montanhas, são tidas por natureza. Existem, contudo, momentos específicos em que o nível estrutural aparece desnaturalizado, sua origem humana é desvendada, como se os dois diferentes estratos da realidade dobrassem, um em direção ao outro, e se tocassem, abrindo uma janela que permite aos atores concretos e situados enxergar, imaginar e agir diretamente sobre o rumo da história e suas montanhas vindouras. A esse momento, chamo-lhe crise.
Mas a crise, vejam só, é uma coisa social como outra qualquer, e é propriedade das coisas sociais desprender-se dos contextos nos quais surgiram e continuar a se fazer sentir. A crise, portanto, não está necessariamente circunscrita ao momento em que a lava talvez derreta a montanha, mas ela pode ir além, continuar a ser real mesmo quando aquela situação já encontrou um desfecho. É o caso do desmoronamento total, quando a lava acaba por derreter todos os sedimentos fossilizados, fazendo a imensa estrutura de matéria orgânica ruir e alterar profundamente a paisagem do espaço ao redor. É, enfim, a perda. Os modos de vida, as visões de mundo, os gêneros musicais, as gírias, as estruturas de parentesco e os modelos de propriedade que floresceram sob sombra da grande montanha-sambaqui-vulcão perdem seu referencial simbólico e material que os impregnava de sentido. Da mesma forma que a perda é uma ausência que continua a acontecer a todo o momento, o fim da montanha é uma crise que continua a acontecer a todo o momento.
Na nossa metáfora, a crise que continua a acontecer para além do momento original – autonomizada e reificada, portanto –, a crise da perda da montanha, adquire a imagem de um buraco no solo, no lugar onde a montanha um dia esteve. Sua ausência é perenizada, o vazio do buraco é tão real quanto o volume da montanha, condiciona a ação exatamente da mesma forma. No meio do caminho tinha um buraco, diria outro poeta, e como no mundo social basta algo existir para condicionar a ação, os atores, agora, não podem ignorar o buraco, da mesma forma em que não podiam ignorar a pedra. E enquanto não taparem o buraco ainda estarão em crise.
Neste texto, esbocei uma ontologia do mundo social para desenhar uma ontologia da própria crise. Segui a ideia de que as condições de conhecimento do mundo são definidas pelo o que o mundo é. Uma perspectiva, portanto, realista[viii]. E tanto o mundo quanto a crise se apresentam estratificados: ação e estrutura, matéria e ideia, consenso e conflito, presente e passado. Uma sociologia que dê conta da crise do desmoronamento, logo, deve ser também uma sociologia em níveis, que articule numa só narrativa os diferentes estratos da realidade e suas interações. Antes que uma receita sociológica para investigação sobre a crise, este ensaio é uma investigação livre sobre as posições que devem anteceder a sociologia da crise. Concentrando-me na crise, por fim, quero apontar alguns dos caminhos que julgo apropriados para cumprir esta tarefa por natureza multidimensional.
É preciso entender que a crise existe em dois tempos. Em primeiro lugar, existe o momento crítico, quando a crise está situada e seu desfecho é indeterminado. Em segundo lugar, a crise pode existir para além do momento crítico, se autonomizando sob a forma de perda. Esse duplo aspecto é expressão da própria estratificação da realidade que, como dissemos, corre simultaneamente na conjuntura e na estrutura. Logo, a junção de duas tradições sociológicas é um requisito para um tratamento teórico e analítico adequado, que capture o baile de ações e condições sem pressupor premência de um ou de outro.
Para lidar com o primeiro, parece-me bastante suficiente o cabedal metodológico da sociologia da crítica, mas também o do pragmatismo como um todo pode ser mobilizado, trazendo consigo o interacionismo simbólico[ix]. A tradição acionista é de uma capacidade ímpar para descrever o momento crítico, mapeando a posição dos atores, interpretando os símbolos mediadores e revelando a inteligibilidade das ações em sequência, como se fossem jogadas.
Já o segundo tempo da crise, decorrente da perda, é fundamentalmente a crise do buraco. Seu tratamento prescreve uma tradição envolvida com o longo prazo, como estruturalistas e institucionalistas das mais variadas espécies. Mas em vez de enumerar este ou aquele, gostaria apenas de sublinhar a pertinência de tomar essa problemática a partir da perspectiva relacional[x]. A necessidade de tapar o buraco e suprir a ausência pode muito oportunamente ser traduzida como um problema de relações entre os níveis da realidade, ou melhor, entre as pessoas e seus referenciais externos simbólicos e materiais. Pensando em dinâmicas e processos, mais do que em substâncias, alcança-se um tratamento menos normativo, funcional e evita-se lidar com o buraco como anomia.
Imperativo saber, também, como dissemos reiteradas vezes, que os mortos pesam sob o cérebro dos vivos. A crise só pode ser analisada quando se leva em conta o processo de formação da coisa social, seja uma montanha ou não, que entra em jogo no momento crítico. As condições que os atores encontram para desferir suas jogadas, ou produzir suas críticas e justificações acerca do sólido e do líquido, devem ser investigadas. Faz-se isso por meio de um método muitas vezes renegado em nome da ilusória majestade do presente: a história.
Um terceiro elemento indispensável é a noção de que a crise surge de uma dobra no espaço-tempo social que, por sua vez, conecta os níveis da ação e da estrutura, fenomenologicamente, aos olhos dos atores. É um tempo de desnaturalização, de suspenção das certezas, e tem a ver, portanto, com a consciência dos sujeitos sobre o mundo. Em suma, é um momento de catarse gramsciana, ou seja, uma passagem do determinismo histórico para a vontade política, do em si ao para si[xi]. O espírito da “filosofia da práxis” de Gramsci traz, além de um marxismo temperado e quase livre da neurose das seitas, os problemas da consciência e da historicidade a um só tempo, exatamente como o necessário.
Por fim, essas cinco considerações finais são apenas ventilações sobre os passos a serem tomados na concretização de uma sociologia da crise. O real e simples objetivo deste ensaio foi – além do prazer solitário de escrever – começar a conquistar um objeto ao delinear seus limites, observar seus contrastes e testar se ele se sustenta sozinho, como um fenômeno em si mesmo. No final, penso que o lirismo se provou útil para contornar uma parte, ou melhor, um momento do mundo social sobre o qual ainda recaem muitas sombras do desconhecimento.
Notas
[i] Essas metáforas são, respectivamente, de Durkheim, Tilly, Goffman e Marx.
[ii] Originalmente em: GÂNDAVO, Pero de Magalhães de. História da província Sancta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Lisboa: Antônio Gonçalves, 1576. Mas consultado em: ALCIDES, Sérgio. F, L e R: Gândavo e o ABC da colonização. Escritos, ano 3, n. 3, 2009.
[iii] apud KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
[iv] ARCHER, Margaret. Realism in the social sciences. In: ARCHER, Margaret et al. Critical Realism: Essential Readings. Londres: Routledge, 1998.
[v] No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade, 1928.
[vi] Segundo o Houaiss, a palavra deriva do tupi “tambaqui”, que é tamba (concha) + qui (amontoado).
[vii] HABERMAS, Jürgen. Public Space and Political Public Sphere – The Biographical Roots of Two Motifs in my Thought, p. 12. In: HABERMAS, Jürgen. Between Naturalism and Religion: Philosophical Essays. Cambridge: Polity Press, 2008.
[viii] Essa posição é devedora de Roy Bhaskar, precisamente em BHASKAR, Roy. Realism in the Natural Sciences. In: BHASKAR, Roy. Reclaiming Reality: A Critical Introduction to Contemporary Philosophy. Londres: Routledge, 2011.
[ix] Aqui, penso sobretudo em BOLTANSKI, Luc; THÉVENOT, Laurent. A sociologia da capacidade crítica. Antropolítica, v. 23, n. 2, pp. 121-144, 2011.
[x] As inspirações são WELLMAN, Barry. Structural Analysis: From Method and Metaphor to Theory and Substance. In: WELLMAN, Barry; BERKOWITZ, Stephen (eds.): Social Structures: a Network Approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1988; e EMIRBAYER, Mustafa. Manifesto for a Relational Sociology. The American Journal of Sociology, v. 103, n. 2, 1997.
[xi] GRAMSCI, Antonio; SADER, Emir (Org.). Poder, política e partido. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
Excelente texto. Avança para uma revisão importante dos rumos de uma sociologia que foi fabricada no imaginário da sociedade industrial. O atual deslocamento de sentidos do mundo exige repensar o lugar de um pensamento critico que dialogue com a sombra que tinha sido evacuada pelo iluminismo (da montanha, seguindo metáfora do autor). Sugiro se ampliar o debate com a ecologia política e com o debate do antropoceno para ver a montanha desde o horizonte. Lembro também que o tema da sombra tem uma importância crucial na psicologia das profundidades do Jung. Acho que Archer está deslocada neste debate.